O parricídio do “Pai da História do Brasil”: um obituário de Varnhagen
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  • Foto do escritorGuilherme Mello

O parricídio do “Pai da História do Brasil”: um obituário de Varnhagen

Atualizado: 27 de dez. de 2022

Historiador, diplomata, engenheiro e militar: Francisco Adolfo de Varnhagen, o visconde de Porto-Seguro, colecionou ao longo de sua vida diversos títulos que o consagraram como um importante personagem do Império do Brasil no século XIX. Varnhagen talvez tenha sido o mais radical dos representantes do “absolutismo ilustrado” em sua versão abrasileirada, junto a nomes como José Bonifácio – apesar de nutrir, em relação ao patriarca da Independência, um desgosto particular que pode ser remetido à relação entre Bonifácio e o seu pai, o militar e engenheiro Frederico Luís Guilherme de Varnhagen. O radicalismo de Francisco de Varnhagen iria lhe fazer preterir os modelos da França e da Inglaterra em favor da Rússia czarista, que, segundo o visconde de Porto-Seguro, encontrava-se no mesmo estágio civilizacional que o Brasil.


O historiador brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (1816-1878).

Ao lado de José Bonifácio, Varnhagen foi um dos primeiros defensores do mudancismo autoritário, ideia autocrática tributária do Antigo Regime que sustentava, a partir de pressupostos geopolíticos, a transferência da capital do Rio de Janeiro para o interior do Brasil. Mais especificamente para o centro do território, afastando a cúpula de decisões nacionais das pressões populares de maneira que pairasse sobre todas as províncias, subjugando-as à vontade do monarca, como uma verdadeira “capital-sol” à moda de Luís XIV da França. À sua capital idealizada, deu-lhe o nome ambicioso de “Imperatória”, uma das antecessoras espirituais de Brasília (VIDAL, 2002).


Como sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), foi pioneiro na formação de uma memória nacional grandiosa e tipicamente brasileira. O Instituto tinha como objetivo não apenas resgatar a história, mas também educar os estadistas do Império do Brasil. O momento intelectual era propício: a fracassada experiência “semi-republicana” das regências deixou evidente a necessidade de se reforçar a autoridade monárquica para consolidar a construção do Estado brasileiro.


Criado em 1838, seguindo o modelo do Institut Historique de France, o IHGB procurou moldar uma história única e em harmonia com o momento monárquico representado pelo Regresso Conservador, cujo objetivo era a construção e consolidação do Estado Nacional brasileiro pelas mãos da Coroa. Sua maior contribuição, História geral do Brazil antes da sua separação e independência de Portugal, publicado em 1854 e 1857, apesar das inúmeras polêmicas – particularmente com relação à retratação dos indígenas e à defesa de um bandeirismo exacerbado –, posteriormente lhe renderia o cognome “Pai da História do Brasil”. Apesar de ser sócio do Instituto e possuir notáveis contribuições, Varnhagen nunca nutriu uma boa relação com seus colegas, devido não apenas ao seu temperamento, mas também por ter posições ideológicas mais radicais do que o mainstream conservador de sua época.


O pensamento político de Varnhagen segue a mesma linha autoritária de sua produção historiográfica. Como um representante do conservadorismo estatista da cepa radical e geopolítica [I], identificava o Brasil como um vasto território mal povoado e sem sociedade civil. A missão do Estado, portanto, seria fundar essa sociedade, garantindo a manutenção de uma cultura nacional contra o provincianismo e a ocupação eficiente de seus domínios para estabelecer os alicerces do “grande e poderoso Império do Brasil” — uma primeira versão do país do futuro. Esse pensamento autoritário de corte geopolítico, que pode ser remetido ao reformismo ilustrado luso-brasileiro, encontra hoje sua versão mais límpida no pensamento militar da Escola Superior de Guerra (ESG) (LYNCH, 2017). O programa de Varnhagen advogava: um Brasil “czarista” de inspiração monárquica pós-feudal; um regime de servidão compulsória e temporária para os índios, vistos como “indolentes”; incentivos à colonização europeia e à construção de uma infraestrutura a partir de Imperatória que conectasse o vasto território brasileiro, garantindo o trânsito de mercadorias e facilitando a defesa da Corte em caso de guerra ou situação anárquica causada pelo excesso de liberalismo.

