Além da venda de livros: a livraria como espaço de enfrentamento à ditadura*
Atualizado: 28 de ago.
Durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), algumas livrarias serviram como espaço de resistência e difusão de ideias ligadas à esquerda. Venderam livros proibidos pelo regime, realizaram encontros supervisionados por agentes federais, tiveram seus livreiros proprietários alvos de prisões e torturas. Em muitos casos, houve censura e violação dos direitos humanos. Diante disso, este texto desenvolve uma análise sobre a relevância de duas livrarias inseridas em um campo literário sob a influência desse regime ditatorial: a Anita Garibaldi, de Florianópolis (SC), e a Jinkings, de Belém (PA).
Identificando os espaços
O livro, historicamente, é alvo de regimes ditatoriais. Seja por meio de fogueiras, com a sua destruição total; seja com a censura e, com isso, a tentativa de inutilizá-lo; seja por meio de outras formas de ameaças e atentados. As livrarias, por sua vez, passam pelo mesmo risco. São espaços que proporcionam não apenas a venda de obras que questionam a política imposta pelas ditaduras, como também se tornam centros de encontros e eventos, e acabam por incentivar a ação de agentes culturais e literários. Em muitos casos, como os dois citados neste texto, os leitores criaram vínculos que fazem do local e do livreiro referências duradouras.
A Livraria Anita Garibaldi
A livraria Anita Garibaldi foi fundada em 1953, em Florianópolis (SC), pelo escritor e jornalista Salim Miguel e um sócio, o advogado Armando Carreirão. O que começou como uma banca dentro de um café virou uma livraria. Apesar de pequena, seu catálogo era conhecido pela população da cidade e o espaço se tornou um ponto de encontro. A livraria ficava em frente à Praça XV de Novembro, no centro da cidade, próximo a pontos de referência como a Catedral Metropolitana e o Palácio do Governo, e onde está, até hoje, a famosa Figueira Centenária ou Velha Figueira. Segundo Matos e Cunha (2018), na região encontravam-se os “principais redutos de cafés” da cidade, com a presença de intelectuais e políticos. Era também o endereço da sede do Partido Comunista Brasileiro (PCB), legal até o ano de 1947.
O espaço da livraria era pequeno, “pouco mais de meia dúzia de passos nos levavam à parede do fundo”. O balcão ficava encostado em uma parede lateral e o único funcionário da casa era José Furstenberg, conhecido como Pulga (Matos; Cunha, 2018, p. 24). A clientela era eclética, formada por jornalistas, professores, operários, estudantes, funcionários públicos e escritores.
Os clientes tinham acesso a um catálogo de obras com viés político de esquerda, algumas ligadas ao Partido Comunista, além de obras importadas (Miguel; Malheiros, 2002). Esse leque de opções era difícil de ser encontrado, principalmente na Santa Catarina da década de 1960, onde a publicação de um livro era um evento que ocorria apenas “esporadicamente, com largos intervalos e quase despercebido do grande público” (Hallewell, 2005, p. 619). Sendo assim, percebe-se a relevância de um espaço como o da Livraria Anita Garibaldi para fomentar o cenário literário e cultural local.
O apelido “Livraria do Salim” continuou em atividade mesmo após Miguel e Carreirão entregarem a livraria para outra pessoa em 1959. A decisão se deu por motivos financeiros. Cinco anos mais tarde, esse apelido levou o escritor a ser preso e a livraria, incendiada. Salim Miguel foi preso no dia 2 de abril de 1964, em uma das ações da chamada Operação Limpeza. À época, ele chefiava o escritório da Agência Nacional e o gabinete de imprensa do governador Celso Ramos. Foram 48 dias no Quartel do Comando Geral da Polícia Militar. Eglê Malheiros, esposa do escritor, trabalhava no Instituto Nacional de Educação. Logo após a prisão do marido, ficou proibida de lecionar e dias depois também foi presa. Após ser solta, ficou em prisão domiciliar.
