‘A Ascensão’: a II Guerra Mundial no cinema soviético e os
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  • Foto do escritorWallace Andrioli

‘A Ascensão’: a II Guerra Mundial no cinema soviético e os

Atualizado: 29 de abr. de 2021

 

É bastante conhecido o lugar central ocupado pela Segunda Guerra Mundial (ou a Grande Guerra Patriótica) na história da União Soviética. A resistência heroica e desesperada aos nazistas, a brutalidade com que esses últimos avançaram no território comunista, produzindo alguns dos momentos mais extremos do conflito (como o cerco a Leningrado e a batalha de Stalingrado), o protagonismo soviético na vitória final dos Aliados, os cerca de vinte milhões de mortos. Fatores que justificam o peso dado à guerra na constituição de uma identidade soviética a partir da década de 1940. O cinema, que Lenin considerava a mais importante das artes, em razão de seu grande poder comunicacional, esteve na linha de frente desse processo.

São muitos os filmes soviéticos que tratam da Grande Guerra Patriótica. Realizados ao longo dos quase cinquenta anos entre o fim do conflito e a queda do comunismo na região, eles concretizam bem os embates estéticos e discursivos em curso no cinema do país. Os princípios do realismo socialista, vertente estilística vigente nos anos mais duros do stalinismo (entre as décadas de 1930 e 1950), contaminaram também os filmes. A evocação da grandiosidade do povo soviético em sua luta pelo socialismo e contra o nazismo, construída por meio de uma estilística épica e moralista, esteve presente numa série de obras realizadas nos anos 1940. Algumas delas têm no próprio Stalin um personagem importante, líder ponderado, humano e de decisões certeiras a respeito da guerra. A Batalha de Stalingrado (1949), de Vladimir Petrov, é talvez o exemplo mais conhecido nesse sentido.

Mas, mesmo após a morte de Stalin, no auge do degelo kruscheviano, um filme como A Epopeia dos Anos de Fogo (1961), de Yuliya Solntseva, apostou em uma visão triunfalista da guerra, que se encerra como uma elegia ao povo que reconstruía a União Soviética após o conflito. Aliás, muito do cinema sobre o tema realizado a partir da segunda metade da década de 1950 tem como característica central a louvação da resistência soviética. O que muda em relação ao período stalinista é a introdução gradual de um componente melancólico, por vezes trágico, em obras como Quando Voam as Cegonhas (1957), de Mikhail Kalatozov, A Balada do Soldado (1959), de Grigoriy Chukray, O Destino de um Homem (1959), de Sergei Bondarchuk, e A Infância de Ivan (1962), de Andrei Tarkovski. Os personagens principais desses filmes ou morrem na guerra (são os casos de A Balada do Soldado e A Infância de Ivan) ou sofrem traumas muito grandes (a perda do noivo em Quando Voam as Cegonhas e do filho em O Destino de um Homem).

A Ascensão (1977), de Larisa Shepitko, e Vá e Veja (1985), de Elem Klimov, são o ponto de chegada desse movimento. Ambos lançam olhares completamente desesperançosos para a experiência da guerra, ainda que mantendo a resistência e o sacrifício como temas. É difícil dizer qual é mais amargo. Vá e Veja costuma ser mais lembrado, colocado em listas de melhores filmes já feitos sobre a Segunda Guerra Mundial, sobretudo por sua capacidade de imergir nos extremos da violência desencadeada pelos nazistas na zona rural da república soviética da Bielorússia.

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No documentário de curta-metragem Larisa (1980), Elem Klimov homenageia Shepitko (eles eram casados e ela morreu num acidente automobilístico em 1979), ressaltando o talento da diretora para registrar rostos humanos em seus filmes. A Ascensão exemplifica isso com perfeição, fazendo dos planos aproximados instrumentos poderosos de criação de sentido dramático e político. Capturados pelos alemães, Rybak e Sotnikov são transportados até uma prisão. No caminho, o primeiro delira sobre a possibilidade de fuga, mas desiste ao vislumbrar a possibilidade de ser morto. Shepitko encerra a sequência com um close-up[i] muito expressivo do personagem, revelador de sua repulsa à ideia de perder a vida repentinamente – e que serve como pista para as escolhas futuras de Rybak.

