Nostalgia democrática, ontem e hoje
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  • Foto do escritorBárbara Goulart

Nostalgia democrática, ontem e hoje

Em 2020, defendi minha tese de doutorado, na qual analisei as memórias sobre o governo João Goulart – a tese virou livro, O Passado em Disputa: memórias políticas sobre João Goulart, que pode ser adquirido por aqui. Para o trabalho, realizei 22 entrevistas. Os entrevistados foram: Agostinho Guerreiro, Almino Affonso, Anita Prestes, Arnaldo Mourthé (in memoriam), Carlos Fayal, Cecília Coimbra, Clóvis Brigagão, Daniel Aarão Reis, Dulce Pandolfi, Eduardo Costa, Eliete Ferrer, Flora Abreu, Ivan Pinheiro, Marcello Cerqueira, Maria Prestes (in memoriam), Milton Temer, Pedro Luiz Moreira Lima, Raphael Martinelli (in memoriam), Sílvio Tendler, Tânia Fayal, Trajano Ribeiro e Victória Grabois.


Um dos conceitos que trouxe na conclusão da minha pesquisa foi o de nostalgia democrática. Argumentei que muitas figuras de esquerda que entrevistei para o trabalho admitiram ter tido uma posição mais crítica em relação a João Goulart quando ele era presidente. À época, achavam que Jango conciliava demais, ouvia amigos conservadores e poderia ter feito mais pelo povo trabalhador. Porém, com o golpe de 1964 e a instalação da ditadura militar, muitos desses entrevistados disseram que passaram a rever suas opiniões sobre Goulart.


Ivan Pinheiro, que era militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), disse que “era Jango” e que o ex-presidente deveria ser mais “heroificado” pelo que fez. Para Cecília Coimbra, que fez parte do PCB e depois foi presa pela ditadura por ter abrigado membros do MR-8 em sua casa, Jango foi “um mito”. Cecília é também fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM-RJ) (atualmente estou realizando uma pesquisa sobre o grupo). Segundo ela, havia muito “respeito pela integridade” de Jango. Ela disse que “logo em 65 ou 66” começou a repensar a decisão de Goulart de não resistir com armas ao golpe e entendeu que “não tinha como resistir”.


Anita Prestes admite que o PCB acreditava que Goulart “vacilava bastante”, mas que depois ela e seu pai Luiz Carlos Prestes fizeram “autocrítica” em relação à radicalização do Partido. Tânia Fayal, que fez parte da Ação Libertadora Nacional (ALN), admite que o “Partidão acusava o Jango de reformista”, mas ela já tinha “uma visão muito janguista daquilo”. Para Eliete Ferrer, que também fez parte da ALN, “Jango é um herói brasileiro”. Ela diz que achou “uma lástima ele não ter resistido”, mas que entende sua decisão, pois “ele era uma pessoa boa”. Por fim, Victória Grabois, que foi do PCdoB e que também participou da fundação do GTNM-RJ, conclui que “a esquerda só se alia nessa desgraça”.


Para os entrevistados, João Goulart já havia feito muito mais do que outros presidentes: ele aprovou a Lei de Remessas de Lucros e propôs diversas mudanças profundas na sociedade brasileira, como as reformas agrária, tributária, educacional, urbana, eleitoral e bancária. Os entrevistados de esquerda comentavam sobre como era boa aquela época, com liberdade para se manifestar politicamente e até mesmo para criticar o presidente. Alguns comentaram que esse teria sido o período mais democrático que o Brasil viveu. Para Cecília Coimbra, “era um tempo lindo”. Para Victória Grabois, “a gente vivia tanto a democracia, era tão democrático o governo João Goulart”. Para Ivan Pinheiro, as reformas “entusiasmavam muito”.


João Goulart no Comício das Reformas, realizado no dia 13 de março de 1964 na Central do Brasil, Rio de Janeiro. Imagem: Reprodução.

Chamei isso de nostalgia democrática pois, com a instalação de um governo autoritário, todas as críticas que se fazia ao governo anterior pareciam pequenas e insignificantes: tudo o que tinham foi perdido com a chegada dos militares ao poder. Não havia mais manifestações nas ruas, as passeatas foram proibidas, muitos tiveram que se exilar e outros sofreram a barbárie da tortura. As críticas aos fardados agora só podiam ser feitas na calada da noite e entre poucos amigos. “Ah, o passado democrático era tão melhor...”

Acredito que hoje um movimento similar está ocorrendo entre as esquerdas. Depois de quatro anos de Bolsonaro no poder, o governo Lula parece um sonho distante, um momento idealizado em um passado que não existe mais. Comer picanha no almoço? Viajar para a Disney? Pagar todas as contas no final do mês? Quando isso foi possível? O presidente de hoje defende publicamente torturadores, diz que a própria filha foi resultado de uma “fraquejada”, faz discursos homofóbicos e ameaça dar um golpe caso não seja reeleito. “Ah, o passado democrático era tão melhor...” E lá voltamos para a nostalgia democrática.

Vivemos ainda um momento de tensão, sem saber se essa democracia voltará ou não no ano que vem. Entretanto, é preciso lembrar que o Brasil de hoje infelizmente não é mais o mesmo dos anos 2000. Vivemos uma crise econômica, social e institucional, em que muitos voltaram para a extrema pobreza e não tem mais o que comer ao final do dia. Pior do que isso, o país está fraturado entre os que amam e os que odeiam Bolsonaro, sendo quase impossível o diálogo entre as partes. Lula não vai conseguir resolver tudo isso em poucos meses, pois é muito mais fácil destruir do que reconstruir um país.

Mas então o que podemos fazer? Talvez a solução seja a mesma da nostalgia democrática. Talvez o que possamos fazer é simplesmente valorizar mais a democracia e as pequenas vitórias. Talvez não consigamos transformar o Brasil e resolver todos os seus problemas, mas talvez possamos conversar mais, nos abraçar mais e pouco a pouco começar a subir essa frágil escada que nos tira do fundo do poço. “Ah, o passado democrático era tão melhor...” Que voltemos pelo menos à democracia!


 

REFERÊNCIAS:

GOULART, Barbara. O Passado em Disputa: memórias políticas sobre João Goulart. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2022.


Como citar este artigo:

Goulart, Bárbara. Nostalgia democrática, ontem e hoje. História da Ditadura, 27 out. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/nostalgiademocraticaontemehoje . Acesso em: [inserir data].


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