“O pai da História do Brasil”

Francisco Adolfo de Varnhagen nasceu em Sorocaba em 17 de fevereiro de 1816. Assim como Jean-Jacques Rousseau, que se apresentava como Citoyen de Genève, gostava de assinar alguns de seus trabalhos apenas como Natural de Sorocaba [II]. Quando de sua morte, em 29 de julho de 1878, em Viena, na Áustria-Hungria, houve um grande funeral com a presença de autoridades diplomáticas na belíssima catedral gótica de São Estevão, uma das mais antigas da Europa, cuja construção data do século XII (RIBEIRO, 2015, p. 60).


Catedral de São Estevão em Viena, Áustria. Foto: © C.Stadler/Bwag. Julho 2014. Wikimedia Commons.

Francisco era filho de Frederico Luís Guilherme Adolfo de Varnhagen, nascido no seio de família nobre de Wetterberg, principado de Waldeck, e de Maria Flávia Sá Magalhães, uma portuguesa representante de família tradicional paulista. Seu pai era então diretor da Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, próximo de Sorocaba.


Sua família mudou-se para o Rio de Janeiro em 1821 e Francisco iniciou seus estudos antes de partir para Portugal, onde seu pai serviu como administrador das matas do Reino. Lá, cursou o Colégio Real da Luz, em Lisboa, para, em seguida, entrar na Academia da Marinha com vistas a se tornar engenheiro militar. Logo após, lutou ao lado do agora dom Pedro IV de Portugal – dom Pedro I do Brasil após abdicar ao trono brasileiro – pelo lado liberal, contra as tropas absolutistas de dom Miguel. Pelos idos de 1839, já estava formado no curso da Real Academia de Fortificações com a patente de primeiro-tenente (VARNHAGEN, 1849).


A paixão pela História, despertada quando mergulhado em documentos dos arquivos portugueses, logo superou as aspirações do engenheiro militar. Com ela, veio a identificação com o Brasil e a vontade de participar da realização do projeto luso-brasileiro de “Grande e Poderoso Império do Ocidente”, agora conduzido pela Coroa brasileira.


Em 1841, após requerimento ao imperador d. Pedro II, conquistou a tão sonhada nacionalidade brasileira. No ano seguinte, foi nomeado como adido da legação em Lisboa. Como diplomata, foi um exímio historiador. Aproveitando sua estadia em Portugal, dedicou-se à pesquisa como forma de contribuir para a construção e consolidação histórica do Estado Imperial brasileiro – como previsto na Constituição de 1824, redigida principalmente pelo marquês de Caravelas após a dissolução da Assembleia Constituinte no ano anterior.


Em 1838, no contexto de consolidação intelectual do Estado Nacional brasileiro, no final da fracassada experiência “semi-republicana” da Regência, foi criado o IHGB e, com ele, a necessidade de elaborar uma história que fosse verdadeiramente brasileira, una, que reforçasse a hegemonia da raça branca sobre a negra e a indígena (VARNHAGEN, 1849). Vale ressaltar que, apesar de funcionar na prática como braço historiográfico do Regresso Conservador, o IHGB foi um instituto que abrigou também liberais, sendo mais plural do que se costuma lembrar.


A obra de Varnahgen se insere nesse contexto de produção historiográfica de inspiração nacionalista e romântica, sem se confundir jamais com o romantismo indianista — este execrável aos olhos do futuro visconde de Porto-Seguro. Em carta a dom Pedro II, por ocasião da publicação do segundo volume de sua História Geral do Brasil, escreveu:


No geral, procurei inspirações patrióticas, sem ter ódio contra os portugueses, nem contra a Europa, cujos aportes da ilustração nos foram tão benéficos; procurei pôr um bemol a tantas declamações e subserviência à causa democrática; e tentei disciplinar certas ideias vagas de nacionalista (apud GUIMARÃES, 1988).

