Victor Figols
As camisas de Bolsonaro (ou muito além de uma coleção de camisas de futebol)
Não é de hoje – e muito menos é novidade – que futebol e política se misturam. Com a rápida popularização do esporte, ainda no começo do século XX, os governos enxergaram nele uma ótima ferramenta de controle e disciplinamento social. Com a ascensão dos regimes totalitários nos anos 1920 e 1930 – somado à emergência da sociedade de massas –, o controle sobre o futebol ganhou mais um aspecto: o nacionalismo. Na Espanha, com as ditaduras de Primo de Rivera (1923-1930) e Francisco Franco (1939-1975), na Itália fascista de Benito Mussolini (1922-1943), na Alemanha nazista de Adolf Hitler (1933-1945), em Portugal de António de Oliveira Salazar (1933- 1974), no Brasil de Getúlio Vargas (1930-1945), o futebol – em maior ou menor grau – foi usado como catalizador de discursos nacionalistas, mas também como forma de promover esses governos.
Anos mais tarde, já nas décadas de 1960 a 1980, o uso político do futebol pelas ditaduras militares latino-americanas ganhou novos aspectos, graças às competições intercontinentais, que contribuíam para inflamar os discursos nacionalistas. Na Argentina, o ditador Jorge Rafael Videla, usou a seleção albiceleste e a Copa do Mundo de 1978 para promover o seu governo. Enquanto a bola rolava, diversos presos políticos eram torturados a poucos quarteirões do Estádio Monumental de Núñez. No Chile, o ditador Augusto Pinochet (1973-1990) se fez presidente do Club Social y Deportivo Colo-Colo, um dos clubes mais populares do país. Na Bolívia, o general Luis García Meza (1980-1981) tornou-se presidente do Club Deportivo Jorge Wilstermann. Já a ditadura uruguaia (1973-1985) tentou usar o Mundialito de 1980 para se promover.
No Brasil, o futebol e a Seleção Brasileira também foram instrumentalizados pela ditadura civil-militar (1964-1985). Talvez o caso mais emblemático tenha sido durante a Copa do Mundo de 1970, quando não só o discurso nacionalista patriótico da ditadura ganhou força com a conquista da Seleção, mas também toda a estrutura futebolística foi mobilizada pelo regime. Ao som da música “Pra frente Brasil!” e com os lemas “Brasil, ame-o ou deixe-o” e “Ninguém segura esse Brasil”, a conquista da Copa de 1970 se confundia com o chamado “milagre econômico”.
Porém, desde antes de começar a campanha presidencial de 2018, Jair Bolsonaro vem fazendo uso político do futebol de uma maneira diferente. O presidente da República não se aproximou da Seleção Brasileira, e muito menos evocou um discurso nacionalista em torno da camisa amarela – ainda que desde 2013 ela venha sendo apropriada e amplamente usada por setores mais conservadores e de extrema-direita. O caminho foi outro: Bolsonaro usa as camisas de futebol como instrumento populista, buscando se aproximar do maior número de torcidas possíveis.
A coleção de camisas
As primeiras aparições com camisas de futebol foram ainda em 2018, quando mal tinha começado a campanha presidencial. Aos poucos – e com certa regularidade –, Bolsonaro fez aparições públicas vestindo os uniformes de diferentes times, principalmente dos grandes clubes de cada estado: Avaí, Figueirense e Chapecoensse, de Santa Catarina; Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo, do Rio de Janeiro; Athletico Paranaense, Coritiba e Paraná Clube, no Paraná; Corinthians, Palmeiras e Santos em São Paulo – curiosamente, ou não, estados que são considerados celeiros do bolsonarismo. Ainda em campanha, quando estava em viagem à região Norte, Bolsonaro apareceu publicamente com a camisa dos dois grandes clubes do Pará: o Clube do Remo e o Paysandu Sport Club. Ainda antes da fatídica facada, o presidente apareceu publicamente com camisas de alguns clubes do Nordeste: ainda em 2017, Bolsonaro aparece com a camisa do Sport Club do Recife.
Já eleito – e recuperado da facada –, Bolsonaro apareceu não só com a camisa do Palmeiras, como também esteve presente no Allianz Parque na comemoração do título do Campeonato Brasileiro de 2018. Mais do que aparecer publicamente com o uniforme do clube paulista, Bolsonaro inovou ao ser o primeiro presidente da República a levantar uma taça do Campeonato Brasileiro. A cena foi acompanhada de vaias e aplausos por parte da torcida do Palmeiras. O presidente voltaria a levantar uma taça em 2019, após a Seleção Brasileira conquista a Copa América de 2019.
Entre 2019 e 2020, Bolsonaro passou a utilizar com mais frequência camisas de clubes do Nordeste, vestindo a camisa das principais agremiações: Ceará e Fortaleza (Ceará); Campinense, Botafogo e Treze Futebol Clube (Paraíba); Sport, Náutico e Santa Cruz (Pernambuco); e Bahia e Vitória (Bahia).
