Neofascismo brasileiro e mídias de esquerda
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  • Foto do escritorOdilon Caldeira Neto

Neofascismo brasileiro e mídias de esquerda

As primeiras décadas do século XXI marcam uma nova fase do neofascismo brasileiro, que se tornou mais plural com a presença de estratégias e espaços de atuação inéditos. Com isso, é possível verificar a incidência de interlocuções internacionais as mais variadas, incluindo acenos às tendências da direita alternativa dos EUA, assim como ao campo da denominada quarta teoria política, que tem Aleksandr Dugin como figura de proa. A partir desse quadro e do recente espaço aberto por setores da imprensa digital de esquerda, é possível fazer quatro breves comentários sobre este fenômeno e seus potenciais prejuízos.


1. O neofascismo tem dinâmicas próprias desde 1945, com modulações em relação às formas de organização e às estratégias de atuação


Afinal, o neofascismo é o mesmo fenômeno que o fascismo histórico? A resposta é não. Trata-se de um caleidoscópio de grupos e estratégias. Essa característica define os espaços variados que estes grupos constroem, assim como seus mitos mobilizadores fundamentais. Isso varia muito, mas é necessário prestar atenção à confusão (ou simbiose) entre valores de direita e ideias de esquerda. Nacionalismo e exaltação de trabalhadores, por exemplo, são utilizados como pontes entre fenômenos tão diversos como discursos anti-imperialistas e defesa de valores conservadores. Em geral, esses grupos utilizam a rejeição ao status quo ou à ordem global que, não raramente, faz elogio à autodeterminação em apropriação de um discurso terceiro-mundista. Sem dúvida, a chamada quarta teoria política maneja habilmente essa estratégia, mas convém notar que a síntese que propõe mobiliza, sim, ideias-forças do fascismo e da vasta rede neofascista.


2. O neofascismo no Brasil é um fenômeno tardio com uma diversificação transnacional mais recente


A característica “tardia” é uma análise que desenvolvo particularmente no artigo "Neofascismo no Brasil, do local ao global?", recentemente publicado. Nesse texto, aponto os processos recentes em que as agendas e interlocuções do neofascismo brasileiro ultrapassam a exclusividade autóctone, que é composta pelo integralismo e pelos grupos neointegralistas.


O caráter "tardio" é resultado da constatação de que foi após a transição democrática brasileira que os grupos neofascistas se desenvolveram com autonomia no país. Inicialmente, o neointegralismo foi uma zona tripartite do neonazismo (negacionismo do holocausto, naziskins e projetos de partidos neonazi). A partir dos anos 2000, esse caldo ficou mais variado. Atualmente, a agenda é efetivamente global, com tendências convergentes e divergentes nesse caleidoscópio neofascista. Logo, é possível constatar algumas novidades desde a chamada quarta teoria política até grupos identitários, assim como projetos (e execução) de táticas como o terrorismo neofascista/neonazista. Por essa razão, os meios de comunicação precisam discutir os perigos da normalização do discurso de grupos com vinculações neofascistas.


3. A história deve ser observada com atenção


Nessa fase mais recente, muitos desses grupos utilizam estratégias como o "gramscismo" de direita, a metapolítica e as guerras culturais, como partes de capítulos mais amplos das extremas direitas. São décadas de história! No caso do neofascismo, não há de ser diferente. Como mencionei, o neofascismo tem uma história particular. Muitas dessas tendências, grupelhos e intelectuais construíram um conhecimento para transitar entre espaços de grupos antiliberais, nacionalistas, autoritários e assim por diante. Do "entrismo" às confusões entre direitas e esquerdas, todos são verdadeiros espaços de difusão neofascista. Por isso, o neofascismo brasileiro torna-se um importante objeto de análise. Pois ele produz experiências recentes de uma história de décadas. Do ponto de vista das esquerdas, não seria demais pedir alguma espécie de leitura de mundo e visão crítica sobre esse tema. Afinal, como muitos sabem e alguns preferem ignorar, o extremismo de direita no Brasil é multifacetado, com capilaridade tanto institucional quanto por vias alternativas. Se alguns veículos acham por bem conceder seus espaços e capital político para alguns desses setores, a coisa piora, pois ocorre um processo de normalização do discurso e da presença das lideranças no espaço público-digital.


4. Erro similar já foi cometido anteriormente com o tema negacionismo do holocausto


Nos anos 1980/90, alguns meios de comunicação convidavam neonazistas e negacionistas do holocausto para debater com historiadores, judeus e sobreviventes. Para incautos, a ideia parecia cuidadosa e vantajosa, sinal de um Brasil democrático que nascia. Será?


Na prática, o que acontecia era o inverso. Os negacionistas disseminavam seu discurso, divulgavam suas ideias e capitalizavam politicamente. Era um jogo ganho. Win-win. A imagem de neonazistas participando do programa da Silvia Poppovic são ilustrativas e perturbadoras. Nessas ocasiões, o enredo seguia um padrão. Os negacionistas do holocausto mencionavam as suas teorias mais estapafúrdias e repugnantes, repletas de um antissemitismo virulento. Historiadores, membros da comunidade judaica e sobreviventes do holocausto eram atacados. O antissemitismo neonazista e, mais ainda, o tom provocativo pautavam um debate que sequer deveria acontecer. Virava uma espécie de palanque neofascista. Posteriormente, esse material era editado e alterado pelos negacionistas, como "prova" da "veracidade" do negacionismo. Na realidade, essa era mais uma estratégia do discurso negacionista, uma espécie de tortura em praça pública (no caso, televisionado) daqueles que ousavam discordar do discurso negacionista. O estrago era capilarizado.


Essa experiência serve muito para entender a atualidade. O negacionismo já era danoso em um momento em que se acreditava na vocação democrática brasileira. O que falar sobre ceder espaços para negacionistas em momentos de crise da democracia? Após a experiência dos anos Bolsonaro, será que essas desastrosas estratégias têm cabimento? A minha percepção é que não.


 

Como citar este artigo:

CALDEIRA NETO, Odilon. Neofascismo brasileiro e mídias de esquerda. História da Ditadura, 18 set. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/neofascismo-brasileiro-e-midias-de-esquerda. Acesso em: [inserir data].

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