O incêndio na livraria se deu quando Miguel estava preso. Ele ficou sabendo do fato de dentro da carceragem. No dia 3 de abril de 1964, cerca de trinta pessoas, de militâncias católicas e conservadoras, arrombaram a porta da livraria e tiraram praticamente todos os livros. Eles foram amontoados na praça XV de Novembro e colocados em chamas (Matos; Cunha, 2018, p. 313). A livraria estava fechada desde o dia primeiro daquele mês, logo depois do golpe civil-militar.
O jornal A Gazeta publicou a notícia do incêndio no dia 5 de abril: “o povo florianopolitano deu provas sobejas de sua fibra democrática, extinguindo um foco pernicioso que há anos se instala no coração de nossa Cidade” (Matos; Cunha, 2018, p. 315). Um impresso que, na capa, abaixo do seu nome tinha escrita a frase: “Jornal sem quaisquer ligações partidárias”, mas que apoiou o golpe militar e, segundo Matos, era porta-voz da União Democrática Nacional (UDN).
É importante ressaltar que, apesar de a livraria não existir fisicamente durante os anos da ditadura, ela estava presente no discurso de quem defendia a democracia, ao mesmo tempo em que era usada nas acusações de militares em prisões e ações de violência.
Como livreiro à frente da Anita Garibaldi, Miguel ficou por seis anos. Foi o início de uma vida profissional e intelectual cercada por livros e que deixou marcas importantes em sua trajetória. Em 1948, junto a um grupo de jovens escritores, fundou o Grupo Sul, que representou o movimento modernista em Santa Catarina e durou dez anos. Foi nesse período que produziu a revista Sul (1948-1958). Salim Miguel foi ainda editor da revista Ficção (1976-1979), dirigiu a editora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes. Teve uma vida dedicada à escrita de contos, romances, crônicas e depoimentos. No dia 22 de abril de 2016, Salim Miguel faleceu aos 92 anos. Ele estava internado em um hospital para tratar uma broncopneumonia.
A temática da ditadura militar se fez presente em alguns textos como, por exemplo, nas obras A voz submersa (1985) e Primeiro de abril: narrativas da cadeia (1994); e, ainda, na crônica Sequelas de uma prisão (1998), onde encontramos o seguinte relato do autor:
O Incêndio é num anoitecer qualquer, logo após o Primeiro de Abril de 1964, mas o projeto já devia há muito estar latente, à espera do momento propício para eclodir, previamente combinado entre os que agora se curvam reverentes diante da pira sagrada, ajudando a alimentá-la. (Miguel, 2015, p. 50)
A Livraria Jinkings
O segundo caso analisado é o da livraria Jinkings, que, inaugurada em 1965, passou pelos anos autoritários sob a ação da censura, da prisão e da ameaça, só fechando as portas em 2010. Raimundo Jinkings era, antes de tudo, um sindicalista militante e partidário do PCB. Com esse perfil, foi perseguido pelos militares. Desde 1951, era servidor concursado do Banco da Amazônia. Com o golpe, depois de ser preso, foi exonerado do cargo e teve que pensar em uma nova profissão. Foi vender livros. Ele e a esposa, Isa Jinkings, montaram algumas estantes dentro de casa, que passou a funcionar como livraria também. Com o tempo, expandiram até a loja que ficou definitiva, na Rua Tamoios no 1.592. Sobre esse recomeço, o livreiro lembrava da seguinte forma: “a única coisa que eu poderia fazer para não morrer de fome com a minha família era vender livro porque eu sempre tive contato com as maiores editoras do Sul do país através de pedidos que eu fazia diretamente” (Sampaio, 1994).
A livraria foi registrada em cartório no dia 22 de outubro de 1965 como “R. A. Jinkings Comércio e Representações”. Na parte superior, o espaço era usado para os eventos culturais, como lançamentos de livros e debates. Existia ainda uma preocupação em valorizar escritores locais. Lançaram livros na Jinkings nomes como Ziraldo, Milton Hatoum, Lígia Bojunga, Alfredo Oliveira, Rui Barata, Salomão Laredo e Max Martins.
