Guerra de libertação e educação popular: os desafios das imagens para a história da Guiné-Bissau
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  • Foto do escritorMélanie Toulhoat

Guerra de libertação e educação popular: os desafios das imagens para a história da Guiné-Bissau

Atualizado: 14 de mai. de 2022

“L’image fascine. L’espace public interroge”.

Vincent Berdoulay e Paulo C. da Costa Gomes (2010)

Imagens militantes no espaço público: materialidades políticas e memórias coletivas

Catarina Laranjeiro (2021), em seu livro dedicado às representações históricas e políticas nas produções cinematográficas estrangeiras que documentaram a guerra de libertação de Guiné-Bissau, liderada pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), aborda com fineza e complexidade o papel fundamental das imagens na história contemporânea do país africano:

As imagens endereçam um convite para realizar um trabalho de memória que, por sua vez, é um trabalho com e sobre o futuro, sendo a própria imagem que estabelece uma sincronização entre o que foi e o que será. Logo, aceder a um passado através das suas imagens implica percorrer um trajeto entre as diferentes temporalidades que não estão necessariamente alinhadas com a historiografia oficial.

Os muros e as ruas da capital, Bissau, relatam a quem quiser ouvir e decifrar essas idas e vindas entre diferentes narrativas e temporalidades, a partir de uma onipresença concreta de imagens, símbolos e artefatos. O artista plástico Young Nuno, pseudônimo de Nuno Ala Tambá, insere seu trabalho numa lógica de valorização de figuras emblemáticas da luta anticolonial e de educação popular no espaço público da cidade. O projeto “Caminhos Urbanos”, iniciado em 2019, propõe a criação de uma galeria ao ar livre de retratos pintados, monumentais e coloridos, de ex-combatentes da Guerra de Libertação.

Graças a uma colaboração com o artista brasileiro Cazé (Fernando Sawaya) e seu colega bissau-guineense Suley (Suleimane Bá), a primeira obra gigantesca resultante deste projeto foi inaugurada em setembro de 2019 em frente ao centro cultural Brasil-Guiné-Bissau, em homenagem a Amílcar Cabral. Cazé, renomado grafiteiro e pintor da cena urbana carioca, especializou-se em intervenções visuais monumentais celebrando, entre outras, grandes personalidades negras nas paredes do Rio de Janeiro. Durante sua primeira residência no continente africano, ele contribuiu para formar Young Nuno e Suley, participando de um intercâmbio de conhecimentos e técnicas com os dois jovens artistas de Bissau.


Retrato de Amílcar Cabral (autoria: Cazé, Young Nuno e Suley), maio de 2021, Bissau. Acervo da autora.

Cabral foi um dos maiores líderes da luta contra o colonialismo português. Nascido de um pai cabo-verdiano e uma mãe guineense, na cidade de Bafatá, na parte centro-leste do que era então a Guiné portuguesa, Cabral teve um percurso marcado por etapas fundamentais na construção de sua estratégia militante anticolonial (VÁZ BORGES, 2008). Como estudante de Agronomia em Lisboa, de 1945 a 1952, frequentou a Casa dos Estudantes do Império e o Centro de Estudos Africanos, que se tornaram lugares importantes de formação cultural, política e revolucionária e, também, um espaço de sociabilidade. Ele foi então enviado ao campo na Guiné, de 1953 a 1955, onde aperfeiçoou seus conhecimentos sobre sua terra natal e fortaleceu suas convicções sobre a importância crucial das questões agrícolas, das culturas populares, da saúde e da educação na luta pela independência. Ele não viu o PAIGC proclamar a independência unilateral do Estado da Guiné-Bissau no dia 24 de setembro de 1973, durante a Assembleia Popular Nacional organizada nas colinas do Sul do país, em Madina de Boé. Ele não viu a tão desejada autodeterminação ser finalmente alcançada, mesmo que a ambição inicial de um Estado binacional não tenha sido bem-sucedida. As representações visuais do líder que foi assassinado em Conacri em 20 de janeiro de 1973, em circunstâncias ainda em debate, são onipresentes nas ruas de Bissau. Não se sabe ainda a extensão da cumplicidade interna dentro do partido e os vínculos externos que apoiaram a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), a polícia política portuguesa, envolvida no crime. Em paralelo com importantes trabalhos que recentemente refletiram sobre possíveis descentralizações para sair da análise individual, é necessário reconhecer que as ruas, paisagens urbanas e lembranças ainda estão totalmente impregnadas com a memória de Amílcar Cabral.

