Claquete 1: memórias sobre passados não projetados
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  • Foto do escritorNashla Dahás

Claquete 1: memórias sobre passados não projetados

Atualizado: 9 de mar. de 2022

 

Na primeira edição de Esquinas latino-americanas, a historiadora e idealizadora da coluna Nashla Dahás delineou um importante objetivo para este espaço: trabalhar com as “memórias radicais” daquelas e daqueles que viveram a iminência revolucionária na América Latina. Certamente, a história não se resume ao feito-comprovado-registrado. O que é apenas planejado também é matéria da história e para a História. Do mesmo modo, no leque ampliado do que figura nesse rol podem estar as trajetórias vividas a reboque do que foi possível projetar: vidas que tiveram seus planos frustrados ou que simplesmente não portaram projetos. O texto de hoje é um convite para um passeio por narrativas traçadas por grupos que foram surpreendidos pelo caminho dos acontecimentos do passado e que usaram seus presentes para elaborar o curso de suas trajetórias.

Os golpes de Estado que assolaram a América Latina na segunda metade do século XX foram ações políticas que visavam o realinhamento econômico do continente para o seu papel histórico de periferia do mundo capitalista. Ao mesmo tempo que tais ações impedem a emancipação econômica da região, também se colocam como eventos traumáticos que nublaram horizontes possíveis e projetos de mundo distintos. Esse atravessamento ocorreu de maneira muito explícita na forma como os governos militares fraturaram famílias com práticas de tortura, desaparecimento forçado e separação entre familiares, provocando assim ausências diversas. Só que cada corpo desaparecido de um sujeito, assim como cada vida desviada da convivência com os seus, carrega consigo a potencialidade transformadora das ações, e com isso, os golpes militares também representaram uma severa inflexão nos projetos de mundo planejados por toda uma geração. Uma ausência de sonhos, sentidos e percepções coletivas, se materializando em forma de trauma geracional.

Frente às múltiplas ausências, dos corpos desaparecidos, de explicações sobre acontecimentos traumáticos e fatais ou horizontes de expectativas possíveis, como desenhar o caminho de busca da própria história? Um caminho interessante tem sido trilhado sob as lentes das câmeras e gerado filmes emblemáticos por toda a América Latina, retratos de uma geração que persegue rastros, remonta quebra-cabeças e se dedica a colocar os tijolos em meio a uma estrada repleta de lacunas: histórias pessoais frontalmente atravessadas por políticas repressivas predominantes nas décadas de 1960 a 1980, que ecoam nas famílias, nas comunidades e na sociedade de forma geral.

Uma busca para Mariana Pamplona, que roteirizou o caminho trilhado por sua tia, guerrilheira, psicóloga, militante do movimento estudantil, morta no contexto da Operação Pajussara em 1971, mais de 40 anos antes de sua sobrinha enveredar Em busca de Iara (2014), na tentativa de compreender o que passou com a integrante da família Iavelberg tão presente nas memórias, que chegou a motivar a escolha da mãe de Mariana em não batizá-la com o sobrenome para evitar comparações. Busca que é compartilhada por Iza Grinspun, que também como sobrinha, resolveu deslocar o olhar da figura carinhosa do tio Carlos para poder enxergá-lo desde seu lugar mítico de guerrilheiro procurado pela repressão, Marighella (2012).

Essa busca, no entanto, nem sempre é centrada em conhecer e equilibrar a esfera privada e mítica de figuras que se opuseram às iniciativas repressivas durante as ditaduras. A chilena Lisette Orozco mergulhou na história de sua família e, sobretudo no O Pacto de Adriana (2017), com objetivo de outra busca: entender a relação de sua tia Chany, como é chamada pela família, quando ocupava um posto junto à DINA (Dirección de Inteligencia Nacional), conhecida como polícia política da ditadura pinochetista. A história que é contada no filme carrega também a aparência de um diário e é ensejada, primeiramente, pelo processo de investigação de Adriana, acusada de ter sido torturadora e de ser responsável pela morte de um preso político. A tensão central se dá entre as duas faces da mesma pessoa: Chany, a tia atenciosa que trazia presentes desde a Austrália, e Adriana, acusada de crimes. Eis o caminho tenso pelo qual a história se desenrola. Mas, para além dessas, quem realmente atravessa este caminho na busca de compreender o passado, o presente e a própria história, é Lisette, sua sobrinha.

