Gustavo Corção: a reação contra a “capital da decadência”
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Gustavo Corção: a reação contra a “capital da decadência”

Pensador de orientação católica e conservadora, Gustavo Corção Braga foi, na década de 1950, um expoente do movimento de reação à transferência da capital para o até então inóspito Planalto Central. Nascido em 1896, Corção foi escritor, engenheiro e polemista de destaque na imprensa brasileira. Além de exercer a função de professor na Escola Técnica do Exército, também desempenhou atividades técnicas nas áreas de radiotelegrafia e telefonia na Radiobrás, assim como no setor de telecomunicações da Rádio Cinefon Brasileira.


Imagem do intelectual Gustavo Corção.
Gustavo Corção. Autor desconhecido. Wikimedia Commons.

Corção foi um ícone do conservadorismo católico nos anos 1950. Imerso no pensamento católico sob a orientação de monges beneditinos, no tomismo e na teologia, além de influenciado pelas obras do escritor francês Jacques Maritain, Corção se tornou, nas décadas seguintes, um representante da ideologia reacionária no pensamento político brasileiro. Sua produção intelectual, contudo, não se limita à sua produção reacionária. Corção participou ativamente na imprensa da disputa sobre a importância da tradição no debate — ou na ausência dele — em torno da construção de Brasília. E é este o tema que o artigo visa resgatar: a sua posição fiquista, isto é, contrária ao mudancismo, movimento que buscava transferir a capital para o então inexplorado Planalto Central.


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Em 18 de abril de 1956, o presidente da República Juscelino Kubitschek anunciou o audacioso Programa de Metas, a espinha dorsal de sua administração, prometendo cinquenta anos de progresso em apenas cinco. A meta-síntese desse projeto que objetivava criar o “País do Futuro” seria a construção de uma nova capital no interior do Brasil. Brasília seria a realização das aspirações históricas que podem ser remetidas ao programa do “grande e poderoso Império Luso-brasileiro” nos séculos XVIII e XIX, devidamente atualizado para um vocabulário desenvolvimentista do século XX. O mudancismo, entendido como as ideias de transferência da capital do Rio de Janeiro para o interior do Brasil, se insere em diferentes propostas de modernização autoritária do país, como resposta para o problema da percepção do atraso e da condição periférica do Pensamento Político brasileiro.


Para os intelectuais herdeiros do reformismo ilustrado, a construção de uma nova capital, no centro do Brasil, representaria um ideal de desenvolvimento de vertente autoritária que entende a interiorização a partir de pressupostos geopolíticos e demofóbicos — por vezes explicitamente racistas, como em Francisco de Varnhagen —, com vistas a formar, de cima para baixo, um grande Império do Brasil. A cidade ideal deveria atuar como um agente civilizador no meio do país: integrando, distribuindo população, embranquecendo-a com imigração e irradiando “progresso” e polidez para seus habitantes, agindo como uma verdadeira Capital-Sol (Mello, 2022).

O historiador brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (1816-1878).
O historiador brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (1816-1878). Wikimedia Commons.

O fiquismo surgiu como uma reação ao movimento mudancista. Seus expoentes se opunham à ideia de abandonar a cidade do Rio de Janeiro, o centro demográfico estabelecido historicamente no litoral do país, em favor da construção de uma nova cidade, em uma região monótona e isolada. Eles questionavam os argumentos para a mudança, baseados em determinismos climáticos e geográficos obsoletos. O jornalista, deputado federal e futuro governador da Guanabara Carlos Lacerda se destacou como um dos principais líderes fiquistas, utilizando-se de sua virulência para criticar o governo de Juscelino Kubitschek. O fiquismo não foi tão organizado como o movimento mudancista. A impressão geral era de apatia e de troça até surgirem notícias concretas sobre a transferência, o que despertou a reação.


O pensamento político de Gustavo Corção


Corção converteu-se ao catolicismo tardiamente, aos quarenta e três anos, e se tornou uma das principais lideranças leigas da Igreja Católica no Brasil. Foi um dos maiores expoentes do conservadorismo societal de tipo reacionário no pensamento político brasileiro. Dentre os diferentes tipos-ideias de conservadorismo, o societal e o estatista, este último típico de países periféricos como o Brasil, o reacionarismo é historicamente a corrente minoritária no pensamento político brasileiro. Em parte, justamente pela condição periférica e pela percepção de atraso, tema central para o campo (Lynch e Paganelli, 2017).


Gustavo Corção, juntamente com figuras como Brás Florentino Henriques de Sousa, Cândido Mendes de Almeida, Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima e Plínio Correia de Oliveira, foi uma importante liderança do catolicismo leigo brasileiro e um dos principais representantes do pensamento reacionário. A relação entre o pensamento reacionário e o pensamento católico não é automática. O que caracteriza o pensamento reacionário em seu núcleo é a rejeição completa à modernidade, com base em uma visão de mundo religiosa. Se, como pontou Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, o catolicismo é o cimento da cultura e da civilização brasileira, para o reacionário brasileiro típico dos anos 50 e 60 como Gustavo Corção, a rejeição à modernidade deveria ser dada por meio dos ensinamentos da palavra de Deus, conforme os dogmas da Igreja Católica.


Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1960) no Palácio do Catete - posse de Israel Pinheiro da Silva como presidente da comissão urbanizadora da Nova Capital (NOVACAP), Rio de Janeiro, RJ
O presidente Juscelino Kubitschek na posse de Israel Pinheiro como presidente da Novacap em 1956 (Palácio do Catete no Rio de Janeiro). Imagem do Fundo Agência Nacional, do Arquivo Nacional. Wikimedia Commons.

Os artigos fiquistas escritos por Gustavo Corção sobre a construção de Brasília, publicados no Diário de Notícias, o jornal de maior circulação no Rio de Janeiro, podem ser divididos em dois eixos principais: um de natureza técnica e outro, mais abrangente, ideológico. No primeiro aspecto, Corção utilizou sua formação como engenheiro para questionar a viabilidade e a capacidade técnica do projeto durante a administração de Juscelino Kubitschek. Os ataques de Corção remontam à criação da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) em 1956. Na visão do polemista, a construção de Brasília em terrenos inóspitos do Planalto Central representava a decadência de seu tempo, caracterizada pela desconexão entre a sociedade civil organizada dos centros de poder e o domínio de uma elite desvinculada do povo. Além disso, Corção criticava a má gestão dessa elite, dominada por um nacionalismo desenvolvimentista desconectado da realidade de seu povo. Em outras palavras, ele via Brasília como um avanço do Estado intervencionista e modernizador sobre a autêntica sociedade católica brasileira. A cidade simbolizava a vitória das “elites” cosmopolitas, corruptas e comunistas contra a “liberdade” do povo brasileiro.


Brasília como encastelamento das elites


Uma das consequências da transferência da capital para o Planalto Central era aprofundamento do encastelamento das elites políticas e do centro de tomada de decisões da pressão da sociedade civil organizada. Para o Corção, o progresso pelo progresso, materializado na construção de uma cidade artificial, fruto da intervenção desenvolvimentista, traria graves consequências cívicas e políticas. “O Brasil tornou-se um vasto circo […] com muitos palhaços de luxo. O clown é o povo, somos nós, é você, leitor. Com a diferença de que, em vez de sermos pagos pelas bofetadas, ainda pagamos. Brasília, meus amigos, é a bofetada síntese” (09/04/1960). Para Corção, a história política brasileira retrata o eterno embate entre um povo autêntico e católico e suas elites corruptas e corruptoras. O fruto proibido dessa corrupção seria a própria modernidade.


Como polemista e intelectual conservador radical, ele se opunha fortemente ao conservadorismo estatista de Juscelino Kubitschek. Esse conflito se daria entre uma elite católica e virtuosa, que se opunha ao getulismo e tudo que o que este representava. E não era pouca coisa. Era um verdadeiro balaio de gato que incluiria, além dos próprios herdeiros de Getúlio Vargas, qualquer um com mera inclinação às ideias nacionalistas e desenvolvimentistas, além, é claro, de comunistas ateus. Segundo Corção, a tendência da sociedade, uma vez liderada por essa elite, era a decadência moral, e Brasília seria a representação geopolítica dessa escatologia. A transferência do Congresso Nacional para longe da sociedade civil, sob a premissa de modernizar o interior do Brasil, era comparada por Corção ao fechamento do parlamento durante a ditadura do Estado Novo, colocando-o, novamente, à mercê dos interesses obscuros de uma elite desvirtuada. A nova capital seria um elemento estranho ao país, quase alienígena, criando um “Brasil-real” e um “Brasil artificial” representado por Brasília, e Corção optava pelo primeiro.


As elites, agora assentadas no Planalto Central, além de estarem completamente separadas ideologicamente e geograficamente de seu povo católico, seriam facilitadoras da decadência política, moral, religiosa e espiritual. Brasília seria a sua síntese deste estágio decadente. O discurso de Corção apresentava semelhanças com a ala radical da União Democrática Nacional (UDN), porém se demarcava de Lacerda, o principal expoente desse grupo, ao incorporar elementos de cunho religioso em sua abordagem contra a corrupção. Enquanto Lacerda propugnava por um moralismo individualista, Corção abraçava os princípios éticos arraigados no catolicismo. Tal contenda espelhava o conflito entre o republicanismo liberal e a solidariedade cristã pré-moderna. De um lado, valores democráticos e liberais tanto no governo quanto na sociedade; do outro, a concepção de um senso de comunidade e ajuda mútua fundados nos preceitos cristãos anteriores à era moderna. Corção enxergava a construção de Brasília como um desdobramento inevitável da modernização, interpretando-a como uma manifestação da decadência política. Essa mudança de perspectiva desempenhou um papel crucial em sua transição de um conservador radical em termos sociais para um reacionário de natureza mais convencional.