A distância entre a capital paraense e o Sudeste, de onde vinham a maioria dos livros, era um complicador. Ainda mais nas décadas de 1960 e 1970. Era um processo demorado, “de várias semanas”, entre o despacho e a chegada às livrarias (Hallewell, 2005). Para gerir uma livraria no Pará, naquela época, era necessário ter contatos, planejamento e conhecimento do mercado livreiro. Raimundo Jinkings tinha tais qualidades e sua livraria contribuiu para o campo literário local.[1]
O relato da escritora e professora da UFPA, Amarílis Tupiassú, que foi frequentadora da Jinkings, ajuda a dimensionar a relevância daquele espaço para as pessoas que buscavam se unir contra um regime autoritário e violento, em uma capital no norte do país. Ela se recorda que o livreiro “arriscava- se e, dando seu jeito, fazia chegar a Belém até obras de escritores soviéticos, em um tempo em que qualquer menção a isso podia desaguar em inquéritos, prisões, torturas” (Tupiassú, 2018).
Com o tempo, a Jinkings foi ganhando espaço no mercado e se estabelecendo como uma das principais livrarias da cidade e do estado. Chegou a ter cinco filiais, além da loja principal na Rua Tamoios, mais duas em Belém; duas em Santarém e Castanhal, municípios paraenses; e uma em Macapá (AP), estado vizinho. O fechamento, em 2010, foi provocado, entre outros motivos, pela concorrência das grandes redes.
Raimundo Jinkings levou seu perfil sindicalista para a carreira como livreiro. Ele começou cedo na defesa dos direitos dos trabalhadores e assumiu posições importantes. Fez parte do Sindicato dos Bancários, visto que era funcionário do Banco da Amazônia. Tornou-se presidente da Assembleia Permanente do Sindicato e presidente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Em 1950, integrou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), seção do Pará. Ingressou no PCB do Pará em 1962. Entre 1967 e 1995, assumiu a direção do partido no estado, onde se manteve até seu falecimento, em 1995. Concorreu, por duas vezes, a vereador de Belém. Em 1953, pelo PSB, não conseguiu votos suficientes. Em 1962, pelo PCB, teve seu nome impugnado pelos militares.
Identificando o campo
Em determinados casos, o livreiro pode ser considerado um agente literário e a livraria, uma instituição (Bourdieu, 1996). Quando isso ocorre, a livraria extrapola a função de mercado. Ela não apenas vende obras literárias, como colabora para o crescimento de um campo literário, viabiliza a presença de escritores recém-chegados e o contato deles com nomes já estabelecidos no campo, colabora para a ampliação de um público leitor local, entre outras ações.
Para Pierre Bourdieu, o campo literário pode ser pensado dentro da lógica de um universo social, com suas regras próprias, onde é preciso levar em consideração os interesses e as dinâmicas de seus agentes. Historicamente, os artistas passaram de figuras bancadas por mecenas e monarcas a profissionais independentes. A partir de então, dá-se uma ruptura importante entre os campos artístico e político. A interferência de um campo em outro, segundo o sociólogo francês, passa a ser pontual.
A abordagem proposta aqui é a de que o papel do livreiro é o de um agente que não produz literatura, mas intermedia a sua produção, a sua disseminação e o seu consumo. Em determinados casos, toma posições que marcam o campo, como o de enfrentamento político ao regime autoritário vigente. Para Bourdieu, o capital simbólico de um agente dentro do campo literário é particular deste universo e não tem, necessariamente, relação com o seu sucesso econômico. Ao contrário, o campo literário é “um mundo econômico às avessas” (Bourdieu, 2002, p. 102). O objetivo é alcançar um resultado positivo entre os pares. O reconhecimento público pode acontecer, mas não de imediato. A melhor forma para medir a posição de um empreendimento de produção cultural no campo é a duração do ciclo de produção. Quanto mais rápida, mais comercial (Bourdieu, 2002, p. 163).
Nos casos analisados, dentro do contexto brasileiro em questão, temos o seguinte exemplo: Raimundo Jinkings manteve uma posição estabelecida como livreiro comunista, com relativa estabilidade no campo cultural e político paraense, apesar das investidas dos militares. Em relação ao sucesso da sua livraria, de 45 anos, desde o início, mantendo o catálogo com uma linha editorial historicamente condizente. O perfil de viés político esquerdista estava sempre presente, inclusive com recusas a venda de best-sellers que contrariassem tal posição. Exemplo disso é quando um dos filhos de Raimundo, Álvaro, que gerenciou o negócio por anos, explica que o pai se negava a vender best-sellers, livros da editora Record e de determinados autores, como do ex-ministro da ditadura Jarbas Passarinho (Brasil, 1995, p. 165).
