João Camilo Portal
Crítica da razão dos sabiás
Para Pedro Henrique Batistella
Já eram três anos desta rotina. Muito embora sentisse certa repulsa em todos os dias ir para trás da casa, estender o prato de comida por debaixo de uma janelinha estreita e, em seguida, pegar o título do autor que seu irmão queria ler, Mano conservava o amor pelo seu companheiro.
Não se tratava de saber ou não saber o que estava fazendo, mas sempre quando, em todos os detalhes, ao preparar o almoço do irmão, servir duas colheres de arroz, afundar a concha na panela de feijão já frio e pôr nacos de carne de porco, depois lavar o prato sujo e ficar pensando nos delírios de Osmar enquanto ensaboava os restos na pia, punha-se a preservar algo de saudade humana.
Era assim que as coisas estavam acontecendo naquela casa em Santo Antônio da Patrulha, perto da rodoviária, primeira à esquerda depois da casa de seu Jaime, velho sargento aposentado que ficava proseando até tarde da noite na companhia de sua mulher, todos os dias, no aconchego de uma alpargata de couro completamente fedida em seu chulé acumulado. (Credo!)
Lá fora, nada de vento. Mano não podia ficar vendo o balançar das árvores, filosofando sobre a natureza humana. Mas havia os sabiás: um casalzinho jovem e saudável que recém tinha dado cria e se estabeleceu ao lado do terreno de Mano.
- Piá, esquenta a água pro mate – disse Gonzaga, seu tio.
- Vai lá, guri! – acrescentou sua prima Virgília.
Esboçou um resquício de voz humana, resignado entre o silêncio que aniquila e a ação que preserva. Estava nessa fronteira, no mesmo entremeio que os escritores sentem ao escrever: suas almas já não estão mais absolutamente em si mesmas, mas reproduzem-se através dos olhos dos outros. Não estão mais em si, mas também não estão lá fora – assim como Mano, naquele momento ligando o fogão e enchendo a chaleira com um litro de água.
Foi até a varanda e ficou observando Virgília. Era dois anos mais velha que ele. Ano que vem iria para Porto Alegre tirar faculdade. Queria Letras. Mano bem se lembrava de quando se mudou para aquela casa, após o falecimento de sua mãe. Foi um clima triste, mas acolheram-no bem – tanto ele como o irmão que, naquela época, ainda era visto como gente.
Havia dois anos que seu quarto se tornara, de fato, seu. Nesse processo, também sempre conversava com sua prima. Ela sempre estava na rua com a juventude da cidade. Pensou que, naquele momento, o olhar de sua prima, entrecortado pelos clarões espessos do sol das quatro da tarde, parecia ser tão vivo como as coisas ditas à mesa do jantar no dia anterior, ou a luminosidade amarelada que tingia momentaneamente os azulejos da cozinha.
– Merda – exclamou – quase esqueci a água.
Correu até o fogão e desligou a chama azulada que já fazia a água borbulhar. Deveria ter feito o mate enquanto a água esquentava. Agora esse desejo regozijava apenas na ideia, pois o passado era um ser estranho que não admitia mudanças. “Na próxima”, pensou. Abriu a prateleira e pegou o pote de erva, a bomba e a cuia. Pôs a água numa térmica e foi preparar o mate lá fora, na varanda. Seu tio permanecia na mesma posição, olhando o horizonte da rua com os pés retos no chão, como estacas. Virgília não tirava os olhos do livro. O único relapso era quando mexia os dedos dos pés, uns dedos finos e bonitos que possuíam um perfeito decréscimo entre os dedos, do dedão grande ao mindinho pequenino, formando uma escada harmônica, como uma clave de sol que é recheada pelo do-ré-mi-fá-sol.
Despejou a erva dentro da cuia até mais ou menos a metade, virou-a de lado e ficou a apertar com o dedo para firmar o montinho. Quando achou que estava suficientemente firme, completou o espaço vazio com a água quente. Pôs o dedo na ponta da bomba e enfiou-a lá embaixo na cuia para firmar bem. Estendeu o mate para seu tio, oferecendo-lhe o primeiro de muitos.
- Tá loco, rapaz. Lei do duende: quem bola acende – retrucou Gonzaga, franzindo a testa.
Mano resignou-se ao silêncio. Decerto seu tio tinha curtido puxar um fumo quando jovem, “velho safado”, pensou. Puxou o mate, mas logo em seguida afastou rapidamente sua boca da bomba. “Merda, sabia que não devia ter deixado a água ferver, queimei o céu da boca”, pensou. Abriu a tampa da térmica para esfriar mais rápido. Terminou e passou para seu tio. Gonzaga deu uma longa tragada.
