Emanuel Antunes
Cristãos bolsonaristas matariam Cristo quantas vezes fosse preciso
Atualizado: 3 de mai. de 2022
No prelúdio do dia surge uma multidão ao pé da serra, bem ao lado da Igreja de Santo Antônio. Estamos entre a quinta-feira e a sexta-feira da Paixão, na transição lenta até o sacrífico atemporal de um Cristo pregado na cruz. Segundo a tradição católica, o Deus que se fez homem em sua fragilidade terrena se entrega para que os pecados de todos sejam destruídos, para que tudo que está sob a escuridão seja clareado. Uma matraca ecoa nas ruas da cidade de Limoeiro, em Pernambuco, convocando os fiéis para a última caminhada até o luto total. Barulho ensurdecedor, ingrato, terrível de se ouvir. É a convocatória para a penitência e abnegação, para concretizar o “em memória de mim” da oração eucarística. Subindo a ladeira, estação por estação, contemplando os mistérios, aquela gente comemora, apela a Deus que seus pecados sejam realmente perdoados, deseja que aquilo tudo não seja só uma ilusão, um devaneio coletivo. Na aurora da sexta-feira, a multidão já está a postos num morro muito alto, de onde se vê a cidade em sua totalidade. As serras cortando as nuvens, o planalto da Borborema seguindo seu percurso. Alguém no alto-falante grita: “Viva Cristo ressuscitado”. A multidão é uma festa só.
Naquele instante somos todos irmãos, congregamos a vida num salvador, na santidade do próprio verbo. Esse instante é eterno para alguns e efêmero para outros. Quando os sinos cessam, quando o altar é descoberto, quando o pão retorna para o sacrário, já não somos mais irmãos. Como seremos se eles nos querem mortos, torturados, humilhados? Como conciliar o convívio com gente que celebra a Cristo, Deus feito homem e torturado pela sua criação, e também comemora a vida de ditadores, agentes da censura, elementos corruptos que ganharam a vida matando e perseguindo todos aqueles que fossem contrários à sua ideologia? O ressoar da matraca com seu chamamento de morte é um anúncio da nossa gente. A penitência que encontramos no dia a dia não é provocada pelo acaso, mas é fruto de um esforço coletivo de gente que ignora a sensatez, o bom viver e o próprio Cristo.
Da mesma maneira que comemoram a Paixão do Senhor, também celebram o golpe de 1964, acontecimento que conduziu a República para o seu momento mais nefasto. Para um cristão que apoia Bolsonaro e se alegra com a memória da Ditadura, toda hora, todo instante, é momento para enaltecer a morte. Deve ser por isso mesmo que são tão apegados à tradição cristã – mas não por conta dos ideais de comunhão, solidariedade, respeito ou amor ao próximo, nada disso. Isso é jogado na latrina: para eles, é comunismo, esquerdismo, coisa descartável. Para essa gente, o que existe de belo no cristianismo é a perseguição empreitada por Herodes aos recém-nascidos ou os açoites recebidos pelos hebreus. As lamúrias que eles realizam em razão do sacrifício do cordeiro não são para Cristo, mas para a maneira que ele foi destroçado.
Entre as décadas de 1950 e 1960, nos engenhos da zona da mata ou nos roçados do agreste, os trabalhadores rurais, suas famílias e vizinhos, celebravam a Páscoa agradecendo aos céus pela pouca comida e pela chance de estarem vivos. Outros tantos já tinham sido ceifados pelos capangas dos latifundiários e coronéis. Na mesma região, fazendeiros, políticos, militares e tantas parcelas da sociedade civil, se aglutinavam com ensejos de rompimento da ordem democrática, ansiavam por um golpe de Estado e marchavam em fileiras horrendas. Era a feitura de um processo que em pouco tempo agravaria a miséria, a violência e o ódio de classe.
Vivemos no país onde mulheres de meia idade enchem suas casas de imagens sacras enquanto glorificam Bolsonaro e os ditadores que desgraçaram o Brasil entre 1964 e 1985. Vivemos no lugar em que milhões falam em conservadorismo e em defesa da família, quando desejam praticar infâmias, esfolar pessoas, dar choques em suas genitálias, jogar mulheres grávidas em salas minúsculas junto a serpentes. Essa gente do bem e dos bons costumes quer ver o negro sendo açoitado pela Polícia Militar, como o foi Cristo. Isso é o que eles mais desejam. Vivem para isso, acordam em função da maldade. Se dependesse deles, todos os indígenas do Brasil seriam destruídos para que o gado do agronegócio pudesse transitar na terra arrasada. Se comemoram o 31 de março de 1964 é porque estão incomodados com nossas transformações. Para eles, progresso é extinguir tudo o que é natureza, tudo o que é verdade. É colocar o concreto bruto sobre valas coletivas.
Milhões se valem da tradição, das escrituras e dos pensadores medievais para defender a extrema direita, o conservadorismo e práticas mesquinhas dos partidos fisiológicos brasileiros. São os que colocam Cristo a serviço do capital e da morte. São os padres que realizam cursos sobre a necessidade do porte de armas ou sobre o combate ao comunismo. São os grupos jovens que se dizem mensageiros do Espírito Santo, mas que não passam de agentes do genocídio. Odeiam, matam, violentam. Compartilhamos as fileiras e bancos das Igrejas com esses jovens. Há cinquenta anos, eles ligariam para a polícia para denunciar dominicanos por suas práticas “esquerdistas”, ou formariam um grupo de caça a comunistas, encurralando seus padres paroquianos numa estrada de terra, chutando seus rostos, atirando em seus pés e mãos, criando novas chagas. Temos certeza de tudo isso porque é desse modo que eles agem no presente.
A glória dessa gente é saber que Soledads, Margaridas, Marighellas e tantos outros foram assassinados como o mártir maior de sua religião. Que fique registrado: no tempo em que vivemos, não esquecemos – nem eles, nem nós. Que fique explícito o quanto eles se esforçam num culto macabro, quantos malabarismos fazem para destratar a verdade e resguardar suas convicções de que só a maldade e o ódio valem a pena. São os assassinos de Cristo que andam entre nós, que erguem as velas na Sexta-feira Santa e que ofertam um abraço de paz nas missas. São eles que mataram e farão de tudo para, na mais breve oportunidade, sacrificar quem falar sobre paz, igualdade e justiça.
Crédito da imagem destacada: Ecce Homo, Caravaggio, 1605.
Como citar este artigo:
HOLANDA, Emanuel Antunes da Silva. Cristãos bolsonaristas matariam Cristo quantas vezes fosse preciso. História da Ditadura, 3 mai. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/cristaosbolsonaristasmatariamcristoquantasvezesfossepreciso. Acesso em: [inserir data].
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