Bolsonaro contra Nise, ou a tortura contra a cura
Atualizado: 7 de jun. de 2022
No dia 25 de maio de 2022, o nome da psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999) entrou na pauta dos noticiários de todo o país, embora não necessariamente por um bom motivo. Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro vetou o Projeto de Lei 6.566/2019 que inscrevia a médica no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. De autoria da deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), o PL já havia sido pré-aprovado pelo Plenário do Senado. No entanto, o presidente afirmou que não era possível avaliar “a envergadura dos feitos da médica Nise Magalhães da Silveira e o impacto destes no desenvolvimento da nação, a despeito de sua contribuição para a área da terapia ocupacional”. Em sua justificativa, também acrescentou que, na lista, deve-se priorizar o reconhecimento de personalidades da história do país em âmbito nacional, “desde que a homenagem não seja inspirada por ideais dissonantes das projeções do Estado democrático”. O veto chama a atenção por sua injustiça, que revela o desprezo do presidente sobre os ensinamentos da médica. Porém, para além disso, tem um pano de fundo profundamente político. Em primeiro lugar, porque os “ideais dissonantes” a que Bolsonaro se refere são os de esquerda e, embora ele provavelmente desconheça os pormenores da trajetória de Nise, sabe muito bem que ela participou da intectualidade comunista e chegou a ser presa política. Em segundo lugar, mas não menos importante, porque além de uma tensão “ideológica”, Nise e Bolsonaro encenam formas radicalmente distintas de conceber o sofrimento humano e lidar com este. Trata-se aqui da disputa entre o apologista da tortura e alguém que, reconhecendo-a, enveredou para o caminho da cura. Por isso, é fundamental compreender como se abriram esses caminhos na história de vida de Nise e em sua memória no século XXI.
Nise da Silveira nasceu em Maceió, em 1905, no seio de uma família de classe média. Sua mãe era pianista; seu pai, jornalista e professor de matemática. Estudou em um colégio de freiras francesas, o que lhe proporcionou desde cedo a oportunidade de estudar línguas estrangeiras. Com o apoio familiar, ingressou, aos dezesseis anos, na prestigiosa Faculdade de Medicina da Bahia. Porém, sua trajetória logo seria impactada por uma série de adversidades, a começar pela própria graduação universitária. Na década de 1920, a formação médica era não somente hierárquica, como também majoritariamente masculina. Nise foi a única mulher formada em sua turma, entre mais de cento e cinquenta homens.
Pouco depois de obter seu diploma, seu pai faleceu, o que desestabilizou sua situação financeira. Junto a seu companheiro de vida inteira, o também médico Mário Magalhães da Silveira, a médica recém-formada decidiu tentar a vida no Rio de Janeiro, cidade que oferecia possibilidades promissoras em sua área de atuação. Na então capital federal, estagiou na clínica neurológica de Antônio Austregésilo, que a incentivou a fazer um concurso público na área de Psiquiatria. Em 1933, foi aprovada e passou a trabalhar no Hospital Nacional de Aliados, na Praia Vermelha.
O sucesso, porém, seria atravancado com a ascensão de Getúlio Vargas, que em 1937 instaurou a ditadura do Estado Novo – de caráter anticomunista. Ao chegar ao Rio de Janeiro, Nise flertou com o Partido Comunista do Brasil (PCB), participando de reuniões e se engajando em leituras. Mesmo sem ser uma liderança do partido, o fato de possuir livros marxistas em seu gabinete de trabalho foi suficiente para justificar seu encarceramento no presídio Frei Caneca, onde passou um ano e meio. No cárcere, não chegou a ser torturada, mas viu as torturas serem aplicadas em companheiras de cela, como Olga Benário e Maria Werneck.
Após ser libertada, Nise passou sete anos na clandestinidade até retornar ao serviço público, já em 1944, com a proximidade do fim do Estado Novo. Nesse período, ela tinha quase quarenta anos e os internos do hospital em que trabalhava haviam sido transferidos para o Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro.
