Apontamentos sobre o estalido social de outubro de 2019 no Chile
A atualidade das memórias sobre o período ditatorial chileno (1973-1990) se tornou ainda mais evidente quando uma onda de protestos sociais estourou na segunda quinzena do mês de outubro de 2019, após o aumento do valor das passagens do transporte público anunciado pelo presidente Sebastian Piñera. Com o apoio de considerações que vêm sendo feitas por historiadores sobre esse processo, busco apontar as relações diretas entre o que assistimos no ano de 2019 no Chile e o processo de transição política chilena.
Uma primeira explicação deve ser feita para o leitor que ainda não está familiarizado com o tema: o fim da ditadura militar no Chile foi um acontecimento previsto e controlado pelo próprio regime. A Constituição de 1980, promulgada durante a ditadura, ao mesmo tempo em que iniciava um novo período presidencial com Augusto Pinochet no poder, regulamentava para 1988 um plebiscito a partir do qual seria decidido pela continuação ou não do mandato do general. Caso a população escolhesse a permanência de Pinochet, o novo período presidencial começaria assim que terminasse o anterior. Caso contrário, o presidente em exercício continuaria seu mandato por mais um ano e, 90 dias antes de sua saída do governo, convocaria eleições presidenciais e parlamentares. O novo presidente teria um mandato de 4 anos, sem direito à reeleição. Essas regras estavam dispostas nos artigos transitórios da Constituição, ou seja, os artigos que servem para adaptar a nova Constituição ao ordenamento jurídico precedente, tendo sua vigência limitada no tempo. Sendo assim, a transição política chilena foi institucionalizada pela própria ditadura militar, o que faz com que ela tenha sido uma das mais limitadas da América Latina.
As manifestações ocorridas em 2019 vieram justamente contestar alguns dos resquícios dessa transição política negociada. O movimento que se iniciou como uma reação ao aumento das passagens no Chile terminou – se é que podemos dizer que ele já está concluído – com 78% da população chilena votando pela formação de uma Assembleia Constituinte para redigir uma nova Constituição. É claro que nesses quarenta anos de governos democráticos, a Carta chilena foi alterada várias vezes, mas o fato de o Chile ter ainda hoje uma Constituição que foi imposta por um governo autoritário tem não só um simbolismo muito forte, mas traz implicações práticas no cotidiano dos chilenos, já que esta carta estava alinhada ao projeto neoliberal da ditadura pinochetista que também foi questionado pela onda de manifestações de 2019.
Sobre esse ponto é importante lembrar que a transição política chilena não rompeu com o modelo neoliberal implantado pela ditadura. A manutenção do modelo econômico ditatorial foi uma das condições para a mudança de governo ocorrida em 1989. De acordo com o sociológo Tomás Moulian: “o perigo era muito grande de que os desequilíbrios econômicos, gerados pela perda de confiança dos empresários em face de uma mudança nas regras, produzissem tensões ou crises políticas. Não se podia correr o risco de sentir a ‘necessidade dos militares’”.
Nem mesmo os governos teoricamente mais próximos da esquerda conseguiram romper com o neoliberalismo vigente no Chile: até 2018, ano de comemoração dos 30 anos do plebiscito que decidiu pelo fim da ditadura, poucos avanços foram feitos para romper com as políticas econômicas remanescentes dos tempos ditatoriais. A crise do sistema previdenciário chileno, que deixa de amparar grande parte da população idosa do país, foi um dos pontos mais destacados nas manifestações, com cartazes que contabilizavam a quantidade absurda de anos que os jovens teriam que trabalhar para se aposentar e qual era a porcentagem dos salários que iriam receber. Como nos explica o historiador Luan Vasconcelos Fernandes, o modelo de previdência vigente ligado às Administradoras de Fundos de Pensões (AFPs) faz com que grande parte dos aposentados chilenos receba menos de um salário mínimo, enquanto as empresas – a maior parte delas, multinacionais estrangeiras – registrem lucros recordes com o rendimento do dinheiro dos trabalhadores.
Já em 2019, o conjunto de manifestações passou a ser conhecido como “estalido social”. Sob esse prisma, o historiador Sergio Grez – em análise feita no livro Chile despertó. Lecturas desde la Historia del estalido social de octubre – destaca que fatores políticos motivaram o “estalido” e a crise do modelo democrático vigente no Chile, para além dos fatores econômicos:
O segundo elemento está relacionado com a crise do sistema de democracia restrita, protegida e de baixa intensidade que existe desde 1990, que se manifesta dia a dia na profusão de escândalos de corrupção, financiamento ilegal de partidos, casos como os de PENTA, SOQUIMICH , CORPESCA, dos conluios de empresas, mega fraudes à tesouraria das Forças Armadas e Carabineros etc. e com o descrédito crescente do grande empresariado, da casta política e das instituições do Estado, juntamente com taxas de abstenção nas eleições muito altas e crescentes, além de percentuais muito baixos de aprovação ou confiança em políticos profissionais e instituições estatais refletidos nas pesquisas de opinião.