Ao pensarmos em Salim Miguel – uma figura já reconhecida no campo artístico de Florianópolis –, seu vínculo com a livraria Anita Garibaldi colaborou para a continuidade do negócio após sua saída. Ao mesmo tempo, tal vinculação foi responsável pela prisão do escritor/livreiro. Momento esse em que é preciso pensarmos nos casos de exceção. Houve uma intervenção extracampo, em que o reconhecimento simbólico de Miguel não foi suficiente para mantê-lo distanciado do conflito político maior em questão, uma ditadura militar. É importante destacar que Miguel teve uma presença forte no meio intelectual da cidade e do estado, como escritor, jornalista, editor, crítico literário e roteirista de cinema. Como livreiro, ainda estava no começo da carreira, embora já se fizesse conhecido, pois Florianópolis era uma cidade antiga, mas pequena. Em 1953, ano da criação da Anita Garibaldi, o município tinha cerca de 67 mil habitantes. Foi uma referência e um exemplo de agente literário que transitou por espaços diferentes dentro dos campos literário e cultural catarinense e brasileiro.
Olhar do regime sobre as livrarias
O regime militar acompanhava de perto a produção cultural. Muito em função do trabalho censório, mas também interessava atrair intelectuais para os órgãos do Estado, neutralizar a produção da esquerda e aumentar o investimento público no setor, afinal “a cultura tornara-se efetivamente preocupação estratégica e questão de poder” (Pellegrini, 2014, p. 160). Portanto, independentemente do propósito, o campo cultural/literário nunca deixou de ser vigiado. Evidentemente, havia um mundo clandestino que ficava oculto aos olhares militares.
Segundo Maria Tucci Carneiro, os documentos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS/SP) demonstram que, apesar de sempre terem estado na mira da polícia política, agentes envolvidos na ação revolucionária mantinham redes complexas de comunicação por meio de grupos clandestinos (Carneiro, 2002, p. 84). Esses agentes são escritores, intelectuais, jornalistas, professores, editores e livreiros. Nesse contexto, Sandra Reimão (2014) afirma que, além dos atos de resistência por parte de grandes agentes, havia aqueles “protagonizados por uma legião de anônimos – pequenos e médios editores, impressores e livreiros que, no limite de seus campos de ação, atuaram com dignidade e em prol da liberdade” (Reimão, 2014. p. 88). Percebe-se, portanto, a importância de se pensar a figura do livreiro, esse agente do campo literário, e sua atuação diante da ditadura militar. As livrarias tornam-se, por sua vez, instrumentos de resistência democrática.
De diferentes maneiras, as livrarias eram monitoradas pelos órgãos federais criados pelo governo militar. Por meio dos atos institucionais, o governo criou o Serviço Nacional de Informação (SNI) e o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e informantes surgiram em diversas categorias da sociedade, ligados a instituições conservadoras como a Tradição Família e Propriedade (TFP), grupo vinculado à ala ultraconservadora da Igreja Católica, o Comando Geral Democrático e o Comando de Caça aos Comunistas (Carneiro, 2002). Por isso, é relevante pensarmos, neste momento da discussão, como as livrarias Anita Garibaldi e a Jinkings, assim como seus respectivos proprietários, foram vigiados pela polícia política.
Para se ter uma ideia, o documento Informação 008/S-102-A11-CIE, do Serviço Nacional de Informações (SNI), datado de 5 de janeiro de 1981, tem como assunto as “livrarias especializadas em literatura esquerdista”. Oitenta estabelecimentos, divididos por estados, ocupam 27 páginas. Na frente de cada nome, colocam-se em destaque informações como endereço, temática das obras, nomes dos proprietários e frequentadores, e assim como a relação desses com a militância política. Minas Gerais (14), Rio de Janeiro (11) e São Paulo (14) são os estados com maior número de estabelecimentos do tipo. O documento ainda apresenta nomes de editoras e agências que importavam livros de esquerda que se localizavam no estado paulista, adicionando à lista mais 72 nomes.