Signatárias do gênero documental, todas as obras citadas utilizam-se da voz de suas idealizadoras para narrar os passos da busca relatada, passos que caminham por três trajetos: o primeiro metalinguístico, no qual se relata o processo investigativo da história vivida a partir do início da concepção do filme; o segundo conta a história que precede o início da produção e se centra em como a figura investigada era enxergada pela investigadora; e o terceiro remonta à incursão na história que antecede a geração das diretoras e roteiristas: quem eram aquelas pessoas de quem se busca suas histórias antes mesmo do nascimento das idealizadoras desses filmes? Narradoras e narradas: como as histórias se cruzam? Vozes de mulheres jovens, comuns, em processo de construção e busca, expondo intimidades individuais e de suas famílias, mostrando as diversas subjetivações e afetividades que permeiam o processo de investigação. São casos que parecem ir além do movimento de registro sobre como lembram do passado no presente, como definido por Dellamore, Amato e Batista (2015) em relação às produções documentais que tem a ditadura como tema. Trata-se principalmente de um mergulho em um passado não-vivido, mas, de alguma maneira, legado. O passado não vivido passa ser um espaço potente para a construção de uma interpretação sobre o presente, muitas vezes não totalmente conclusiva. Todo o processo é registrado, já que uma vez que não se encontre conclusão fechada, registra-se a busca como elemento fundamental e constitutivo.

Por outro lado, se o passado não vivido carrega tal potencial, o passado (traumático) vivido e registrado por uma memória infantil apresenta outras nuances. Nesse quesito, é comum uma abordagem ficcional para o registro do movimento de revisitação de memórias – sejam elas mais ou menos similares aos acontecimentos, mais ou menos próximas às lembranças. A narrativa cinematográfica guiada pelo olhar infantil, que mira para eventos traumáticos, já pode ser considerado um clássico, vide Cria cuervos (1976) que retrata o período franquista na Espanha, Kamtchaka (2002) que transita pela história de uma família convivendo com a perseguição da ditadura argentina e O Labirinto do fauno (2006) que trata da Guerra Civil Espanhola. O recurso também já havia sido utilizado, de certa maneira, em produções sobre o período pós-segunda guerra – e contemporâneas ao momento histórico – pelo Neorrealismo italiano, como em Ladrões de bicicleta (1948).

Na América Latina pós-ditaduras militares, este tipo de linguagem tem sido adotado não apenas como maneira de demonstrar o interesse do mundo adulto por compreender como as crianças foram impactadas pelos acontecimentos, mas também como esforço das próprias gerações afetadas durante a infância em revisitar esses acontecimentos marcantes. André Woods era uma criança quando ocorreu o golpe no Chile, a família não foi perseguida pela repressão política, mas a fase foi marcada pelos efeitos do acontecimento, como a escassez de alimentos, por exemplo. O diretor retratou a questão em Machuca (2003) a partir das histórias cruzadas de dois meninos em idade escolar e pertencentes cada um a uma classe social: a tensão apresenta a dimensão do impacto do golpe, bem como seu sentido de capilaridade, ao afetar de diferentes maneiras as distintas camadas socioeconômicas.

Cena do filme Machuca (Reprodução)

No Brasil, o reconhecido diretor de programas televisivos Cao Hamburguer entrou para o rol de idealizadores de filmes que usaram a perspectiva infantil para revelar o que se via desde o prisma dos pequenos sobre o cenário geral da ditadura. O ano em que meus pais saíram de férias (2006) recupera 1970, a Copa do Mundo, as ausências e os costumes de um bairro judeu na capital paulista, tudo visto desde as lentes do menino Mauro, que é deixado na casa do avô enquanto seus pais fogem da perseguição política. Cao não é Mauro: não é filho único, seus pais não foram guerrilheiros e nem desaparecidos. Mas Cao também é Mauro: teve os pais presos por esconder procurados pela ditadura, sonhou em ser parte da seleção de futebol, foi criado em meio à cultura judaica. Enfim, viveu a década de 70 desde esse lugar específico de crianças que conviveram com a perseguição em algum grau ao mesmo tempo em que desfrutou do restante dos acontecimentos daquele tempo.