Moeda comemorativa do PAIGC com a efígie de Amilcar Cabral, Congresso dos 20 anos do PAIGC, 1976, maio de 2021, Bissau (Mercado de Artesanato). Acervo da autora.

O retrato de Titina Silá (1943-1973), jovem liderança assassinada em 30 de janeiro de 1973 no norte do país, a caminho do funeral de Amílcar Cabral, também adorna as ruas da cidade. Ao seu lado dentro deste panteão gráfico, criado por Young Nuno e o coletivo Galeria Jovem, estão os antigos combatente Domingos Ramos (1935-1966) e Pansau Na Isna (1939-1969), o guerreiro e primeiro-ministro do primeiro governo independente Francisco “Tchico Té” Mendes (1939-1978), e o poeta e músico José Carlos Schwarz (1949-1977).



“Titina Silá. Heroína do Povo!”, mural de autoria de Young Nuno e Galeria Jovem, maio de 2021, Bissau. Acervo da autora.

Reapropriação da história recente e dificuldades de conservação das fontes.

O mínimo que se pode dizer é que estas produções artísticas contemporâneas marcam qualquer transeunte, quer ela ou ele esteja completamente familiarizada/o ou não com este panteão revolucionário. Destas pinturas emanam a nostalgia de um passado grandioso e, sobretudo, é possível ver nelas um desejo de reapropriar-se positivamente da história de uma época em que tudo parecia possível. Estas criações atestam um forte desejo de transformar o espaço público em lugar de educação, de memória e de transmissão coletiva da história, olhando para um futuro melhor.

Um dos elementos que chamam a atenção, no âmbito de uma reflexão sobre os períodos da Guerra de Libertação e do pós-Independência, reside na vontade gráfica de valorizar uma história combativa, resistente e nacional do período anterior ao golpe de Estado de 1980 e ao colapso progressivo das melhorias sociais e políticas ligadas ao momento da independência. Os anos 1980 e 1990 ressoam em muitos relatos de ex-militantes, professores/as e combatentes como o grande apagão de conquistas, avanços e documentos, fator de atraso importante para o país atual.

Na Guiné-Bissau, as condições para a pesquisa não são simples, devido, entre outros fatores, aos limitados recursos públicos destinados às instituições encarregadas de preservar as histórias e memórias do país. Localizado atrás do grande mercado Espaço Verde, ao lado da Faculdade de Direito de Bissau e da Universidade Lusófona Amílcar Cabral, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) é um caso emblemático deste desinteresse por parte das autoridades públicas. Criado em 1984 com o objetivo de desenvolver um ensino superior de qualidade e uma pesquisa dinâmica em Ciências Humanas e Sociais, o INEP abriga desde então a Biblioteca Nacional e os Arquivos Históricos. Algumas coleções e documentos estão digitalizados e podem ser acessados pela plataforma da Casa Comum da Fundação Mário Soares ou pelo Portal das Memórias de África e do Oriente da Fundação Portugal-África. O trabalho de preservação levado a cabo por ambas as instituições é inegável e fundamental, porém seu ancoradouro geográfico português ainda revela lógicas estruturais problemáticas, herdadas da complexa história colonial.

Muitos documentos que eram localizados em instituições públicas ou em casas particulares foram inundados ou queimados durante a guerra civil de 1998-1999. O INEP sofreu perdas irreparáveis ligadas ao clima, à umidade e aos danos causados pelo conflito.


Fotografias destruição INEP, autor desconhecido (s.d.), sem título, Fundação Mário Soares / INEP.

Imagens didáticas e simbólicas: as testemunhas visuais de projetos de alfabetização. As principais fontes relativas à educação popular no pós-independência consistem nos relatos orais dos protagonistas destes projetos educacionais e em uma montanha de fontes manuscritas, impressas ou iconográficas: trabalhos preparatórios, estudos de campo, diários de bordo, relatórios, livros de contabilidade, fotografias, materiais didáticos e auxiliares, diapositivas etc. No estágio inicial, o inventário que estou fazendo já me permite afirmar a grande diversidade e riqueza dos materiais.


Devido à falta de infraestrutura e de vontade política do Estado da Guiné-Bissau para realizar uma verdadeira política de conservação e disponibilização destes arquivos, a maioria dos documentos que ainda existem hoje são mantidos em casas particulares. O professor Huco Monteiro, antigo coordenador educativo na zona norte durante a Guerra, oficial superior do Estado e ministro da Educação em 2000, fundou em 2003 a Universidade Colinas de Boé, da qual é presidente do Conselho de Administração e membro do corpo docente até hoje. Convencido da importância de preservar em boas condições os documentos históricos que fornecem informações sobre o passado recente e o presente de seu país, ele fez uma chamada pública e teve acesso a um material didático doado pelo general Filinto Horta, ex-animador cultural das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP).