Nesse novo contexto, Nise enfrentou mais dificuldades. As principais técnicas de tratamento então vigentes eram a eletroconvulsoterapia (ou eletrochoque) e as psicocirurgias, como a lobotomia. As operações tinham como pano de fundo a concepção fisicalista de que o comportamento humano tem suas bases no cérebro. No entanto, Nise se deu conta de que o caráter puramente “técnico” dessas intervenções era questionável, na medida em que eram aplicadas de forma extremamente violenta. O manicômio, finalmente, assemelhava-se à prisão em que ela mesma estivera confinada. Essa homologia, posteriormente tratada nas Ciências Sociais e na Filosofia por muitos autores – Erving Goffman e Michel Foucault, para ficar com os principais exemplos –, era percebida por ela na sua prática cotidiana.
Foi a partir do gesto de negação dessas práticas que Nise da Silveira veio a afirmar um método terapêutico próprio. Na Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação, setor “abandonado” para o qual havia sido transferida, ela começou a desenvolver um trabalho com as mais diversas atividades ocupacionais, entre as quais a pintura e a modelagem. Isso só foi possível graças ao contato com o artista plástico Almir Mavignier, então funcionário burocrático do hospital. Foi com Mavignier que Nise teve a ideia de oferecer lápis, pinceis e barro a alguns dos mais de dois mil internos da instituição. As atividades eram espontâneas e prezavam a convivência e o cuidado – ou o “afeto catalisador”, em seus próprios termos. Não se tratava de uma escola de arte. Porém, foi o campo artístico da época – notadamente o crítico de arte Mário Pedrosa – que, diferentemente da Psiquiatria, reconheceu a potência do trabalho.
Nise começou a juntar os trabalhos dos internos, agrupá-los e estudá-los. Desenvolveu um método de leitura de imagens, baseado na psicologia junguiana, em que os conteúdos da história pessoal se coadunavam a temas universais, presentes em mitos e religiões. As obras seriam reunidas no Museu de Imagens do Inconsciente, fundado improvisadamente em 1952, no interior do próprio hospital carioca.
Porém, as atividades também tiveram repercussões fora do ambiente hospitalar. Em 1956, Nise fundou a Casa das Palmeiras no espaço cedido por um colégio privado no bairro da Tijuca, onde passaram a ser desenvolvidas as atividades ocupacionais com egressos de internações psiquiátricas. A médica também mantinha um grupo de estudos aberto ao público em sua própria residência, no bairro do Flamengo, que tratava de diversos temas relacionados à psicologia, à filosofia, às artes, à literatura e às ciências sociais. Por conta de sua idade, ela foi aposentada compulsoriamente em 1975, mas permaneceu trabalhando “como estagiária” – em suas próprias palavras – junto a uma equipe de jovens discípulos, que até hoje levam adiante seu legado. Embora tenha sido monitorada pela ditadura militar, não chegou a ser presa novamente. Nas memórias de seus colaboradores, é comum a representação de seu trabalho como um espaço de resistência cultural durante os anos 1970.
Apesar de todos esses feitos, Nise era categórica ao afirmar que seu trabalho era marcado por um “leitmotiv melancólico”. Para muitos de seus colegas psiquiatras, as atividades ocupacionais eram um mero passatempo. Não foram poucas as tentativas de sabotagem, que se intensificavam no contexto misógino e conservador da Medicina. A falta de verbas era uma constante – e as obras não eram vendidas, já que, segundo Nise, deveriam permanecer no Museu para fins científicos. Os animais que circundavam o ambiente ocupacional – e que começaram a ser incorporados na própria prática terapêutica, como potenciais catalisadores – chegaram a ser envenenados. As atividades de expressão, tal como preconizadas pela médica, nunca chegaram a se tornar uma política pública em nível nacional. Ela tampouco era afeita a patrocínios: dizia que preferia ser uma loba faminta a uma cadela encoleirada. Nise não criou escolas de formação: o Grupo de Estudos C.G. Jung não exigia nem fornecia diplomas. Em grande medida, seu trabalho permaneceu na malha de suas relações mais próximas e mais concretas. Era daí que extraía sua potência libertária, mas também suas limitações.