A Jinkings é citada no documento. No ano de 1981, a Anita Garibaldi já estava fechada havia muito tempo. Entretanto, as duas são assuntos de outros relatórios escritos por agentes do SNI. Dentro desse recorte específico, vou mostrar a seguir como esses espaços e seus livreiros foram alvos de perseguição, censura e violência.
O caso Anita Garibaldi
Levando-se em conta a particularidade da livraria Anita Garibaldi, as referências a ela e a Salim Miguel, encontradas nos documentos do SNI, demonstram como a ditadura determinou o fim do espaço e marcou de forma violenta a vida de Miguel e de sua família. Há pelo menos dois dossiês montados sobre Salim Miguel, um de 1970 e outro de 1982. Neles, são anexados documentos de anos anteriores.
Um dos documentos (dossiê de 1982), datado de 16 de maio de 1969, tem como “sugestão” demitir Salim Miguel do cargo que ocupava como jornalista na Agência Nacional. Miguel e sua família tiveram que se mudar para o Rio de Janeiro, em 1965, por causa da perseguição sofrida depois que ele saiu da prisão. No registro em questão, a demissão do jornalista se fazia necessária, pois seria um inconveniente ter “elementos vermelhos no serviço público” que estariam sendo “premiados pela Revolução”. A ficha individual e o histórico das atividades de Miguel também foram anexados ao dossiê. O escritor é descrito como um dos cinquentas comunistas mais atuantes de Santa Catarina, principalmente através da imprensa, e a livraria é citada como “foco de encontros comunistas antes da Revolução de Março de 1964”.[2]
No último anexo presente no registro em questão, há uma tabela com o histórico de atividades de Salim Miguel, que vai desde 1949, quando foi “preso por atividades comunistas”, até 1976, ano da última ocorrência. São oito páginas que comprovam como os militares e a polícia acompanharam o percurso de vida do jornalista, antes mesmo de 1964. Os dois últimos fatos apontados no documento são relativos ao ano de 1976. Primeiro, uma visita de Salim Miguel e Eglê Malheiros a Florianópolis para “fazer uma reportagem para a Manchete sobre a Serra do Tabuleiro”, que havia sido elevada à categoria de unidade de conservação de proteção integral. Entretanto, o que se enfatiza é que a área seria um “local propício para instalação de base guerrilheira”. E o outro fato é a seleção do filme Fogo morto para o Festival Internacional de Cinema de Berlim. O casal foi o responsável pelo roteiro adaptado da obra de José Lins do Rêgo.
Quando Salim Miguel foi preso, em 2 de abril de 1964, ficou na companhia de outras 55 pessoas apontadas como subversivas ou comunistas (Miguel, 2015). Esse período vivido no quartel foi reelaborado, cinquenta anos depois, no livro Primeiro de abril: narrativas da cadeia (2015). O escritor passou por momentos de tortura psicológica e ameaças de vida. Em uma determinada madrugada, ele foi acordado para ser levado à presença do secretário de Segurança Jade Magalhães. O preso ouviu ameaças do tipo: “bom-lugar-pra-se-mergulhar-um-corpo” e “será-que-alguém-sabe-a-altura-exata-da-ponte-até-o-mar-e-o-impacto-de-um-corpo-na-água?” (Miguel, 2015, p. 63). O encontro acabou sendo cancelado, mas foram horas de desespero.
Por fim, o interrogatório diante de Jade Magalhães se deu em 21 de abril de 1964. Não foi diferente da situação descrita anteriormente. O caminho foi marcado por torturas psicológicas. O preso foi levado do alojamento onde estava até o local da audiência. O secretário queria que Miguel reconhecesse que era uma liderança da esquerda; e o acusava de ser responsável pela “orientação intelectual” da loja, e que o atentado contra a livraria Anita Garibaldi tinha sido uma consequência da vontade da população: “Todos na cidade sabiam que a livraria era um foco de agitação, ponto de encontro de comunistas e simpatizantes do credo vermelho” (Miguel, 2015, p. 94).