Publicado em 1977 pela “Direção Política de Alfabetização” do PAIGC, o caderno ilustrado Lutar, Aprender, Vencer, Trabalhar revela o uso de um método global baseado em iconografia, desenhos e imagens no âmbito da alfabetização de adultos. Esta crônica militante da história recente do país mistura nacionalismo e panafricanismo, celebração dos heróis e dos combatentes revolucionários, geografia do continente africano, educação sanitária e marxismo-leninismo, ao mesmo tempo em que fornece ao seu público-alvo uma caixa de ferramentas e listas de vocabulário para facilitar o aprendizado.


Caderno “LUTAR, APRENDER, VENCER, TRABALHAR”, PAIGC, Direcção política da alfabetização, 1977, p. 29. Arquivo pessoal doado a Huco Monteiro (reprodução autorizada à autora).

O uso de muitas imagens didáticas e simbólicas nas práticas de alfabetização é também atestado por outras fontes. As equipes organizadas pelo Instituto de Ação Cultural (IDAC) (Freire et al., 1980), os grupos de professores/as e animadores/as culturais treinados/as por Paulo Freire que trabalharam com o Ministério da Educação em Bissau desde 1975 utilizaram uma variedade de auxílios visuais como parte das ferramentas de ensino à sua disposição, com um público em processo de alfabetização (Freire, 1978).


Nos Círculos de Cultura criados em áreas urbanas e rurais, a alfabetização de adultos era vista como uma prática emancipatória intrinsecamente ligada a um conjunto de atividades coletivas realizadas e construídas pelas comunidades de aprendizes. Marciano Cordeiro, ex-coordenador do Centro de Recursos Audiovisuais criado pelo IDAC, documentou os desafios e desenvolvimentos na implementação desses núcleos de alfabetização. Ele conserva até hoje uma coleção impressionante de negativos fotográficos aos quais tive acesso parcial, e cuja análise será o objetivo de um projeto atualmente em desenvolvimento.


Em seus escritos e suas palavras, Amílcar Cabral frequentemente valorizava o papel da escola e de práticas educacionais emancipatoriais na luta anticolonial e na construção do estado bissau-guineense independente: “Nas nossas escolas, temos de excluir tudo quanto traduza a mentalidade colonialista. Já começámos a fazê-lo, editando novos livros, que falam da nossa terra, do nosso Partido, da nossa luta, do presente e do futuro do nosso povo e dos seus direitos”. (Cabral, org. : Galvão, Neves, Lopes, 2020).


Sem sombra de dúvida, a transversalidade e a polissemia das imagens produzidas ontem e hoje, no presente e no futuro de um passado recente, fornecem informações cruciais sobre a história contemporânea do país. Revelam também os desafios muito atuais do estudo deste periodo chave, em termos de instituições políticas, saúde, agricultura, distribuição de riquezas, proteção ambiental e, obviamente, alfabetização e educação popular.


 

REFERÊNCIAS

BERDOULAY, Vincent; GOMES, Paulo C. da Costa. Image et espace public. La composition d’une scène, Géographie et cultures, n°73, 2010.

CABRAL, Amílcar (org. GALVÃO, Inês; NEVES, José; LOPES, Rui). Análise de alguns tipos de resistência. Edição revista e comentada, Lisboa, Outro Modo, 2020.

FREIRE, Paulo. Cartas a Guiné-Bissau. Registros de uma experiência em processo, Lisboa, Moraes Editores, 1978.

FREIRE, Paulo, DARCY DE OLIVEIRA, Rosiska, DARCY DE OLIVEIRA, Miguel, CECCON, Claudius. Vivendo e aprendendo. Experiências do IDAC em educação popular, São Paulo, Brasiliense, 1980.

LARANJEIRO, Catarina. Dos sonhos e das imagens: a Guerra de Libertação na Guiné-Bissau, Lisboa, Outro Modo, 2021.

Lusotopie, n. 19, “Amílcar Cabral e o ideário da revolução anticolonial” (org. ALMADA E SANTOS Aurora, BARROS Víctor).



Como citar este artigo:

TOULHOAT, Mélanie. Guerra de libertação e educação popular: os desafios das imagens para a história da Guiné-Bissau. História da Ditadura, 10 mai. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/guerradelibertacaoeeducacaopopular-osdesafiosdasimagensparaahistoriadaguine-bissau . Acesso em: [inserir data].


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