No final da década de 1970, durante a redemocratização, o movimento pela reforma psiquiátrica surgiu para implodir as instituições manicomiais, com forte inspiração na psiquiatria democrática de Franco Basaglia, entre outros autores europeus ou norte-americanos. Entretanto, demoraria para que as particularidades do trabalho de Nise fossem incorporadas como uma referência nesse campo. Práticas artísticas surgiram nos posteriores serviços substitutivos de atenção psicossocial, sendo, porém, voltadas mais para a geração de renda e a autonomia dos usuários do que para a prática clínica ou o estudo científico, como preconizado por Nise. Todas essas transformações, ainda, vieram acompanhadas da difusão da psicofarmacologia como principal dispositivo de tratamento psiquiátrico. A psiquiatra, embora não fosse totalmente contra o uso de medicamentos, sabia que eles poderiam funcionar como “camisas de força químicas”. A violência mudara de forma, mas permanecera presente.
Hoje em dia, assim como em meados do século XX, o meio cultural ainda é o principal catalisador dos ensinamentos de Nise. Filmes (como Nise, o coração da loucura, dirigido por Roberto Berliner e protagonizado por Glória Pires), peças de teatro (como a peça Nise – senhora das imagens, de Daniel Lobo), livros e biografias (como a fotobiografia Nise: caminhos de uma psiquiatra rebelde, de Luiz Carlos Mello) proliferaram nas décadas que sucederam ao falecimento da médica, em 1999. Em 2001, o hospital em que trabalhou passou a se chamar Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira. No seu interior, diversos projetos culturais afins aos princípios da reforma psiquiátrica passaram a ser desenvolvidos, como o bloco carnavalesco Loucura Suburbana e a ocupação artística Hotel da Loucura. Apenas muito recentemente, no final de 2021, as hospitalizações de pacientes foram encerradas. O espaço dará lugar a um parque urbano em homenagem à médica e a um memorial da loucura.
A notícia do veto do nome de Nise da Silveira no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria pelo presidente Jair Bolsonaro vem na contramão desse movimento de construção da memória. Afina-se, porém, a todas as adversidades que Nise passou durante sua vida, ao enfrentar o machismo, a violência política e o reducionismo biomédico. Não à toa, o veto vem de um homem profundamente machista, que faz apologia da tortura e que nega o conhecimento científico.
Na verdade, para além do espectro político, que certamente contou para a decisão negativa, é difícil pensar em figuras mais antagônicas que Bolsonaro e Nise. De um lado, um presidente que faz morrer, deixa morrer e elogia a morte – basta enxergar seu desgoverno durante a pandemia ou suas declarações laudatórias sobre a ditadura militar. Do outro, alguém que percebeu a vida nos hospitais psiquiátricos – esses “cemitérios dos vivos”, nos termos de Lima Barreto – e que, portanto, a valorizou acima de todas as coisas. Não à toa, essas diferentes formas de compreender o sofrimento humano partem de corpos também radicalmente distintos. De um lado, um homem representante dos interesses da elite branca e, de outro, uma mulher não somente vermelha, mas também imigrante e nordestina.
Embora injusto, o veto de Bolsonaro não deixa de ser a prova cabal da potência do trabalho de Nise, que propõe o afeto em oposição ao tormento, o cuidado em oposição ao abandono. Por fim, fica a dúvida se Nise gostaria de ser cravada em uma memória nacional. Pois ela era sim uma heroína, mas uma heroína do ordinário e do cotidiano, que encontrava as pequenas luzes que atravessavam as frestas nos muros do hospital.
Como citar este artigo:
MAGALDI, Felipe. Bolsonaro contra Nise, ou a tortura contra a cura. História da Ditadura, 31 mai. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/bolsonarocontraniseouatorturacontraacura. Acesso em: [inserir data].
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