Pouco depois, durante o interrogatório dos dois prisioneiros, Sotnikov é seviciado pelo interrogador Portnov (Anatoliy Solonitsyn), colaborador dos nazistas. Marcado com um ferro em brasa, o soldado soviético desmaia. Portnov se aproxima, Sotnikov acorda e lhe lança um olhar carregado da dignidade própria de quem não cede ao inimigo mesmo em meio à dor extrema. A câmera aqui se torna subjetiva, numa dinâmica de campo/contracampo[ii] também bastante expressiva: assumindo a posição de Portnov, ela permanece por um longo tempo em Sotnikov, que devolve o olhar diretamente, quase quebrando a quarta parede;[iii] corta para Portnov (a perspectiva agora é a do prisioneiro) e ele não consegue sustentar o embate silencioso, se desestabiliza, e, constrangido, ordena a retirada do prisioneiro da sala.

O olhar de Sotnikov (Divulgação)

Esse uso magistral dos rostos dos atores volta a ocorrer no terceiro ato de A Ascensão. Rybak e Sotnikov são condenados à morte, junto a outros prisioneiros. No intuito de salvar os demais condenados, Sotnikov tenta convencer Portnov que só ele é um partisan. A diretora inicia essa cena com Sotnikov de costas, próximo à câmera, enquanto bem mais adiante Portnov conversa com alguns oficiais nazistas. O enquadramento tem grande profundidade de campo,[iv] permitindo que os dois espaços do quadro[v] sejam visualizados com clareza. Sotnikov chama por Portnov e ele se aproxima lentamente – de seu interlocutor e da câmera, que continua no mesmo lugar, fazendo apenas um leve zoom para enquadrar o interrogador em close-up. Esse último tem o domínio da situação e a diretora privilegia, a princípio, seu rosto.

Enfim, ocorre um corte para Sotnikov, também em close-up. Parte da conversa se desenrola na dinâmica do campo/contracampo, até que o prisioneiro começa, pela primeira vez diante do algoz, a enunciar abertamente sua identidade, enquanto se aproxima até ser enquadrado em primeiríssimo plano:[vi] “Meu nome é Sotnikov. Comandante do Exército Vermelho. Nasci em 1917. Sou bolchevique. Uni-me ao partido em 1935. Sou professor de profissão. Lidero um regimento. Lamentavelmente, não matei a todos os seus ratos. Meu nome é Sotnikov. Boris Andreyevich. Tenho pai, mãe… Pátria.” A câmera permanece o tempo todo em Sotnikov, registrando suas expressões de orgulho (da própria trajetória) e desdém (pelo traidor Portnov).

A essa força que emana de um personagem, a diretora contrapõe a fraqueza de outro, Rybak. Ele implora a Portnov por uma chance de trabalhar a seu lado. O ex-combatente – enquadrado num meio primeiro plano[vii] que permite, ao mesmo tempo, perceber o desespero que marca seu rosto e a postura altiva de Sotnikov ao fundo – se torna, então, mais um colaborador dos invasores alemães. Shepitko, portanto, estabelece gradações entre os personagens soviéticos: há os colaboracionistas (Portnov) e os resistentes (Sotnikov) convictos, mas há também aqueles que simplesmente fraquejam perante o risco de morrer (Rybak).

A Ascensão se move, então, entre a reiteração do mito da resistência e o reconhecimento da complexidade dos que colaboram com o inimigo pela sobrevivência. Esse movimento duplo reverbera nas duas últimas sequências do filme. A primeira é a da execução dos prisioneiros, que tem início com uma via crucis que remete à Paixão de Cristo. Aqui há uma série de planos bastante expressivos dos rostos dos personagens: o close-up da camponesa desesperada prestes a ser morta; os primeiríssimos planos de Sotnikov, comovido e altivo, que pede perdão à mulher por lhe ter inintencionalmente implicado, e de Portnov, que parece perceber que sua aliança com os nazistas jamais permitirá um tipo de cumplicidade como a existente entre o homem e a mulher prestes a morrerem por sua pátria; o meio primeiro plano Rybak, humilhado, segurando o toco de árvore sobre o qual Sotnikov será enforcado.

O olhar desolado do traidor Rybak (Divulgação)

É por meio desse registro aproximado dos rostos de seus atores que Shepitko, enfim, concretiza a mensagem de que a resistência ao nazismo continua, mesmo com a morte de alguém como Sotnikov. Esse personagem, encarnação perfeita dos valores positivos da luta patriótica e em favor do socialismo (ele é um bolchevique, segundo suas próprias palavras), vagueia o olhar pela multidão, até encontrar um garoto. A câmera se aproxima, num zoom, do rosto desse último, que sustenta uma troca de olhares ao mesmo tempo emocionada e revoltada com o homem prestes a morrer. O campo/contracampo construído com close-ups e primeiríssimos planos longos dos dois personagens torna clara a ideia de passagem de bastão: morre um resistente, nasce outro.