- O guri sabe fazer um mate, hein?
Virgília levantou os olhos do livro, fitou Mano, seu pai e o ambiente, mas não respondeu. Deteve um pouco o olhar nos sabiás do outro lado da cerca, mas foi só isso. Mano ouviu o roncar do mate. Pegou-o, encheu de água e estendeu a Virgília, que aceitou.
- Obrigada, primo – disse, solícita, olhando no fundo dos olhos de Mano, como se quisesse arrancar alguma coisa de sua presença.
Virgília cedeu à mudança e se sentou de pernas cruzadas.
- E teu irmão, Mano? Como está? – perguntou seu tio, preocupado.
- Não sei. Levei o prato pra ele. Ele pediu Rimbaud. Amanhã vou na livraria comprar. Tadinho dele. O que deve pensar?
- Não sei. Tenho pena dele também.
- Doideira é fogo. Todo mundo sabe. Quando ataca, não tem jeito. Vira bicho.
- Acho que é porque ele lê muito. Essa coisa de ficar lendo o tempo todo enlouquece qualquer um. Viu, filha? – disse olhando para ela, com um tom paternal evidentemente abalado em sua tentativa vã de controlar a filha.
Novamente, mantendo um tom de indiferença, Virgília levantou os olhos do livro, detendo-se nos sabiás lá longe. Esticou o mate para Mano. E assim tomaram um litro de mate amargo.
***
No outro dia, Mano foi o primeiro da casa a acordar. Passou o quarto de Virgília e imaginou no que estaria a sonhar, mas não cedeu ao impulso de ficar imaginando, afinal o melhor seria não o fazer. Foi até a cozinha e esquentou uma xícara de café com leite, que tomou em pé, olhando o horizonte, a rua e os sabiás. Pôs sua mão esquerda na cintura e ficou a contemplar o ambiente. Calçou umas alpargatas e foi até o galpão. Bateu na porta, esperando resposta.
- Como tá hoje? – perguntou, com a mão na testa, se apoiando nas tábuas de madeira que preenchiam a parede. – Hoje vou lá comprar teu livro. Rimbaud, grande poeta! Grande! A revolta, a crítica à burguesia. As ruas de Paris fervilhando em poesia e revolução!
Esperou resposta, mas em vão. De repente, teve a impressão de falar sozinho. Como sentia saudade do seu irmão. Parecia estar ausente do mundo. Gostaria de apenas uma palavra, qualquer que fosse, apenas para relembrar as noites que ficavam proseando até tarde da noite, contando histórias da fronteira, das garotas da escola... Os sonhos, a ideia de viajarem pelo país, tudo se acumulava em cima do pequeno cosmo individual que se formava acima de sua cabeça, martelando-a com os dissabores e as agruras de um futuro agora visto como perdido para sempre. Por que não falar nada? Apenas para ter certeza de que ele estava ali. Mas toda e qualquer tentativa de tentar trazer à tona algum resquício humano não passava de uma decisão inútil.
Saiu dali e pôs sua xícara suja na pia. Não gostava de comer quando acordava. Há anos tomava só uma xícara de café com leite de manhã, sempre na mesma medida: três quintos de café para dois quintos de leite. Tentou identificar alguma imagem no fundo da xícara, formada pela espuma seca do café já morto, mas desistiu. Não havia nada para acreditar além do vazio que, cedo ou tarde do dia, lhe sacudia em seu significado.
Foi até o quarto, pôs uma camisa de botão verde e seu calção marrom. No caminho até a livraria, cumprimentou seu Jaime, que estava sentado numa cadeira de balanço. Numa mão, segurava um chimarrão. Noutra, segurava seu gato, lhe acariciando a coluna. Passou mais duas quadras e entrou na Livraria Camus.
- O que vai hoje, seu Mano?
- Opa, Marco. Tem algo do Rimbaud?
- Tenho sim. Aqui ó – disse, estendendo a mão para uma prateleira. – São quinze reais.
- Muito bem – disse, pegando no bolso umas notas amassadas. Contou o dinheiro e pôs no balcão. Uma nota de dez, duas de dois e uma moeda de um. Agradeceu juntando os lábios e abaixando levemente a cabeça.
- E teu irmão, como tá?
- Triste, meu amigo. Triste. Resta-lhe apenas a literatura. Obrigado!
Não deu mais margem para que Marco tentasse reanimar sua realidade. Estava opaca. No caminho de casa, andou de cabeça baixa, olhando o chão. Chegou em casa e percebeu Virgília sentada na varanda, com as pernas balançando no vão do espaço, balbuciando uma milonga.
- Comprou o Rimbaud?
- Sim. Tá aqui. Ó – e estendeu o livro para ela.