Após reunir documentos importantes para sua pesquisa em Lisboa, foi redesignado em 1846 para Madri, de onde publicou Memorial Orgânico que à consideração das Assembleias Geral e provinciais do Império, apresenta um brasileiro (1849), sua principal obra de pensamento político. Varnhagen permaneceu na capital espanhola até 1859, com uma pequena estadia no Brasil a pedido de Paulino José Soares de Sousa, visconde do Uruguai, para levantar documentos relativos a assuntos fronteiriços. Sobre os países vizinhos, defendeu não apenas a retomada do Uruguai pelo Brasil como província da Cisplatina, como também, durante a Guerra do Paraguai, a anexação do território paraguaio após a morte de Solano López (VARNHAGEN, 1849, p. 28). “Faço votos para que essa paz só venha a ser concedida quando consigamos liberar o Paraguai do seu barbárico obscurantismo, por meio da anexação ao Império como província conquistada ou colônia”, escreveu (apud WEHLING, 1999, p. 94).

Paulino José de Sousa, visconde do Uruguai. Litografia em preto e branco. Autor: Sebastien Auguste Sisson. 1861. Wikimedia Commons.

Sua carreira diplomática o levou, de 1859 a 1867, a ser ministro residente no Paraguai, na Venezuela e no Chile como responsável de Negócios. Morando em Viena e atuando como ministro plenipotenciário enviado do Brasil no Império-Reino da Áustria-Hungria, recebeu em 1871 o título de barão de Porto-Seguro e, três anos depois, o de visconde. Um ano antes de sua morte, Varnhagen decidiu se aventurar no lombo de uma mula para adentrar o Planalto Central, região designada por ele para ser o coração da nova capital do Brasil e foco da migração de europeus brancos.

A viagem deteriorou a sua já precária condição de saúde e o levou à morte alguns meses depois em Viena. Suas anotações foram parcialmente reunidas no livro A Questão da Capital: Marítima ou no Interior? (1877). Esse opúsculo foi uma das principais peças utilizadas pelos historiadores de Brasília para dar sustância histórica à construção da nova capital durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956–1961), escondendo os argumentos tributários do Antigo Regime e dando-lhe uma face humana e sorridente, pelo menos em seu discurso público. A antiga ideia de se garantir a segurança da capital, afastando-a do centro demográfico e do litoral, foi fundamental para que os militares embarcassem no projeto. Não à toa, a consolidação de Brasília como capital nacional se daria nos anos 1970, auge dos anos de chumbo da ditadura militar, com a fusão do estado da Guanabara com o do Rio de Janeiro. O “encontro do Brasil consigo mesmo” promovido pela construção de Brasília, conforme o slogan da propaganda juscelinista, teria como alicerces o projeto autoritário de Varnhagen e sua “Imperatória”.


Os dois corpos do visconde de Porto-Seguro

Varnhagen faleceu a 29 de junho de 1878, aos sessenta e dois anos, em Viena. Do outro lado do Oceano Atlântico, o Jornal do Commercio publicou a notícia de sua morte a 3 de julho. Seu falecimento foi anunciado por telegrama no dia anterior. A pequena nota publicada referiu-se a Varnhagen como “brasileiro distinto e credor de todas as homenagens pela sua não vulgar erudição e eminentes serviços prestados ao país e às letras nacionais”. O jornal carioca destacou sua importante contribuição para a ilustração brasileira e para o progresso da pátria em suas publicações na Revista do IHGB, ressaltando sempre suas qualidades como historiador, diplomata e, sobretudo, como patriota. Seu falecimento seria digno das maiores condolências da pátria.


Busto de Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro, na Praça Paris. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Imagem: Dornicke. Janeiro 2015. Wikimedia Commons.

