"Os anos JK" e "Jango": o olhar cinematográfico de Silvio Tendler para o Brasil
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  • Foto do escritorGuilherme Leite Ribeiro

"Os anos JK" e "Jango": o olhar cinematográfico de Silvio Tendler para o Brasil

Pioneiro no ramo cinematográfico, Silvio Tendler conseguiu romper barreiras do mundo acadêmico ao levar para o grande público bons documentários políticos que contam parte da história do Brasil. Dois deles foram feitos ainda sob a égide da ditadura militar, o que confere a Tendler uma postura corajosa e desafiadora, principalmente por tratar de personagens pouco queridos pelo regime: Juscelino Kubitschek e João Goulart.


Cartaz do documentário Os anos JK do cineasta brasileiro Silvio Tendler

Muito mais do que duas simples biografias, Os anos JK (1980) e Jango (1984) são documentários históricos que apresentam de forma didática momentos importantes do Brasil pós-Primeira República. Sem serem cansativos ou demasiadamente detalhistas, os filmes podem, inclusive, servir como recursos pedagógicos importantes em salas de aula.


As comparações entre Os anos JK e Jango fazem sentido porque ambos tratam de dois personagens coetâneos, que chegaram ao principal posto político do Brasil com uma diferença temporal curta e que aparecem conectados em vários momentos da história do país. Lançados no início da década de 1980, com boas bilheterias e vencedores de diversos prêmios, os documentários tiveram as narrações dos atores Othon Bastos e José Wilker, respectivamente.


Para contar as histórias, foi preciso fazer um corte no início da trajetória de vida dos ex-presidentes. Tendler optou por abordar Juscelino Kubitschek a partir da sua entrada na política partidária, com o fim do Estado Novo (1937-1945). O mesmo foi feito com João Goulart, que também começou a ter sua história contada a partir daquele período. Essa estratégia foi positiva para não cansar o espectador com imagens desnecessárias da infância e/ou da vida pregressa dos ex-presidentes.


Cartaz do documentário Jango do cineasta brasileiro Silvio Tendler

O uso dos depoimentos – recurso quase sempre empregado por diretores de documentários – funciona melhor em Jango do que em Os Anos JK. Enquanto no primeiro a variedade de testemunhos é maior – com quinze ao todo –, o segundo tem apenas oito. É claro que a quantidade mais ampla de falas não é garantia de bom entretenimento, mas Tendler consegue mesclar bem o tempo de cada um dos depoentes em Jango, não tornando suas falas cansativas ao espectador. Em Os Anos JK, percebe-se um tempo maior para cada uma das pessoas que são entrevistadas, o que pode dispersar quem está assistindo.


Algumas questões ficam latentes na leitura política que se pode fazer dos filmes. Em Os Anos JK, vemos um protagonista marcado como alguém possuidor de um carisma sem igual, negociador, habilidoso, típico mineiro e pessedista – nos termos de Lucia Hippolito (1985), uma verdadeira “raposa”. Em Jango, tem-se uma imagem laudatória do personagem, apresentado como um exímio lutador por direitos sociais, reformista por excelência. Chega-se ao ponto de dizer que João Goulart era filho de proprietários rurais, mas sempre “convivendo com os peões”. Essas estratégias podem resvalar no que Pierre Bourdieu (2006) chamou de “ilusão biográfica”, ou seja, uma tentativa de se desenhar uma trajetória retilínea da vida de alguém, priorizando narrativas que excluam eventuais posturas contraditórias.


A questão da morte dos ex-presidentes, que faleceram coincidentemente no mesmo ano de 1976, é tratada de formas diferentes em cada um dos filmes. Em Os Anos JK, cujo personagem central morreu em um acidente de trânsito, é levantada a suspeita de suicídio ou assassinato – o que foi descartado pela Comissão Nacional da Verdade em 2014. Em Jango, há um silêncio sobre as circunstâncias da morte de Goulart, que, segundo laudo médico, foi causada por um ataque cardíaco. Em outro filme conhecido sobre o ex-presidente, Dossiê Jango (2013), o diretor Paulo Henrique Fontenelle aventou a hipótese de assassinato como causa mortis, baseando todo seu documentário nessa hipótese. Vale lembrar que, após a exumação do corpo de João Goulart, também ocorrida em 2014, constatou-se que não havia resquício de envenenamento.


O cineasta Silvio Tendler
O cineasta Silvio Tendler. Autora: Gabriela Nehring. Fonte: Caliban Produções Cinematográficas.