- Agradeço, Mano. Já li esse. Mas não conta pro pai.
- Ah, tudo bem.
Sentou-se ao lado de Virgília. Fingia não observar sua aura romântica ao tocar violão, mas de quando em quando virava os olhos, de soslaio, fitando seus olhos fechados.
- Será que o mano vai melhorar?
- Não sei. De uns tempos pra cá, ando perdendo um pouco a esperança. Parece que um dia ele simplesmente não vai pôr o prato pra fora. Assim que as coisas acontecem. – Mano queria recusar essa reflexão, mas bem sabia que, lá no fundo, esse seria o futuro de seu irmão. Não sabia afirmar ao certo do que exatamente ele precisava melhorar. - Tô indo no mercado! Vão ficar aí?
- Vamos sim, pai – respondeu Virgília.
- Muito bem. Depois me ajudam com as compras.
Mano se levantou e foi até o galpão. Tentou resgatar alguma fala de Osmar, mas não recebeu nada em troca. Foi um ato inútil.
- Teu Rimbaud!
Sua palavra não encontrou eco nem em si mesmo nem em seu irmão. A mão do irmão apenas passou por debaixo da porta um papel escrito com letras garrafais, em caixa alta: CAMUS – SÍSIFO.
Naqueles momentos, Mano ficava a olhar para fora como se a pensar o que fazem os homens para construir tantos muros entre si. A mente dilacerada do irmão, entrecortada pela vergonha da família, a ver, descobrir e encontrar vozes que lhe permitissem ser livre com seus pensamentos. Nos surtos, sempre o mesmo tom, a mesma história, pesada como o sol no meio da consciência. Os olhos cambaleantes, sempre à espreita, completamente deturpados pela dita normalidade e pelo moralismo familiar.
No fundo, haveria sempre de existir para ele aquela estranha criatura que lhe acompanhava, sobretudo nos momentos de pânico. Quando ficava turvo a si mesmo, tornava-se um completo estranho aos olhos dos outros. Sempre atrás de si, essa criatura existia como um enorme borrão de mancha preta, variando ora em gritos, ora em silêncio. Sempre durante as “situações” – era assim que chamavam o seu estado de instabilidade – perguntava baixinho onde estava sua mãe, sua mãezinha querida, sua melhor amiga no mundo inteiro para lhe dar um abraço e dizer eu te amo, filho.
Aquele pedaço de papel era a pouca relação afetiva que mantinha com seu irmão, às escondidas, encerrado numa troca de livros secreta que ajudava Osmar a manter algum contato com o mundo externo. A cada papelzinho novo que recebia, Mano regredia a certo estado natural de identificação com outro ser humano. A literatura como forma de vida, pensou, como forma de amor.
Entrando em casa, escutou a voz de Virgília.
- Tá ouvindo? – tornou, compreensivo, pensando que a vida podia sim ser bela.
- O quê?
- Os sabiás lá fora.
Apertou um pouco os olhos – para ouvir melhor, decerto. Seu nariz ficou mais delicado. Uns barulhos mais graves e outros mais agudos. Os pais e seus filhotinhos cantando a beleza da vida. Eram o mesmo sol e a mesma luz que passavam agora pela tarde, todavia, não o mesmo sol e a mesma luz que se prolongavam até o espaço destinado ao seu irmão. Tinha vontade de reencontrar a ligação entre si e os pássaros, o que diferenciava a matéria dos seus organismos e o amor entre eles. A fim de encontrar no silêncio seu repouso, concentrou-se, momentaneamente, apenas no canto dos sabiás.
Mastigava pedaços de grito e, por alguma razão, pensava muito em sangue e numa caça aos passarinhos que realizava quando era mais novo com seu irmão. Depois de outro instante de silêncio, se deixou levar pelo pensamento, não sabia se por fraqueza ou simplesmente por honestidade. Sabia apenas que, de alguma forma, era agradável sentir a vida em seu esplendor, em sua vida, em seus grunhidos.
Mano e Virgília ouviram o barulho da garagem abrindo. Mano foi para seu quarto, e ficou o resto da tarde adivinhando o sentido da sua vida enquanto homem. À noite, sonhou com ser criança e descobrir o mundo numa floresta. Ele e seu irmão eram aventureiros e desbravadores, criadores, inventores de seu próprio espaço numa natureza inata e bela no seu aspecto selvagem.
***
No outro dia de manhã, como todos os dias, Mano tomou seu café e foi para a livraria.
- Tem o que do Camus aí? – perguntou se dirigindo a Marco, que roncava a bomba do chimarrão.
- Tenho O homem revoltado. Mas... tem certeza? – perguntou, com o receio de quem compreende o problema filosófico principal para Camus no livro.
