“O nu não pode circular pelos Correios”
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  • Foto do escritorErika Cardoso

“O nu não pode circular pelos Correios”

Atualizado: 16 de jun. de 2021

As percepções da pornografia na censura dos Correios ao jornal O Rio Nu

 

Publicado no Rio de Janeiro entre 1898 e 1916, O Rio Nu foi o maior expoente do que na época era conhecido como “gênero alegre”: jornais satíricos que abordavam a temática sexual com humor e piadas de duplo de sentido.


Capas do jornal O Rio Nu, de 1903 e 1911, respectivamente (Fundação Biblioteca Nacional).

Além de gravuras e fotografias de mulheres nuas, a folha veiculava anedotas, notícias sobre o mundo da prostituição carioca, promovia concursos e mantinha a Biblioteca d’O Rio Nu, onde eram anunciados livros e álbuns de fotografia, muitos dos quais editados pelo próprio jornal.



Assim como outros “jornais alegres” do período, O Rio Nu foi percebido como pornográfico por amplos setores da sociedade e da imprensa no momento em que a própria ideia de pornografia se consolidava no Brasil, ensejando calorosos debates em torno dos limites do moralmente tolerável.


Uma das mais comentadas polêmicas envolvendo O Rio Nu aconteceu em março de 1910, quando o então diretor-geral dos Correios, Joaquim Ignácio Tosta, lançou uma circular proibindo a remessa postal da folha. Ele argumentava estar respeitando o regimento interno dos Correios, que vetava a expedição e distribuição de “artefatos, desenhos e publicações obscenas”, assim como de “objetos com endereço ou dizeres injuriosos, ameaçadores ou indecentes”. Ignácio Tosta, no entanto, conciliava seu cargo público com a presidência do Círculo Católico, uma associação religiosa que havia alguns anos encabeçava uma campanha moralizante no Brasil, inspirada pelas ligas anti-pornográficas em atividade na Europa desde o final do século XIX.


Naquele momento, parte significativa da imprensa endossava as críticas contra as publicações percebidas como pornográficas e clamava por leis mais eficazes para coibir seu avanço no país. Graças à militância religiosa de Inácio Tosta, no entanto, a proibição d’O Rio Nu também foi questionada pela imprensa, sob a suspeita de que excedia os poderes atribuídos ao cargo de diretor-geral dos Correios e correspondia, na verdade, aos seus anseios moralizantes.


Poucos dias depois da circular de Inácio Tosta, O Rio Nu compilou o que se dizia sobre o caso em outros veículos da imprensa, selecionando as notícias que apontavam o caráter arbitrário da medida.


O Rio Nu, 30 de março de 1910, p. 2 (Fundação Biblioteca Nacional).

Pelo Correio da Manhã, por exemplo, o diretor-geral foi acusado de agir “sob a inspiração de um círculo ou coisa que o valha”, o que deixaria nebuloso o limite entre “seus deveres administrativos” e “seus doces encargos moralizadores”. Seria considerado razoável que fossem confiscadas “fotografias, estampas e cartões abertos com figuras ou dizeres obscenos” – o que configuraria, de acordo com o jornalista, “pornografia ostensiva” –, mas suspeitava-se que Tosta não pretendia impedir simplesmente a circulação de “correspondência abertamente imoral”, mas empreender uma “generalização singular e astuciosa” que atentaria contra “uma série de coisas que ele engloba sob a denominação de ‘publicações obscenas’”. De forma semelhante, a Gazeta de Notícias defendia que se a proibição se destinasse às “publicações aparentemente, visivelmente, exteriormente obscenas”, seria legítima. Indo além, entretanto, estaria “errada” e configuraria “uma ameaça para a liberdade de imprensa”, coisa “que não se admitiria em país algum”.


Compreendia-se que cabia à polícia o dever e a prerrogativa de deliberar sobre os limites da moralidade pública, de modo que se o chefe de polícia não havia ainda proibido o trânsito dos jornais citados por Tosta, eles não eram imorais ou não havia na legislação vigente cláusula que permitisse suprimi-los.


O jornal O Século protestou ainda contra o precedente ruim que a medida criava. Se o governo era um só, não seria aceitável que cada um de seus órgãos se relacionasse com a obscenidade de uma maneira diferente, tampouco que um tomasse para si responsabilidades que caberiam ao outros. Criticava-se assim os excessos de Inácio Tosta, mas também se denunciava a negligência com que alegadamente o Estado lidava com a pornografia considerada “ostensiva”. Desse modo, a medida seria, além de “inexequível”, “ridícula”, pois faria “um contraste terrível com a imoralidade dominante em todos os ramos da administração”.


Nesse sentido, o problema não consistia na cruzada anti-pornográfica em si, mas na origem e motivação de seus soldados. Os anseios de Inácio Tosta eram compartilhados por boa parte da imprensa, mas suas motivações – e sobretudo seus meios – não eram considerados aceitáveis.


Para outros interlocutores, a medida era somente inútil. Certo redator, identificado apenas pelas letras F.V., noticiou de maneira irônica no jornal O País que Inácio Tosta não queria “que as suas malas puras e expurgadas de pecado” fossem “tão peçonhamente maculadas, ao contato dessas publicações obscenas” pois “o diabo, com suas tentações” não merecia os “carinhos e solicitudes dos carteiros”. Além disso, a medida lhe parecia quase ingênua, pois mesmo que a remessa postal dos “jornais alegres” fosse proibida, o que então se entendia como obscenidade continuaria circulando de outras formas:


De que vale estas e aquelas publicações obscenas não poderem circular pelo correio, se elas penetrarão, de mil maneiras, quase em toda a parte, se elas andam pelas esquinas, pelas portas, livremente expostas aos olhares e aos tostões do respeitável público? (...) Meu deus! Pois se há publicações obscenas que não podem transitar pelo correio, essas publicações não devem ser, de modo algum, mantidas.