É possível perceber que, pelo menos nos primeiros anos do regime militar, a imagem de Salim Miguel era indissociável da imagem da livraria Anita Garibaldi. Fato que fez com que o escritor e jornalista, e não mais livreiro, carregasse a culpa daquelas chamas por anos: “a fogueira não te larga, caminhas com ela, comes com ela, sonhas com ela, tens pesadelos com ela” (Miguel, 2015, p. 53). Sabe-se que o incêndio foi provocado por defensores do golpe, que teriam agido sob influência do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), do Círculo Operário de Florianópolis, entidade relacionada com a Igreja Católica e políticos ligados ao Partido Democrata Cristão (Matos; Cunha, 2018, p. 318). De acordo com o relatório final da Comissão Memória e Verdade da UFSC (2018), dois professores da universidade estavam envolvidos: Luiz Carlos Gaioto e Nereu do Vale Pereira. O próprio Pereira assumiu e justificou a ação: “quando havia algo que eu pudesse contribuir para derrotar os comunistas eu estava junto, sem dúvida” (UFSC, 2018, p. 54).
De acordo com Carneiro, nesses “rituais de purificação”, o fogo é usado para destruir não só objetos, mas também corpos. Trata-se de um elemento imprescindível, a ilustração da imagem do Inferno, a expressão do conflito entre o Bem e o Mal (Carneiro, 2002, p. 27). Portanto, não estamos nos referindo a um fim qualquer. É um fim provocado pela destruição das chamas, com um valor simbólico inerente.
O caso Jinkings
Em uma busca pelo Sistema de Informações do Arquivo Nacional, são inúmeros os resultados com a palavra-chave “Jinkings”. As referências se dão à pessoa de Raimundo Jinkings e à livraria Jinkings em contextos diversos como: infiltração na Universidade Federal do Pará (UFPA), artigos publicados na imprensa, invasões e apreensões à livraria e à residência de Jinkings, atividades do PCB, entre outros.
No dossiê ACE N 24/82, foi anexado um histórico da atuação de Raimundo Antônio da Costa Jinkings entre 1961 e 1973. No documento, Raimundo Jinkings é citado como um “comunista ativo”, com ligações e contatos com “outros notórios comunistas” do Pará e de São Paulo, “capaz de cumprir friamente qualquer missão do PC”.[3] Na função de livreiro, ele é colocado como difusor de obras que contêm propaganda do comunismo.
Antes mesmo de abrir uma livraria, ainda como bancário, sindicalista e comunista, Raimundo Jinkings foi preso duas vezes. Uma delas foi em abril de 1964. Logo depois do golpe, ele fugiu por um mês das autoridades que o viam como um agitador comunista. Ficou escondido em casa de parentes e amigos até se ver obrigado a se entregar para não perder o emprego por abandono de cargo. Jinkings ficou 79 dias preso na 5a Companhia de Guardas do Exército. Depois, ainda precisou passar onze dias em uma cela do quartel do 26o Batalhão de Caçadores, até ser liberado por meio de um habeas corpus impetrado pelo advogado socialista José de Ribamar Darwich.
A segunda prisão foi em setembro de 1966. Jinkings foi acusado de organizar “fatos de natureza subversiva”, quando o então ministro da Guerra, Artur da Costa e Silva, estava visitando Belém. O caso está registrado em um documento do SNI,[4] em que consta que ele e mais três foram indiciados e todos negaram participação quando depuseram à polícia. Foram sete meses preso (Oliveira, 2010). Após esse segundo momento de cárcere, Jinkings foi aposentado compulsoriamente do Basa. Foi quando decidiu vender livros. Começou com algo pequeno, dentro de casa, mas não demorou para o negócio crescer e ele ocupar uma loja. Loja essa que, assim como seu proprietário, virou alvo dos militares.
Na lista de livrarias de esquerda, citada anteriormente, a Jinkings é a única que aparece quando se refere à região Norte. Não significa que não havia outras, mas corrobora a relevância dela dentro da discussão proposta, e que ganhou esse destaque justamente pela atuação de seu dono como dirigente comunista. A presença da livraria na cidade de Belém e no estado do Pará foi fundamental para movimentar o campo literário local, defender um discurso de confronto com o regime político vigente. Por isso, também era alvo de atos de censura.