Dois dias depois, em sessão do IHGB com a presença do imperador dom Pedro II, o primeiro vice-presidente, Joaquim Manuel de Macedo, leu o telegrama que informava a morte de Varnhagen, “um dos mais antigos e beneméritos sócios do Instituto” além de “intérprete dos sentimentos do Instituto”. O voto de pesar foi aprovado por unanimidade. Para o IHGB, a morte de Varnhagen era a oportunidade de construir em torno de sua imagem os ideais que representassem os do Instituto (RIBEIRO, 2015, p. 61). Com a morte do corpo físico de Varnhagen, nascia o seu corpo espiritual de representante digno do panteão da historiografia brasileira.

Conforme relembra Renilson Rosa Ribeiro (2015, p. 63), biografar os mortos cumpria uma dupla função: em primeiro lugar, preservar a memória do falecido e, segundo — e talvez até mais importante —, projetar sua memória de maneira a construir um discurso de autoridade. Dessa forma, apresentar Varnhagen como símbolo da nação, a despeito de seus elementos polêmicos, era uma oportunidade de marcar ideologicamente as posições assumidas pelo IHGB e identificadas pelos ideais regressistas: monarquia constitucional, regime unitário como promotor da civilização, sufrágio censitário e a existência de um quarto poder, o moderador, de maneira a assegurar a missão incumbida ao Estado monárquico de fundar a nação de cima para baixo, promovendo o seu progresso e desenvolvimento. A maneira do IHGB de contribuir para o projeto saquarema, portanto, seria a imortalização de seus sócios através do culto às suas memórias como representantes da ilustração nacional.

Para Joaquim Manuel de Macedo, Varnhagen assumiu “o elevado grau de primeiro historiador do Brasil”, cuja obra rivalizava em glórias com a de Sebastião da Rocha Pita e a de Robert Southey, excedendo-os em verificações de datas e fatos, dando luz a documentos que descobria engolfado nas bibliotecas, entre obras raras e na poeira dos arquivos (MACEDO, 1878, p. 486-487).

No Jornal do Commercio, Capistrano de Abreu (1878) consagrou artigo à memória do “historiador da pátria” e “destemido bandeirante” em dois necrológicos. Sua morte seria irreparável para a historiografia brasileira, pois o “fervor e o desinteresse que o caracterizavam, dificilmente se hão de ver reunidos no mesmo indivíduo”. Sua dedicação ao trabalho intelectual e historiográfico o levou a produzir inúmeras revisões do seu monumental História Geral do Brasil sem se importar com o retorno financeiro, ao ceder ao editor propriedade dos volumes sem nenhuma retribuição, de maneira a reduzir seu preço sem detrimento a seu valor.

Mesmo com idade avançada, segue Abreu, Varnhagen abandonou sua posição cômoda em Viena para explorar os confins do sertão brasileiro à procura de local adequado para a construção da sua idealizada nova capital, capaz de oferecer posição defensável e melhores condições higiênicas — pois que distante da turba da plebe e do cosmopolitismo deletério das cidades marítimas, como o Rio de Janeiro. “A pátria traja de luto pela morte de seu historiador” (ABREU, 1878), conclui.

No centenário de sua morte, em 1978, o jornal O Estado de S. Paulo publicou em editorial um novo necrológio, ressaltando sua coragem nas situações desfavoráveis e o gosto instintivo pelos fatos históricos “essenciais à sua raça […] características muito germânicas”. O reconhecimento do paulista pelas gerações seguintes se devia sobretudo à sua erudição “de primeira mão”, ao seu “acurado exame dos documentos e dos textos” e à sua competência como historiador, que afastava “as opiniões feitas muitas vezes sem base” — uma brevíssima menção à relação conturbada de Varnhagen com seus pares.


A civilização pela força: o pensamento político de Varnhagen

Como já mencionado, Francisco de Varnhagen foi um exímio representante do conservadorismo estatista de corte radical e geopolítico. Seu projeto ideal era uma monarquia aristocrática próxima das ideias reacionárias de Juan Donoso Cortés, uma versão adaptada da monarquia medieval pós-feudal a partir de uma leitura de filósofos reacionários como Joseph de Maistre e Louis de Bonald. Varnhagen chegou a recomendar a leitura de Cortés para o imperador dom Pedro II, cujo programa não o agradou por ser demasiadamente reacionário. Seu flerte com o reacionarismo seria abandonado em favor do projeto regressista de Bernardo Pereira de Vasconcelos, ainda que numa versão mais radicalizada. Muito a contragosto, os ares liberais o fariam desistir de seu reacionarismo em favor de uma monarquia constitucional, mais exequível no século do liberalismo, para preservar os poucos elementos que restavam do Antigo Regime.

