Memórias costuradas: uma reflexão sobre roupa, morte e história
Atualizado: 24 de mai. de 2022
Tecido, tinta, suor, rasgo, linhas soltas, cheiro, sangue, poeira, história.
Esses elementos ornamentam uma roupa, e memórias se entrelaçam em meio aos fios que compõem a vestimenta. Momentos de alegria e tristeza, de medo e coragem, de memória e esquecimento. Pensar a moda ou a roupa somente em seus aspectos materiais é esquecer a subjetividade humana e os laços que podem ser construídos com e a partir de uma veste. Memórias estas construídas a partir dos seres humanas, que deixa nas roupas os seus momentos de alegria e tristeza, suas lágrimas, seu sangue, e ali é depositada esta subjetividade, que futuramente pode ou não servir de disputa de outros atores que podem ali querer construir novas memórias.
Comecei a acreditar que a mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma. E quando nossos pais, os nossos amigos e os nossos amantes morrem, as roupas ainda ficam lá, penduradas em seus armários, sustentando seus gestos ao mesmo tempo confortadores e aterradores, tocando os vivos com os mortos. (p. 13).
As palavras de Stallybrass nos golpeiam quando pensamos na presença da ausência de pessoas queridas que nos deixaram – principalmente no contexto em que vivemos no Brasil e no mundo, entre 2020 e 2022. Pessoas se foram, suas vestes ficaram e suas memórias dividem espaço em nossos pensamentos.
A partir das roupas de Jorge Amado, escritor e militante histórico do Partido Comunista Brasileiro (PCB), entramos no debate sobre a preservação da memória das roupas em museus. Os itens estão no acervo da Casa de Cultura Jorge Amado, na cidade de Ilhéus (BA), assim como há itens pessoais do “romancista do povo” localizados em sua casa, em Salvador.
Suas roupas, chapéus e acessórios nos fazem perceber de que forma ele se vestia, como se ornamentava e se apresentava em público ou em sua privacidade. Tais itens estão repletos de memórias, que perduram e irão perdurar por décadas, deixando a imagem de Jorge Amado viva. Mas isso também acontece com outras figuras? Quando uma figura pública nos deixa, suas vestes também ganham importância e são exibidas como parte de sua memória? Com todos os feitos que esta figura pode ter feito em vida, uma roupa será importante para compor um museu em sua homenagem?
Vemos o caso da estilista Zuzu Angel, que foi uma figura importante na história da moda brasileira, e também uma personagem da luta contra a ditadura civil-militar. Produções foram feitas em sua homenagem – inclusive um filme biográfico – e exposições foram elaboradas para manter viva a sua memória. Mas, em se tratando da memória de Zuzu, suas roupas e seus objetos pessoais também possuem importância nestas exposições? Diversas de suas criações são exibidas, como vestidos, saias, sapatos e bolsas; objetos que a tornaram conhecida nacional e internacionalmente. A estilista utilizava a moda para se expressar e denunciar as atrocidades da ditadura brasileira. No entanto, qual importância é dada para as roupas de Zuzu Angel mãe, costureira e mulher, para a além de sua arte?
Podemos pensar sobre a importância da exposição de vestimentas em museus e espaços de memória. A quem pertenciam as peças de roupa que vemos quando visitamos um museu? Em sua grande maioria, a personalidades públicas.
Roupas de políticos, artistas, reis e rainhas são expostas nesses lugares, onde somos transportados para um lugar da história que pertencia às elites. Palácios e casarões, onde as nobrezas e burguesias, que dominavam os povos do Ocidente, festejavam. São estes os espaços nos quais emergem a história da moda, das roupas e indumentárias, contada a partir das elites.
Onde estão as roupas das pessoas escravizadas, dos militantes políticos, dos guerrilheiros, dos estudantes mortos na ditadura civil-militar? Pessoas que foram silenciadas em vida e em morte. É chocante e emocionante o monumento dos sapatos à beira do rio Danúbio, na cidade de Budapeste, na Hungria, que relembra os horrores da Segunda Guerra Mundial:
O monumento nos carrega para as cenas tristes e desesperadoras dos judeus tendo que retirar seus calçados antes de serem jogados no rio. Seus sapatos e as memórias neles depositadas, por nós humanos, foram eternizados por meio dessa obra e, mesmo sendo anônimos, centenas de flores são colocadas ali todos os anos por visitantes e turistas.
Isto tudo nos faz pensar sobre a eternização da memória e a nomeação desses indivíduos. A quem pertenceu tal vestido, sapato ou paletó? As multidões anônimas acabam tendo sua identidade ceifada e, constantemente, só são eternizadas roupas que pertenceram a grandes personalidades. Uma história sobre roupa, dor e memória, que pertence a todos e todas nós, e faz parte de cada pessoa que está lendo este texto.
Uma roupa conta história. Uma roupa grita de dor. Uma roupa exprime memória.
REFERÊNCIAS
STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. São Paulo: Autêntica, 2000.
Como citar este artigo:
MEDEIROS, Rodrigo R. S. Memória costuradas: uma reflexão sobre roupa, morte e história. História da Ditadura, 18 mai. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/memoriascosturadasumareflexaosobreroupamorteehistoria. Acesso em: [inserir data].
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