Além da antiga teoria conspiratória que foi deixada de lado no filme Jango, Tendler também abriu mão de outra polêmica no filme Os Anos JK: a investigação sobre o tríplex que estaria no nome de Juscelino. Apesar de nada ter sido comprovado, o ex-presidente teve sua imagem desgastada à época por causa dessas suspeitas e de outras acusações, que passam quase despercebidas no filme.


Em geral, a reconstituição historiográfica dos fatos que aconteceram em ambos os filmes é boa. Logicamente, por conta da similitude temporal do contexto, muitos eventos iguais são narrados nos dois documentários de Silvio Tendler. Mas, ainda assim, o esforço de contá-los de maneira diferente em cada obra é louvável.


Um dos momentos mais interessantes de Os Anos JK é a reconstituição, com várias imagens e vídeos da época, da transmissão da faixa presidencial entre Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros. Os discursos respeitosos dos dois nomes, contrastantes com a acalorada campanha presidencial que precedeu a eleição de Quadros, mostra o quanto o bolsonarismo está mesmo abaixo da mínima civilidade desejada. No caso de Jango, a cena mais impactante é logo a inicial, em que o diretor reproduz na íntegra a visita do então vice-presidente à República Popular da China com fotos até então inéditas, além da leitura do discurso de João Goulart na ocasião. Como se sabe, esse evento foi um dos detonadores da crise que seria instaurada após a renúncia de Jânio, com a recusa dos ministros militares em aceitarem a posse de Jango, o que desembocou na solução parlamentarista (FIGUEIREDO, 1993). Junto a essa cena, é chocante também revisitar o áudio do momento em que foi decretada a vacância do poder pelo Congresso Nacional, em abril de 1964, com os gritos abafados da oposição e a comemoração por parte dos golpistas, sendo difícil não se sensibilizar pelo ocorrido.


Os acontecimentos que levaram ao golpe de 1964 são bem analisados nas duas obras. Novamente, vê-se que a preocupação de Tendler foi ser pedagógico com quem está assistindo, sem jamais ser entediante. Reproduzidos nos dois filmes – por motivos óbvios –, os eventos são apresentados com recursos visuais distintos, mas ambos impactantes.


Também é interessante a abordagem feita acerca do período posterior à presidência de Juscelino Kubitscheck e João Goulart, ou seja, os anos iniciais da ditadura. O primeiro é visto como obcecado para retornar ao cargo, no que ficou conhecido como a campanha JK-65 (HIPPOLITO, 1985). Já Goulart é mostrado a partir de algumas fotos em seu exílio no Uruguai, levando uma vida pacata com sua família, o que é transmitido de forma dramatizada, com fundo sonoro melancólico.


Especialmente em Jango, o espectador pode se sentir no clima da radicalização política dos anos 1960, com imagens e reportagens de época. Isso é feito com cuidado primoroso, apresentando-se fotos de comícios dos dois lados da polarização, além de discursos inflamados que explicam, em parte, o que viria a desembocar no golpe que levaria à longa ditadura militar brasileira.


Não deixa de ser surpreendente verificar a coragem e a audácia de Silvio Tendler em lançar os dois filmes em contextos tão sintomáticos para a história brasileira. No caso de Os Anos JK, o trabalho foi divulgado pouco depois da decretação da anistia pelo governo militar, em uma época de esperanças sobre uma possível volta à democracia. Jango, por sua vez, foi lançado na época da campanha pelas Diretas Já, com toda a euforia que depois seria abafada pela derrota da Emenda Dante de Oliveira, que daria a possiblidade do voto direto para presidente da República. Mesmo com alguns problemas, naturais em qualquer obra desse gênero, Silvio Tendler ofereceu ao telespectador dois longas-metragens essenciais para qualquer um que se interesse pela complexa história do Brasil.


Créditos da imagem destacada: Reprodução.


 

Referências:

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

FIGUEIREDO, Argelina C. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

HIPPOLITO, Lucia. De raposas e reformistas: o PSD e a experiência democrática brasileira (1945-64). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.



Como citar este artigo:

RIBEIRO, Guilherme Leite. Os anos JK e Jango: o olhar cinematográfico de Silvio Tendler para o Brasil. História da Ditadura, 27 mar. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/os-anos-jk-e-jango-o-olhar-cinematografico-de-silvio-tendler-para-o-brasil. Acesso em: [inserir data].

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