O crescente descontentamento com o modelo político vigente fez com que os pedidos pela convocação de uma Assembleia Constituinte unificassem os principais anseios dos manifestantes, que não estavam muito claros em um primeiro momento. De acordo com Grez, que é um dos membros do Foro por la Asamblea Constituyente,
O processo constituinte em curso desde pelo menos 2011, quando o movimento estudantil e outros movimentos sociais difundiram em larga escala a demanda por uma Constituição democrática via Assembleia Constituinte, ganhou uma força nunca vista desde a rebelião popular desencadeada em 18 de outubro de 2019.
Se, por um lado, os protestos evocaram reivindicações que dizem respeito ao processo de transição política chileno, a resposta do governo fez ecoar na sociedade memórias do regime ditatorial. Nos primeiros dias de manifestações, foi decretado toque de recolher, juntamente com Estado de Sítio. Em um de seus primeiros pronunciamentos sobre as manifestações, Piñera utilizou a mesma narrativa de guerra contra um inimigo interno, trazendo para os chilenos lembranças dos dias do golpe de 1973. Na ocasião, o presidente declarou: "estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém, que está disposto a usar a violência e a criminalidade sem nenhum limite".
De acordo com a historiadora Carla Palma, esses elementos simbólicos se relacionaram com outros mais concretos que fizeram com que a população relacionasse o estalido de octubre com o período ditatorial:
As comparações entre o que se viu nessas semanas e os dezessete anos de ditadura foram memoráveis. A presença de militares nas ruas durante o Estado de Exceção, o toque de recolher e um discurso belicoso contra a população, têm sido um gatilho para a memória do trauma ditatorial, não só para quem viveu, mas também para os que cresceram ouvindo seus pais e avós falarem sobre os dias difíceis de morte e impunidade que viveram.
A repressão que se abateu sobre os manifestantes evidenciou também como a questão dos direitos humanos no Chile ainda é um problema a ser resolvido. Diversas imagens divulgadas por meio das redes sociais registraram a brutal violência com que eram tratados aqueles que protestavam. Um dos casos mais emblemáticos foi o dos chilenos que perderam a visão, total ou parcial, por ação policial. Até 2 de dezembro de 2019, um informe feito pelo Instituto Nacional de Derechos Humanos (INDH) registrou
23 mortes no contexto do Estado de Exceção. Suas causas específicas estão sendo investigadas, mas pelo menos seis delas foram causadas por agentes do Estado. Além disso, mais de oito mil detidos estão registrados para participar das manifestações, entre eles 561 menores, e quase três mil feridos, entre os quais está o número chocante de 241 pessoas com trauma ocular, que pelo menos no caso de duas pessoas - Gutavo Gatica e Fabiola Campillay - significou a perda total da visão. O INDH também apresentou queixas para 458 casos de tortura e 88 para violência sexual. Em todos esses casos, os responsáveis são agentes do Estado.
Contudo, acreditamos ser importante ressaltar como esses movimentos também trouxeram à tona uma capacidade de mobilização social que até então parecia adormecida na sociedade chilena: o “despertar” do Chile – como muitos vêm chamando esse processo – trouxe consigo novas estratégias de luta e enfrentamento, bem como a ascensão dos mapuches e dos estudantes como protagonistas desses movimentos. Além disso, se por um lado a resposta do governo trouxe de volta a memória dos anos sombrios de ditadura militar no Chile, os manifestantes trouxeram para os protestos a memória dos anos de governo da Unidade Popular. Um ato que se tornou comum entre os manifestantes foi cantar a música “El derecho de vivir en paz”, de Victor Jara, durante o toque de recolher ou em meio aos protestos. A música que se tornou um símbolo dos anos de governo de Salvador Allende e também da resistência à ditadura de Pinochet ressurgiu nesse momento, indicando como a memória desse passado recente ainda está viva no Chile.