Já no contexto da pandemia de coronavírus, o presidente apareceu vestido – por mais de uma vez – com o uniforme do Esporte Clube Bahia. O clube baiano tem uma gestão progressista, e constantemente levanta pautas como a luta contra a LGBTfobia e contra o racismo. Vale lembrar também que, ainda em 2019, o Bahia lançou uma camisa manchada de óleo, em protesto ao descaso do Governo Federal diante do vazamento que atingiu o Norte e o Nordeste do país.
De 2018 a 2022, Bolsonaro já apareceu em público com pelo menos oitenta e seis camisas diferentes, sendo setenta e três camisas de clubes brasileiros, sete de seleções nacionais, quatro de clubes estrangeiros, uma da campanha “Natal Sem Fome” de 2020 e uma camisa de um clube de futsal. De rivais locais a times de expressão regional, a coleção de camisas de futebol de Bolsonaro tem de tudo: clubes amadores e semiprofissionais, agremiações de todas as divisões nacionais, equipes europeias e do Oriente Médio e seleções nacionais. E esqueça qualquer fidelidade clubística ou colecionismo: por trás de cada camisa há um motivo, uma intenção, uma mensagem. Por mais que o governo negue que haja uma intencionalidade no uso das camisas, é impossível não observar que as camisas servem para amenizar polêmicas, desviar o foco, ou até mesmo para passar uma mensagem.
Em 2018, logo depois de vencer as eleições, Bolsonaro apareceu comendo pão com leite condensado em sua casa. Na ocasião, vestia uma camisa do Palmeiras. Já em 2019, Bolsonaro posou para uma foto ao lado dos seus ministros, vestindo, novamente, uma camisa do time paulista – que, segundo alguns internautas, parecia ser uma cópia não oficial –, calça de moletom e chinelo. Essas aparições tentam passar uma imagem de uma pessoa simples e comum, de um “homem do povo”, e dialogam com outros eventos em que o presidente buscou mostrar-se como um homem simples e “do povo”, coisa que, obviamente, não é.
No mesmo sentido estão o uso da caneta Bic, em sua posse, ou pior, o vídeo em que o presidente está comendo frango e completamente sujo de farofa, de 2022. Assim como nas aparições com a camisa do Palmeiras descritas acima, há uma tentativa de se mostrar como de pessoa simples, mas que na verdade, o presidente aparece como uma pessoa porca, suja e grotesca. Essa estratégia de aproximar-se de uma simplicidade revela, antes de mais nada, a visão que Bolsonaro tem da pobreza e dos pobres. Aliás, essa leitura da pobreza e a busca pelo “homem comum” é um aspecto do fascismo.
Em 2020, em uma visita ao Maranhão, Bolsonaro fez uma piada homofóbica ao beber o Guaraná Jesus, um refrigerante cor-de-rosa: “Virei boiola, igual maranhense”. No mesmo dia, mais tarde, em sua live semanal, Bolsonaro apareceu com a camisa do Sampaio Corrêa, time de São Luís, e em sua mesa havia uma latinha do Guaraná Jesus. Em um dado momento da live, Bolsonaro perguntou para um de seus assessores: “Que time é esse aqui?”, mostrando o seu total desconhecimento sobre a camisa que estava vestindo.
Uma camisa, um significado
Mas nem todas suas aparições públicas com as camisas são “espontâneas”. Na verdade, Bolsonaro recebeu de presente várias camisas, muitas delas de presidentes dos clubes. A elite conservadora que comanda o futebol dialoga com vários aspectos do bolsonarismo, e não por acaso, eles buscam se aproximar de Bolsonaro por meio desses presentes. Em contrapartida, o presidente aparece publicamente com as camisas das agremiações, como uma forma de mostrar apoio. É uma via de mão dupla: de um lado, os clubes sinalizam apoio a Bolsonaro; do outro, Bolsonaro acena para os presidentes das agremiações e suas respectivas torcidas.
Talvez o maior exemplo de aproximação de uma diretoria de um clube com o presidente seja o caso do Flamengo. Os dirigentes cariocas, principalmente na gestão de Luiz Rodolfo Landim, cansaram de presentear Bolsonaro com a camisa rubro-negra. Por outro lado, Bolsonaro retribuiu vestindo o manto flamenguista em várias ocasiões e, em mais de uma oportunidade, foi ao Maracanã assistir uma partida do time carioca.