O modelo monárquico brasileiro adotado pelos regressistas baseava-se no regime unitário e na construção intelectual feita pelo francês Benjamin Constant em torno do Poder Moderador como instrumento de estabelecimento do equilíbrio entre os três demais poderes. O projeto regressista, como ficou conhecido, não propunha uma volta ao Antigo Regime com sabores tropicais, mas o progresso pela promoção de um centro civilizacional capaz de garantir a predominância do interesse nacional em detrimento do provincianismo. O “interesse geral”, entendido como razão de Estado, como muito bem resumiu Paulino José Soares de Sousa, o visconde do Uruguai (1862), deveria prevalecer sobre os “interesses particulares” das províncias e dos proprietários de terra.

Retornando ao pensamento político de Varnhagen, exposto principalmente em Memorial Orgânico, verdadeiro diagnóstico e prognóstico de organização nacional, o visconde de Porto Seguro procurou defender a centralização política e administrativa contra os que defendiam apenas a centralização política, para ele um excesso democrático que levaria à anarquia, conforme experiência regencial. Nesse aspecto, Varnhagen era exemplarmente hobbesiano. Além de Hobbes, Hegel também aparece como uma influência, afinal, para o filósofo alemão, o “estado era a marcha de Deus na terra” (WEHLING, 1999, p. 32).

O visconde também defendeu a representação restrita através do sufrágio censitário, o equilíbrio dos poderes a partir da fórmula do Poder Moderador, o Estado tutelar no campo político e social – embora laissez faire no plano econômico – e, no campo das relações internacionais, ressaltou a preferência por relações bilaterais, com grande preocupação com a valorização da formação territorial e defesa da capital (WEHLING, 1999, p. 92). Seu pragmatismo o levaria a abandonar – ainda que a contragosto – a monarquia aristocrática pela constitucional, em razão da força do liberalismo no século XIX, mas sempre resguardando elementos do Antigo Regime.

A transferência da capital brasileira se insere nesse contexto intelectual. Ela serviria não apenas para garantir a defesa da Corte em caso de invasões, mas também para acelerar o processo de civilização e assegurar o domínio territorial da Coroa, funcionando como uma verdadeira “capital-sol”, emanando luzes e concentrando poderes. A nova capital deveria ser acompanhada da imigração de europeus, a abolição gradual da escravidão de negros – para que o Brasil não fosse “africanizado” – e da incorporação dos indígenas, “os irmãos mais fracos da nacionalidade”, através de regime de vassalagem temporária de quinze anos, de maneira a “promover sua civilização” (WEHLING, 2012).

Todas as medidas visavam assegurar a formação de uma “população compacta”. A mestiçagem, consequência natural desse programa, era vista como uma forma de homogeneizar a população e evitar guerras civis. “Imperatória” também deveria favorecer a construção de um projeto sistêmico de integração de redes de comunicações e de transportes. Por fim, a construção de um imaginário era fundamental para a consolidação de uma cultura nacional homogênea, capaz de garantir a integridade territorial da nação.

Historia magistra vitae

Para o visconde de Porto-Seguro, o Brasil, entendido apenas como Império, era um imenso território com nação infante. Sua missão era orientar os estadistas através da Historia magistra vitae – a “História mestra da vida”, na expressão em latim – para garantir a consolidação do Império Brasileiro. Varnhagen se consolidou como o principal historiador do século XIX, reconhecido como “Pai da História do Brasil”.

Sua obra, de corte conservador geopolítico e muito mais radical do que o mainstream regressista, entendia a herança europeia como benigna e enfatizava a continuidade do projeto português do vasto e poderoso Império no ocidente. Sua posição radical o levou a ser malquisto por boa parte do establishment conservador brasileiro, mas a qualidade e extensão de sua obra o elevaram à imortalidade para a historiografia nacional.