A Polícia Federal apareceu diversas vezes na livraria, apreendeu livros e ameaçou Raimundo Jinkings e sua família. Em entrevista feita para o documentário Semeador de sonhos (1994), ele se recorda desse período: “A nossa casa foi invadida várias vezes. A nossa livraria, reprimida. Nós respondemos vários processos porque nós vendíamos os livros que a ditadura proibia”. Segundo Isa Jinkings, esposa do livreiro e também comunista, foi feito um fundo falso no balcão que servia de esconderijo durante as abordagens policiais: “Quando tinha alguma ameaça, alguém se aproximava, a gente escondia os livros mais perigosos dentro do fundo falso” (Pinto Júnior, 2011, p. 43).
A livraria era vista pelos militares como “verdadeira sede do partido” para a realização de reuniões com integrantes da cúpula local do PCB, quando o partido agia na clandestinidade [5] E, mesmo após a legalização do PCB, com a Lei da Anistia, as represálias políticas continuavam acontecendo.
Um desses casos se deu por conta de uma visita de Miguel Arraes a Belém. O ex-governador de Pernambuco voltava do exílio na Argélia. Em 1979, Raimundo Jinkings era vice-presidente da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos e a livraria foi um dos alvos de ataques terroristas. Na madrugada do dia 18 de novembro, “saiu o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e metralhou a frente da livraria que era de vidro temperado. Fizeram muito terror” (Pinto Júnior, 2011, p. 43). De acordo com uma reportagem, o vigia Pedro Duarte disse que “vários disparos foram feitos de um Volkswagen amarelo, que em seguida desapareceu em alta velocidade” (Jornal do Brasil, 1979, p. 20). No dia seguinte, Miguel Arraes desembarcou na cidade e foi recebido no aeroporto por cerca de trezentas pessoas. O caso foi registrado pela Polícia Federal do Pará. Após a investigação, concluiu-se que o atentado foi uma farsa para atrair atenção à visita de Arraes: “foi uma campanha barata e planejada para incrementar e mobilizar a atenção pública para a presença do Sr. Miguel Arraes nesta Capital, que caso transcorresse na normalidade, talvez tivesse sido um fracasso de público”.[6]
No dia 7 de fevereiro de 1983, às 16h, agentes do DOPS realizaram “minuciosa busca e apreensão” na residência dele e na livraria. Foram apreendidos materiais “subversivos de doutrina marxista-leninista”. Material que foi listado no documento para posterior análise. Além de Raimundo Jinkings, são citadas pessoas vinculadas a entidades de esquerda que estariam reunidas no momento da abordagem policial. Ou seja, antes mesmo do golpe e até durante o processo de redemocratização, Raimundo Jinkings continuava tendo que lidar com a perseguição política.
Interferência entre os campos literário e político
Quando lidamos com a pesquisa de qualquer objeto dentro de um contexto de ditaduras e governos autoritários, partimos de um cenário em que a ação política é imposta na sua forma mais violenta e arbitrária. Diante do exposto anteriormente, é possível compreender de que maneira as livrarias e os livreiros em questão foram vistos como ameaças ao regime autoritário instalado em 1964.
No caso do Brasil, o campo literário ainda era recente e, portanto, mais frágil. O que não significa que não houvesse embates, apenas que o campo literário não estava estabelecido a ponto de “sentir” menos as investidas dos governos militares. Quando nos referimos a figuras de intelectuais brasileiros, era imprescindível que se assumisse uma postura diante do que estava acontecendo no país. A legitimação do intelectual passava por uma tomada de posição política (Vieira, 1998, p. 44).
Apenas para ajudar nessa discussão e trazer uma figura conhecida, podemos pensar no editor e livreiro Ênio Silveira, que enfrentou o regime e sofreu fortes represálias por causa disso. Devido à sua posição estabelecida e respeitada, Silveira agia conforme suas convicções políticas. Entretanto, após determinado ponto, tais atitudes eram respondidas com atentados a bomba, cortes de financiamentos, posicionamentos de alguns veículos da imprensa, e outros tipos de intervenções para fazer levar o negócio à falência e desmerecer a figura do indivíduo. Ênio Silveira, por exemplo, afirmou que livreiros eram intimidados a não venderem obras da editora Civilização Brasileira (Vieira, 1998, p. 103).