A infância e a juventude desenroladas em seus aspectos comuns – as brincadeiras, a sociabilidade e o primeiro amor – parecem ser incompatíveis com a possibilidade de fazer tais aspectos conviverem com a iminência da violência da repressão. Contudo, é exatamente nessa tensão que se localiza também a narrativa de Benjamin Ávila sobre a vida de Ernesto, o menino-protagonista que apresenta a específica experiência de uma Infância clandestina (2011). Da mesma forma que no caso anteriormente retratado, o filme não é a biografia de Benjamín, mas a correspondência entre a história do diretor e a ficção cinematográfica não se limita à vivência na clandestinidade, mas adentra à dimensão do desaparecimento da matriarca da família e do sequestro de uma irmã. O filme é permeado por tensões como as expressas entre a vida na casa clandestina versus a convivência na escola – onde age como um garoto comum. A tensão metaforiza a transição para a maturidade e, onde essa não alcança, como nas cenas de violência e potencial traumático, recorre-se à utilização eficaz de ilustrações no lugar da encenação com os atores: cenas de uma memória fragmentada, fruto de tentativas de reconstrução.

As três ficções abordadas – a chilena, a brasileira e a argentina – pertencem a dois grupos de memórias geracionais: enquanto os dois últimos tratam das especificidades da violência institucionalizada durante a repressão política, o primeiro orbita na dimensão mais capilar que as ditaduras carregam para além da resistência versus repressão apresentada de maneira mais usual. Assim, o sentido geracional em O ano em que meus pais saíram de férias e em Infância clandestina guarda a particularidade de retratar de alguma maneira a derrota do projeto de seus pais a partir do olhar dos filhos, questão abordada por Vargas (2018) em relação a outras produções. Nos três, a violência figura como possibilidade constante ainda que, na maior parte das cenas, não seja explícita.

De alguma maneira, a experiência de pertencer enquanto criança a uma família de pessoas perseguidas é tão intransponível que um documentário brasileiro da década de 1990 objetivou realizar um primeiro esforço de pensar sobre o tema: o que naquelas infâncias poderia ter relação com as opções políticas de seus pais? É o que indaga Marta Nehring, uma das diretoras de 15 filhos (1996) em seu depoimento para o livro Infância Roubada. A produção reúne relatos de filhas e filhos de pessoas perseguidas, clandestinas, exiladas, mortas ou desaparecidas em razão da repressão, vivências distintas que se encontram na constatação de que entre aquelas protagonistas havia um grupo que compartilhava da mesma experiência.

Nesse passeio proposto, a lente do cinema, documental ou ficcional, apresenta de maneiras distintas as formas pelas quais uma geração fraturada pelo trauma procurou reelaborar sua memória, que é pessoal e específica – como o personagem de Mauro demonstra por meio da sua relação com o bairro, com o futebol de botão e com seu avô –, mas também é coletiva – representado por meio da amizade entre Gonzalo e Pedro, em que as mazelas de uma sociedade injusta são abordadas em meio a um golpe que, dentre outras coisas, findou a possibilidade de uma sociedade mais inclusiva. Sonho esse que se materializa na alegoria do amor entre Juan (Ernesto) e Maria, demonstrando como as ditaduras destruíram, dentre tantas coisas, a própria possibilidade de sonhar.

Tanto nas investidas ficcionais quanto nas documentais, as produções fílmicas aqui tratadas enveredam todas pela estrada da recuperação: do passado vivido, embora ausente em alguma dimensão, ou do passado não vivido e mesmo assim herdado. Revisitar e interpretar essa memória a partir da lente do cinema pode funcionar como uma espécie de reelaboração do trauma, seja ele pessoal ou geracional. Ao mesmo tempo, a concepção do cinema como vetor faz com que o alcance dessas histórias amplie-se, transbordando o espaço de elaboração individual ou geracional em potência de elaboração coletiva. Assim, mesmo considerando que essas histórias tenham nascido de projetos frustrados ou projetos ausentes, a partir da narrativa cinematográfica transformam-se em projetos para o futuro ao deixarem uma mensagem explícita sobre o que não esquecer, sobre o que lembrar, sobre o que não repetir.