- Em absoluto.
- São cinquenta reais. Essa edição é do ano passado, novinha.
- Muito bem. Aqui – e estendeu uma nota de cinquenta.
Voltando para casa, percebeu seu Jaime abraçando sua mulher, de olhos fechados, enquanto seu gato marrom fitava os passos de Mano. Na varanda, Virgília lia. Não desviou o olhar da sua poesia. Subiu as escadas e preparou o prato do seu irmão: arroz, feijão e um ovo frito. Foi até o galpão.
- Irmão, aqui, teu Camus. – Esperou um meio minuto. Enquanto isso, observava o cintilar das árvores em sua transformação, desfilando diante do olhar de quem as acompanhavam. Chamou mais uma vez o nome do irmão, novamente em vão. Repetiu mais uma vez. Bateu à porta, gritou: – Irmão! Teu Camus! Teu prato de arroz e feijão!
Correu até em casa e pegou no chaveiro aquele pedaço de metal velho que abria o galpão. Virgília percebeu e foi atrás. Mano abriu a porta e deu de cara com seu irmão, com um livro no colo, de olhos abertos, com lágrimas secas no rosto. Como ficou triste, o Mano. Horrível cena: se deparar com uma alma estrebuchada, envolta num cadáver jovem, totalmente à mercê da perenidade humana. Se aproximou, aos gritos, incrédulo. Passou a mão na testa de seu querido irmão e começou a chorar, dizendo:
- Tadinho do meu mano, meu irmãozinho, minha coisa linda.
Aquela mágoa vinha se tornando realidade desde que puseram ele para dormir fora de casa, como um ponto que se prolongava todos os dias até finalmente achar a outra margem do triste rio da lembrança. “O filho da puta não entendeu a proposta criativa da revolta de Camus no livro”. Pensou que esse evento se acumulava na verdade por muito tempo, aprendido pela vergonha e pelo desgosto, pela maldade dos vizinhos que lhe atribuíam a fama de coisa ruim. “Como poderia a vida aniquilar-se assim? A morte é um evento cotidiano”. Longíssimo da companhia humana e resignado à solidão, pensando como aceitou essa condição de vulnerabilidade dada ao irmão, pegou o livro que estava aberto no colo de Osmar: eram poesias de Ferreira Gullar. Na página sessenta e dois, uns trechos sublinhados de “Notícia da morte de Alberto da Silva”.
E agora, quando se vai perder no mar imenso,
tudo isso, nele, virou rigidez e silêncio:
toda palavra dita, toda palavra ouvida,
todo riso adiado ou esperança escondida
toda fúria guardada, todo gesto detido
o orgulho humilhado, o carinho contido
o violino sonhado, as nuvens, a espuma
das nebulosas, a bomba nuclear
agora nele são coisa alguma
Enfim, este é o morto.
Virgília abraçou fundo seu primo, como se naquele abraço pudesse suprimir todas as constelações duvidosas, todos os horizontes amalgamados pelo cotidiano. A situação não permitia ambivalência alguma. Eram ambos parte de um mesmo destino, uma mesma constelação familiar, todavia, como se Osmar agora fosse uma chave pendurada num gancho, esquecido e à mercê, perdido no tecido do tempo das almas, aberto agora à quinta dimensão do inferno suicida cristão.
“Onde você está agora, mano? Onda está tua esperança, tua vida, teu sorriso sincero de menino?” Com a visão ofuscada, Mano saiu do galpão, como se quisesse ecoar sua essência para o mundo lá fora, ainda pensando que suas pequenas resistências, seu carinho à situação de seu irmão não foram suficientes para não lhe fazer subtrair ainda mais a vida que tantos outros lhe tiravam. Seu cabelo balançava apenas o suficiente para que ele o pudesse sentir.
Nada mais a acrescentar senão o irmãozinho falecido, com suas mãos de artista que nunca mais viriam a contar história alguma. Ser completo naquilo que se é, e que por nada deixaria de ser, a vida dos outros todavia não poderá nunca ser a nossa vida. Do outro lado da cerca, pensou que veria algum sabiá estrebuchado no chão, os pais chorando frente ao extermínio de seus filhotes, mas havia apenas o mesmo cantarolar suave dos passarinhos, alheios e estanques, enquanto as árvores continuavam a balançar totalmente à mercê de tudo o que acontecia fora delas.
- Será que os sabiás sonham, tio?
Créditos da imagem destacada: Autor Rafael Araújo. Creative Commons.
PORTAL, João Camilo. Crítica da razão dos sabiás. História da Ditadura, 12 set. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/criticadarazaodossabias. Acesso em: [inserir data].
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