Brasília como falsa promessa do Nacional-Desenvolvimentismo


Na perspectiva de Corção, a escolha artificial de uma capital não seria desejada ou mesmo necessária para a promoção de desenvolvimento, mas a mera autocongratulação de JK. Seria uma espécie de vitrine grandiosa e dispendiosa para um empreendimento fadado ao fracasso. Corção ecoava as ideias de Joseph de Maistre ao argumentar que a edificação forçada de uma capital, rompendo com as tradições arraigadas no Brasil, representaria uma interferência ilegítima do Estado e, por conseguinte, estaria destinada a falhar por ser considerada “anti-histórica, desprovida de memória e passado, logo, destituída de tradição” (08/07/1956). A história pregressa e a memória surgiriam como elementos fundamentais para a coesão social na sociedade brasileira. É justamente essa ausência que permeia Brasília, despojando o projeto de sua legitimidade intrínseca. A nova capital brotaria destituída de alma, carente de trajetória, sem um povo ou uma raiz, prestando-se unicamente aos propósitos decadentes de uma elite desvirtuada. O autêntico “progresso” não adviria da negação histórica, mas sim do cultivo de um modus vivendi enraizado naquela experiência civilizacional específica (Nisbet, 1987).


O que norteava a direção do país era a capricho pessoal de Juscelino Kubitschek, uma expressão da mentalidade oligárquica e demofóbica característica de uma elite deturpada. Essa vontade impelia a construção de uma nova capital, indo de encontro à preferência dos brasileiros, sob o pretexto de liderar o Brasil rumo à modernidade. Em oposição à noção de progresso pela transformação, a ideologia de permanência de Corção propagava a concepção de “progresso pela continuidade”. O conceito de modernidade, entendido como o desenvolvimento das liberdades presentes na sociedade civil, emergiria exclusivamente através do respeito pela tradição. Assim, “o novo nunca seria genuinamente novo, mas sim um desdobramento de mudanças microscópicas a partir do momento anterior. Seu ponto de vista inegavelmente reflete a mudança advinda da preservação, ou seja, do conservadorismo” (De Paula, 2015). Nesse momento, antes de sua conversão total ao reacionarismo, Corção se comportava como um típico conservador societal, devidamente acomodado ao liberalismo, da mesma cepa de Edmund Burke.


Quando Juscelino anunciou, em janeiro de 1959, que Brasília traria “uma nova concepção de vida” para os brasileiros, Corção retrucou, em 23 de janeiro, dizendo que a nova capital nada traria a não ser mais decadência, sendo a “aceleração de uma tendência” de mais de trinta anos, fruto do espírito da “inovação” responsável por destruir as tradições inerentes à sociedade brasileira (De Paula, 2015, p. 99). A simples mudança pela mudança faria tábula rasa da história e nada de bom poderia florescer disso, pois substituiria o primado da prudência e do bom senso pelo da técnica e do pensamento puramente racional e abstrato, razão da nossa insolidariedade e decadência da civilização cristã.


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No âmago do pensamento de Gustavo Corção, encontra-se um debate intrincado sobre a construção de Brasília. Suas críticas à mudança da capital para o Planalto Central ecoam, em parte, os temores relacionados à desconexão entre as elites políticas e a sociedade civil, bem como à alienação das raízes históricas e culturais do país. Seu questionamento sobre o desenvolvimento autoritário e a interferência do Estado na construção de Brasília reflete um posicionamento enraizado em uma visão de sociedade tradicional e católica. Paradoxalmente, Corção desperta a ideia de “progresso” pela continuidade do status quo. Ao examinarmos o pensamento de Corção a respeito do embate entre fiquismo e mudancismo, refletimos sobre a relevância das tradições e da memória coletiva em nosso processo civilizatório, ainda mais quando contemplamos o vácuo e a negação da nossa própria história produzidos pela criação de uma capital artificial.


 

Referências:

DE PAULA, Christiane Jalles. Contra Brasília: a campanha de Gustavo Corção à construção da nova capital. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010. (mimeo)

DE PAULA, Christiane Jalles. Gustavo Corção: o militante da ordem e da autoridade In: FERREIRA, Gabriela Nunes; BOTELHO, André. Revisão do pensamento conservador: ideias e política no Brasil. São Paulo: Editora Hucitec, 2010.

DE PAULA, Christiane Jalles. O bom combate: Gustavo Corção na imprensa brasileira (1953-1976). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.

LYNCH, Christian Edward Cyril; PAGANELLI, Pía. The culturalist conservatism of Gilberto Freyre: society, decline and social change in Sobrados e Mucambos (1936). Sociologia & Antropologia, v. 7, p. 879-903, 2017.

MELLO, Guilherme Jesus Pires de. A capital-sol do Império: ideias mudancistas na construção intelectual do Estado Nacional brasileiro (1808-1877). Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (dissertação de mestrado). 2023

NISBET, Robert. O Conservadorismo. Rio de Janeiro: Estampa, 1987

XAVIER, Alberto; KATINSKY, Júlio Roberto. Brasília: antologia crítica. 2012.


Como citar este artigo:

MELLO, Guilherme. O parricídio do “Pai da História do Brasil”: um obituário de Varnhagen. História da Ditadura, 4 set. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/gustavo-cor%C3%A7%C3%A3o-a-reacao-contra-a-capital-da-decadencia. Acesso em: [inserir data].

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