Carlos Malaguti Camacho, professor de História da rede privada e doutorando em História pela UFRRJ. Elson Luiz Mattos Tavares da Silva, técnico-administrativo da Unifesp e Mestre em História pela mesma universidade. Luciana Mendes dos Santos, doutoranda em História pela UDESC, bolsista CAPES. Paula Franco, doutoranda em História pela UnB, bolsista CNPq. Juntas, formam o Grupo de Estudos Clandestinos sobre América Latina (GECAL), dedicado a pensar temas candentes da formação latino-americana e de sua trajetória.

 

Filmes citados:

MARIGHELLA. Direção: Iza Grinspum Ferraz. Roteiro: Iza Grinspum Ferraz. Brasil: Downrown FIlmes, TC Filmes, Ancine e outros, 2012. 100 minutos, colorido.

EM BUSCA de Iara. Direção: Flavio Frederico. Roteiro: Mariana Pamplona. Brasil: Kinoscópio, 2013. 91 minutos, colorido.

KAMTCHAKA. Direção: Marcelo Piñeyro. Roteiro: Marcelo Piñeyro e Marcelo Figueras. Espanha-Argentina: Patagonik, Ok!, Alquimia, 2003. 104 minutos, colorido.

CRIA Cuervos. Direção: Carlos Saura. Roteiro: Carlos Saura. Espanha, 1976. 105 minutos, colorido.

LADRÕES de bicicleta. Direção: Vittorio De Sica. Roteiro: Cesare Zavattini; Gerardi Guerrieri; Oreste Biancoli; Adolfo Franci; Suso Cecchi D’Amico. Itália, 1948. 91 minutos, P&B.

MACHUCCA. Direção: Andrés Wood. Roteiro: Andrés Wood, Mamoun Hassan, Eliseo Altunaga, Roberto Brodsky. Chile-Espanha-França-Reino Unido: Paraíso Production Diffusion e outros, 2003. 121 minutos, colorido.

INFÂNCIA Clandestina. Direção Benjamín Ávila. Roteiro: Benjamín Ávila e Marcelo Muller. Argentina-Brasil: Historias Cinematográficas / Habitación 1520 / Antártida / Academia de Filmes, 2012.

O ANO em que meus pais saíram de férias. Direção: Cao Hamburguer. Roteiro: Cao Hamburguer, Anna Muylaert, Claudio Galperin, Bráulio Mantovani, Adriana Falcão. Brasil: Buena Vista Internacional, 2006. 105 minutos, colorido.

O LABIRINTO do Fauno. Direção: Guillermo del Toro. Roteiro: Guillermo del Toro. Espanha-México: Picturehouse Entertainment LLC, Warner Bros e outras, 2006. 119 minutos, colorido.

O PACTO de Adriana. Direção: Lisette Orozco. Roteiro: Lisette Orozco. Chile: Storyboard Media, Salmon Producciones, 2017. 96 minutos, colorido.

15 FILHOS. Direção: Marta Nehring e Maia de Oliveira. Brasil. 18 minutos, P&B e colorido.

 

Referências:

DELLAMORE, Carolina; AMATO, Gabriel e BATISTA, Natália (orgs.). A ditadura na tela. O cinema documentário e as memórias do regime militar brasileiro. Belo Horizonte-MG: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2018.

SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa. Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Infância Roubada, crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil. Assembleia Legislativa, Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – São Paulo: ALESP, 2014.

SILVA, Adriana Alves da. A estética da Infância no cinema: poéticas e culturas infantis. 2014. (tese de doutorado – Educação). Unicamp, Campinas-SP, 2014.

VARGAS, Mariluci Cardoso de. Os testemunhos e suas formas: historiografia, literatura, documentário (Brasil, 1964-2017). 2018. (tese de doutorado – História). UFRGS, Porto Alegre-RS, 2018.

 

Crédito da imagem destacada: Photo by Dariusz Sankowski on Unsplash

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