Por trás dessa relação entre Bolsonaro e Flamengo, há que considerar um aspecto importante: a Rede Globo e os direitos de transmissões dos campeonatos de futebol. Há, mutuamente, interesses políticos e comerciais em jogo. O Flamengo de Landim buscando romper com o monopólio da Rede Globo, enquanto o Bolsonaro tenta enfraquecer a maior emissora de televisão do país. Vale lembrar que as inúmeras críticas e os ataques que o presidente da República faz à Rede Globo. A aprovação da “Lei do Mandante”, em agosto de 2021, que acabou com o monopólio da emissora, significou uma vitória do clube carioca e do bolsonarismo.
Dentre os principais clubes do Brasil, o São Paulo Futebol Clube é o único cuja camisa Bolsonaro nunca vestiu – o que também é significativo e simbólico. Uma das hipóteses que explica isso é a LGBTfobia, visto que, ao longo das últimas décadas, o São Paulo foi estigmatizado pelos rivais como um clube de “bambis”, nos termos homofóbicos utilizados pelas outras torcidas. Diante disso, o fato de Bolsonaro atrelar a sua imagem a uma certa masculinidade e virilidade inviabilizaria uma aparição pública com a camisa do São Paulo. É preciso considerar também as incontáveis declarações LGBTfóbicas do presidente.
A outra hipótese é que a diretoria não queira se associar ao bolsonarismo. Na última gestão do clube, o responsável pelo futebol era o ex-jogador Raí, irmão mais novo de Sócrates, ídolo corintiano e uma das lideranças da Democracia Corinthiana. Mesmo na nova gestão, existe uma forte oposição às ideias bolsonaristas e ao uso político do clube. Vale lembrar que, nos primeiros meses de pandemia do coronavírus, o clube do Morumbi reforçou a sua comunicação no combate ao vírus e colocou as suas dependências para atender os doentes, enquanto o Governo Federal propagava desinformação e negacionismo. Depois, já com a vacinação em curso, o São Paulo disponibilizou o seu estádio para ser um posto de vacinação. É certo que Bolsonaro já visitou o estádio do Morumbi, mas não a convite do tricolor paulista, e sim para acompanhar uma das partidas da Copa América de 2019.
As duas últimas aparições públicas do presidente da República com camisas de futebol são significativas e podem dizer muito. Em dezembro de 2021, quando estava em viagem à Espanha, Bolsonaro visitou Santiago Abascal e posou para uma foto vestindo a camisa da Seleção Espanhola. Vale lembrar que Abascal é presidente do Vox, um partido de extrema-direita ultraconservador com raízes franquistas. Por fim, em junho deste ano, quando apareceu comendo macarrão instantâneo vestindo a camisa do clube italiano Società Sportiva Lazio. Ao seu lado estava Mário Frias, ex-secretário especial da Cultura. O macarrão instantâneo remete à imagem de “homem simples” (que já mencionamos anteriormente); já a camisa da Lazio é um aceno para o fascismo. A Lazio é um clube fundado por uma elitista romana, que durante o regime fascista aproximou-se de Mussolini, e ao longo de toda a sua história – e até os dias de hoje –, tem uma torcida que faz uso de símbolos fascistas. Durante as partidas, é possível ouvir músicas saudando Mussolini, cânticos racistas, LGBTfóbicos e antissemitas. Não raro, também é possível ver bandeiras com símbolos fascistas.
É difícil calcular o ganho político ao vestir tantas camisas de futebol, mas é possível dizer que, dentro da bolha bolsonarista, cada aparição pública com uma camisa de futebol é um sinal, um aceno para os seus apoiadores. Além disso, é possível notar uma tentativa populista por parte do presidente da república. Não é por acaso que as camisas do Palmeiras e do Flamengo foram as mais usadas. Os dois clubes estão em evidência devido as recentes conquistas, e no caso do Flamengo, ainda tem o fato do clube ter a maior torcida do Brasil, cerca de 32 milhões de torcedores espalhados por todo o país.
Para além das quatro linhas, o futebol é um terreno de eternas disputas políticas. Se no passado houve a apropriação e instrumentalização da camisa da Seleção Brasileira, e em 2013 a camisa amarela foi definitivamente sequestrada pela extrema-direita, hoje vemos Bolsonaro colocar em disputa as camisas dos clubes. Um aspecto do fascismo é a mobilização de emoções, sentimentos e paixões, e no Brasil, nada mais passional do que futebol. Assim, quando Bolsonaro aparece com uma camisa de futebol, ele coloca em disputa e tensiona essas paixões. Então, cabe a nós, enquanto torcedoras e torcedores, impedir que fascistas sequestrem – também – o esporte mais popular do país.
Fontes:
Lista de camisas: clique aqui
Como citar este artigo:
FIGOLS, Victor. As camisas de Bolsonaro (ou muito além de uma coleção de camisas de futebol). História da Ditadura, 29 ago. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/ascamisasdebolsonarooumuitoalemdeumacolecaodecamisasdefutebol. Acesso em: [inserir data].
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