Em seu opúsculo de pensamento político, deixou claro que era tarefa do imperador construir o país – uma missão que teria começado com dom João VI:


O primeiro soberano que via a América franqueou os portos do Brasil e elevou-o à categoria de reino. O segundo emancipou-o com uma coroa imperial. Qual deve ser a missão do terceiro? Do primeiro soberano nascido no Novo Mundo? Respondamos: a de organizar fundamentalmente e assegurar para sempre o seu vasto Império. Força, perseverança, valor político, olhos no futuro - e adiante! (VARNHAGEN, 1849, p. 3).

Sua ideia para a construção de Imperatória na região do Planalto Central seria a expressão física de seu projeto de organização nacional. Sua “capital-sol” funcionaria como centro capaz de irradiar civilização, subjugar as províncias ao interesse nacional e modernizar o país por suas forças centrífugas e centrípetas, garantindo a integridade do território e a homogeneização das raças com a predominância da europeia. Por fim, em São Paulo podemos encontrar homenagens à sua memória no Morro de Ipanema, em Sorocaba. No Rio de Janeiro, Varnhagen dá nome a uma importante praça na Zona Norte. No centenário da fundação do IHGB, em 1938, Varnhagen ganhou um busto na Praça Paris, na Zona Sul do Rio de Janeiro.


Créditos da imagem destacada: O historiador brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro (1816-1878). Autor desconhecido. Cerca de 1870. Wikimedia Commons.


NOTAS:

[I] Faço referência às tipologias ideológicas do Pensamento Político Brasileiro elaboradas pelo cientista político Christian Edward Cyril Lynch em sua obra, cuja leitura é mais que recomendada.

[II] Na primeira versão do Memorial Orgânico, inclusive, Varnhagen se limitou apenas à assinatura natural de Sorocaba.


 

REFERÊNCIAS:


ABREU, Capistrano de. Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro. Jornal do Commercio, 16 a 20 de dezembro de 1878.


GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 6-7, 1988.


JORNAL DO COMMERCIO, 3 de julho de 1878, p. 61.



MACEDO, Joaquim Manuel de (orador). Discurso na Sessão Magna Aniversária do IHGB, em 15 de dezembro de 1878. RIHGB, Rio de Janeiro, t. 41, 1878. p. 486-7.


O ESTADO DE S. PAULO. Editorial de 25 de junho de 1978, p. 174.


OLIVEIRA, Maria da Glória de. Traçando vidas de brasileiro distintos com escrupulosa exatidão: biografia, erudição e escrita da História da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. História, São Paulo, v. 26, n.1, 2007, p. 163 apud RIBEIRO, Renilson. Op. cit., p. 62-63.


RIBEIRO, Renilson Rosa. O Brasil inventado pelo Visconde de Porto Seguro. Cuiabá: Entrelinhas, 2015.


URUGUAI; Paulino José Soares de Sousa, Visconde de (1960) [1862]. Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janeiro, Ministério da Justiça.


VARNHAGEN, Francisco Adolfo de (2016) [1849]. Memorial orgânico: uma proposta para o Brasil em meados do século XIX. Ensaios introdutórios de Arno Wehling. Brasília: FUNAG, 2016.


VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa à Brasília: l'invention d'une capitale (XIXe-XXe siècles). Institut des Hautes Etudes d'Amérique latine, 2002.


WEHLING, Arno. Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.


WEHLING, Arno. Francisco Adolfo de Varnhagen, Memorial Orgânico. In: PRADO, Maria Emilia (Org.) Dicionário do Pensamento Brasileiro: obras políticas do Brasil imperial. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2012.



Como citar este artigo:

MELLO, Guilherme. O parricídio do “Pai da História do Brasil”: um obituário de Varnhagen. História da Ditadura, 8 dez. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/o-parricidio-do-pai-da-historia-do-brasil-um-obituario-de-varnhagen. Acesso em: [inserir data].


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