Já a última sequência do filme acompanha o imediato pós-execução, em que Rybak, arrependido, tenta em vão cometer suicídio. Shepitko retorna aos close-ups e primeiríssimos planos, para registrar tanto o lado patético desse traidor que se salvou da forca para logo depois protagonizar uma cena frustrada de enforcamento, quanto o olhar desolado, seguido de choro desesperado, de um homem cuja existência passa a carecer completamente de sentido: sem pátria, sem causa, sem companheiros.

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Apesar desse juízo duríssimo, a opção de A Ascensão por explicitar os sentimentos que movem Rybak, inclusive encerrando a história com o drama desse personagem em foco, revela o interesse de Shepitko por não se prender totalmente às dicotomias. A defesa da resistência e a condenação da traição são indubitáveis, mas há tristeza e piedade em como a diretora representa a fraqueza de Rybak. Trata-se, enfim, de um cinema profundamente humanista.

Nesse sentido, Vá e Veja também funciona, ao lado de Larisa, como homenagem a Sheptiko: igualmente duro, o filme de Klimov se mostra bastante interessado na expressividade dos rostos de seus atores, especialmente do inesquecível protagonista Florya (Alexei Kravchenko). Poucos close-ups e primeiríssimos planos na história do cinema exprimiram o desespero diante do horror como os de Vá e Veja.

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Quando Voam as Cegonhas, O Destino de um Homem, A Balada do Soldado, A Ascensão e Vá e Veja foram lançados no Brasil pela CPC-Umes Filmes (os quatro primeiros em DVD, o último em DVD e blu-ray).

A Infância de Ivan foi lançado em DVD no Brasil pela Versátil Home Video, como parte de um box de filmes do diretor Andrei Tarkovski.

 

Notas

[i] Close-up: Enquadramento que compreende o ator da altura do peito para cima.

[ii] Segundo Jacques Aumont e Michel Marie (2003, p. 61-62), “o ‘contracampo’ é uma figura de decupagem que supõe uma alternância com um primeiro plano então chamado de ‘campo’. O ponto de vista adotado no contracampo é inverso daquele adotado no plano precedente, e a figura formada dos dois planos sucessivos é chamada de ‘campo-contracampo’”.

[iii] Quebra da quarta parede: procedimento em que o ator rompe com a diegese e se comunica diretamente (por meio do olhar e/ou de palavras) com o espectador. Quanto à diegese, trata-se de termo que se refere, segundo Christian Metz, citado por Aumont e Marie (2003, p. 77-78), à “instância representada do filme, ou seja, o conjunto da denotação fílmica: a própria narrativa, mas também o tempo e o espaço ficcionais implicados na e por meio da narrativa, e com isso as personagens, a paisagem, os acontecimentos e outros elementos narrativos, porquanto sejam considerados em seu estado denotado”.

[iv] Profundidade de campo: Termo usado para caracterizar a extensão da zona de nitidez do campo. De acordo com Aumont (1995, p. 34), “o que se define como profundidade de campo é a distância, medida de acordo com o eixo da objetiva, entre o ponto mais aproximado e o ponto mais afastado que fornecem uma imagem nítida”. Historicamente, o uso da grande profundidade de campo esteve associado a um ganho de realismo do cinema a partir da década de 1940, graças a diretores como Orson Welles e William Wyler.

[v] Quadro: Termo que se refere ao limite físico da imagem fílmica, dentro do qual o diretor compõe as cenas.

[vi] Primeiríssimo plano: Enquadramento que compreende o ator da altura dos ombros para cima.

[vii] Meio primeiro plano: Enquadramento que compreende o ator da altura da cintura para cima.

 

Referências

AUMONT, Jacques et. al. A estética do filme. Trad. Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1995.

AUMONT, Jacques & MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. Campinas, SP: Papirus, 2003.

BARASH, Zoia. El cine soviético del princípio al fin. Havana: Ediciones ICAIC, 2008.

BO, João Lanari. Cinema para russos, cinema para soviéticos. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

NAVAILH, François. Russie-URSS (1917-1991): Le festin pendant la peste. In: MULLER, Raphaël & WIEDER, Thomas (dir.). Cinéma et régimes autoritaires au XXe siècle. Paris, PUF, 2008.

 

Crédito da imagem destacada: Divulgação

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