As manifestações iniciadas em outubro de 2019 demonstraram, portanto, como a memória sobre a ditadura pinochetista ainda é um tema sensível na sociedade chilena e como o processo de transição política não resolveu certas questões, como a permanência da Constituição de 1980 e de políticas neoliberais, que aumentaram ainda mais a desigualdade social no país e impediram um processo de aprofundamento da democracia no pós-ditadura. Tal aprofundamento, aliás, parece ter sido novamente adiado devido ao aumento dos casos de COVID-19, o que fez com que as eleições dos membros da Assembleia Constituinte fossem adiadas de 10 a 11 de abril para 15 a 16 de maio.
O movimento iniciado em 2019 – e até agora não finalizado – evidencia a explosividade das memórias sobre o passado recente chileno e as dificuldades da construção de uma democracia plena no Chile.
Créditos da imagem destacada: Protestas en Chile de 2019, Plaza Baquedano, Santiago, Chile. 22 outubro 2019. Carlos Figueroa. Wikimedia Commons.
Tradução da autora. Original em espanhol: “era demasiado alto el peligro de que desequilíbrios económicos, generados por la perdida de la confianza empresarial ante câmbio de reglas, produjeran tensiones o crisis politicas. No se podia correr el riesgo de que se sintiera la “necesidad de los militare”. MOULIAN, Tomás. Limitaciones de la transición a la democracia en Chile. Proposiciones 25, 1994, p. 25-33, p. 92.
Tradução da autora. Original em espanhol: “El segundo elemento tiene relación con la crisis del sistema de democracia restringida, tutelada y de baja intensidad existente desde 1990, que se manifiesta día a día en la profusión de escândalos de corrupción, de financiamiento ilegal de los partidos, de casos como los de PENTA, SOQUIMICH, CORPESCA, de las colusiones de empresas, mega fraudes al fisco de las Fuerzas Armadas y Carabineros, etcétera y, con ello, en el creciente descrédito del gran empresariado, de la casta política y de las instituciones del Estado, unido a altíssimas y crecientes tasas de abstención en las elecciones, además de los bajísimos porcentajes de aprobación o confianza a los políticos profesionales y a las instituciones del Estado reflejadas en las encuestas de opinión”. GREZ, Sergio. Rebelión popular y proceso constituyente en Chile. In: GREZ, Sergio e outros. Chile Despertó. Lecturas desde la Historia del estallido social de octubre. Santiago: Universidad de Chile, 2019, p. 13-14.
Tradução da autora. Original em espanhol: “el proceso constituyente en curso a lo menos desde 2011, cuando el movimento estudiantil y otros movimentos sociales difundieron a gran escala la exigeência de uma Constitución democrática vía Asamblea Constituyente, haá cobrado una fuerza nunca vista a partir de la rebelión popular desencadenada el 18 de octubre de 2019”. GREZ, Op. Cit., p. 13.
PALMA, Carla. Derechos Humanos: El pasado que no passa. In: GREZ, Sergio e outros. Chile Despertó. Lecturas desde la Historia del estallido social de octubre. Santiago: Universidad de Chile, 2019, pp. 70-77, p. 71-72.
Tradução da autora. Original em espanhol: “Las comparaciones entre lo visto en estas semanas y los diecisiete años de dictadura han sido recorrentes. La presencia de militares en las calles durante el Estado de Excepción, el toque de queda y un discurso bélico contra la población, han sido un detonante de la memoria del trauma dictatorial, no sólo para quienes la vivieron, sino también para quienes crecieron escuchando a sus padres y abuelos hablar de los duros días de muerte e impunidad que les tocó vivir”. Idem.
Tradução da autora. Original em espanhol: “23 muertes en el contexto del Estado de Excepción. Sus causas específicas se investigan, pero al menos seis de ellas fueron provocadas por agentes del Estado. Además, se registran más de ocho mil detenidos por participar en las manifestaciones, entre ellos 561 menores de edad, y casi tres mil heridos, entre los que se cuenta la impactante cifra de 241 personas con trauma ocular, que al menos en el caso de dos personas – Gutavo Gatica y Fabiola Campillay – ha significado la perdida total de visión. También el INDH ha presentado querelas por 458 casos de tortura y 88 por violencia sexual. En todos estos casos los responsables son agentes del Estado”. Documento disponível em: <https://www.indh.cl/> e revisado pela autora em 1 de dezembro de 2019 apud PALMA, Op. Cit., p.70-71
O termo mapuche se refere aos povos originários do Chile que ocupavam tradicionalmente a região da Araucanía e que têm sido constantemente utilizados como um símbolo de resistência nos protestos, já que os mapuches foram os únicos nativos que conseguiram resistir ao domínio espanhol na época da colonização.
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