A livraria Jinkings também foi vítima de um atentado armado que, por pouco, não resultou em morte. O atentado sofrido pela Anita Garibaldi colocou em chamas seus livros. Ambos, Salim Miguel e Raimundo Jinkings, tiveram suas passagens pelo cárcere, sofreram injustiças que definiram suas vidas e das suas famílias. A livraria Jinkings só foi fechar as portas em 2010, enfrentando obstáculos impostos pelas imposições do próprio meio, como o crescimento das grandes redes. No caso catarinense, podemos nos focar na figura de Salim Miguel, que concretizou uma carreira no campo artístico e literário como jornalista, escritor e editor, sendo reconhecido pelos seus pares e por instituições de consagração, por meio de diversos prêmios, por exemplo.
Conclusão
No início deste texto, a proposta feita foi a de trazer o percurso de duas livrarias que fizeram contribuições para se discutir o espaço da livraria e a figura do livreiro especificamente em um campo literário que estava submetido a uma ditadura militar. A livraria Jinkings mostrou-se quase que espelho de seu livreiro e, mais do que resistir à ditadura, enfrentou-a. O perfil político de Raimundo Jinkings caracterizou a sua atuação como livreiro e a forma como a livraria se apresentava aos seus frequentadores. A Anita Garibaldi foi criada na época em que Florianópolis ainda estava estabelecendo um cenário literário e, pela força da figura de seu livreiro Salim Miguel, conseguiu deixar marcas como ponto de venda de livros de esquerda. As duas contribuíram para ofertar um catálogo único de obras e autores. O que nos leva a pensar que, sem profissionais como eles, o repertório de uma geração de leitores ficaria prejudicado visto que o cliente confiava e dependia daqueles espaços.
Livrarias são empreendimentos que são, ao mesmo tempo, pontos comerciais, mas, também, pontos de leitura, de construção de carreiras e de consagração de escritores. Em relação aos períodos em que o Brasil teve no comando governos ditatoriais, o livreiro esteve em uma posição estratégica e, muitas das vezes, tomando atitudes importantes para o movimento de resistência, pensando nos campos cultural e intelectual. A forma com que o campo cultural, e aqui damos ênfase ao literário, reage, assim como seus agentes, quando “mexido” pelo campo político, é de extrema importância para a história e a memória de um país, já que é ele o grande responsável pelo registro, análise e discussão desses momentos.
*Este texto é fruto de um artigo selecionado para participar do painel “Ditadura e a vida cultural” no Seminário Internacional 1964-2024: a Ditadura em Perspectiva Histórica e Comparada, realizado entre os dias 20 e 22 de março de 2024, no Instituto de Relações Internacionais da USP. Algumas modificações foram feitas para publicação no site História da Ditadura.
Notas:
[1] Segundo dados do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, em 1981, todo o estado do Pará tinha apenas nove pontos de venda de livros, incluindo livrarias e outros tipos de estabelecimentos, sendo que sete deles ficavam em Belém (HALLEWELL, 2005, p. 609).
[2] Documento disponível no site do Arquivo Nacional, com código de referência: BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_NNN_82003122. Disponível em: https://sian.an.gov.br/.
[3] Ver o documento presente no Arquivo Nacional com código de referência: BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_KKK_82002418_d0001de0001. Disponível em: https://sian.an.gov.br/.
[4] Ver o documento presente no Arquivo Nacional com código de referência: BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_KKK_82002418_d0001de0001. Disponível em: https://sian.an.gov.br/.
[5] Ver o documento presente no Arquivo Nacional com código de referência: BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_KKK_85005430_d0001de0003. Disponível em: https://sian.an.gov.br/.
[6] Ver o documento presente no Arquivo Nacional com código de referência: BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_KKK_80000697_d0001de0001. Disponível em: https://sian.an.gov.br/.
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Como citar este artigo:
MOLLO, Lúcia Tormin. Além da venda de livros: a livraria como espaço de enfrentamento à ditadura. História da Ditadura, 26 ago. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/alem-da-venda-de-livros-a-livraria-como-espaco-de-enfrentamento-a-ditadura. Acesso em: [inserir data].
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