Outro aspecto que merece atenção diz respeito à percepção de que não eram apenas os pressupostos legais que tornavam os responsáveis pela apreensão de publicações obscenas inaptos à tarefa: faltava-lhes sensibilidade também. Para o Correio da Manhã, por exemplo, parecia chocante que Inácio Tosta se apresentasse ao papel de avaliar a obscenidade dos impressos, já que não estaria sob sua alçada “conhecer até que ponto uma publicação é obscena ou deixa de ser”. Mais grave ainda, segundo o jornalista, seria estabelecer “o critério dos funcionários encarregados da devassa planejada”, ou seja, os próprios carteiros, aos quais faltaria “capacidade administrativa” para julgar aquilo para o que estavam sendo convocados a “meter o bedelho”.


À Gazeta de Notícias parecia especialmente preocupante que coubesse aos funcionários a tarefa de decidir o limite da obscenidade: “É preciso saber se agora cada carteiro vai ser um censor, um árbitro da moralidade ou imoralidade da correspondência que se lhe entregar”. Sustentava a opinião desse jornalista um forte preconceito de classe, uma vez que lhe parecia pouco possível que um carteiro tivesse meios de enxergar “a grande diferença” que ele entendia existir “entre o que é obsceno e o que pode ser considerado imoral”:


Um cartão postal com a reprodução da Vênus de Milo é imoral? A imensa maioria responderá prontamente que não, alegando que se trata de uma obra de arte. Mas é bom não esquecer que, por sua vez, a imensa maioria dos carteiros não conhecem a história dessa estátua. Para um homem simples do povo que lhe vir o retrato, será pura e simplesmente uma estátua de mulher nua.

Em carta enviada por certo Alfredo Carvalho à Gazeta de Notícias, foi levantada ainda outra possibilidade terrível envolvendo os carteiros. Dizia o remetente que, no afã de evitar que se pervertesse “a alma do ‘Zé Povinho’”, Tosta estaria arriscando corromper “as alminhas de seus agentes e empregados”, que uma vez “acastelados na autorização” iriam se regalar “com a leitura dos tais jornais mundanos e daqueles que não o são”. E fariam isso “sem pagar vintém”, ferindo assim “a renda do correio” e praticando “a roubalheira”, já que qualquer carteiro poderia “subtrair à vontade” as publicações que bem quisesse, “alegando depois a sua imoralidade”. Dessa forma, Ignácio Tosta pretendia “combater o pecado de se ver coisas feias” fazendo “propaganda do roubo”, o que seria ainda pior e mais grave, pois além de “pecado”, a subtração era “crime previsto nos códigos”.


Desse modo, para boa parte da dita imprensa “graúda”, o problema não consistia exatamente em coibir a circulação de obscenidades, mas no método e nos critérios adotados para isso. Muito embora não defendessem a pornografia de uma maneira geral ou O Rio Nu em particular, foram muitas as vozes que desautorizaram a medida de Inácio Tosta. Entre elas, se destacam vários argumentos: o diretor estaria agindo sob os auspícios do Círculo Católico, o que seria incompatível com os valores republicanos; seu cargo não comportaria tal atribuição, que seria uma prerrogativa do chefe de polícia; ele não teria tempo ou capacidade de decidir o que era ou não obsceno; e, por fim, incumbir os carteiros de tal apreciação seria perigoso, não apenas porque lhes faltava senso estético para a triagem, mas também porque ela demandaria uma verdadeira devassa nas encomendas postais e, quiçá, desvios e roubos.


Nesse sentido, a polêmica permite pensar, por um lado, sobre as percepções da pornografia em um momento em que o próprio termo – e aquilo que ele designava – se consolidava no debate público brasileiro. Nestes discursos, as definições da pornografia perpassavam o debate em torno da natureza pornográfica (ou não) do jornal O Rio Nu, mas também a forma como o jornal poderia existir e se apresentar no espaço público: de maneira ostensiva ou não. Além disso, a discussão em torno do papel atribuído aos carteiros na circular de Inácio Tosta evidencia questões de classe que, historicamente, caracterizam os discursos em torno da pornografia. Por outro lado, a contenda também expressa alguns dos conflitos que assolavam a sociedade brasileira em um período marcado por profundas transformações, em especial o papel da Igreja em um regime republicano.


O Rio Nu garantiu na justiça o direito de continuar circulando pelos Correios. No entender do juiz, o que a lei proibia era o trânsito de objetos francamente obscenos, mas, desde que estivessem devidamente embalados, tinham o direito de circular. Os argumentos mobilizados neste debate, entretanto, evidenciam algumas das questões que inquietaram a sociedade desde os primeiros anos da República e, sob diferentes prismas, prosseguem latentes ainda hoje: quando o assunto é pornografia, quais são os limites do moralmente tolerável e a quem cabe defini-los?


Para saber mais:
- O acervo do jornal O Rio Nu pode ser consultado gratuitamente na Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional. 
- Cristiana Schettini Pereira dedicou sua pesquisa de mestrado aos “jornais alegres” cariocas. Sua dissertação, intitulada Um gênero alegre: imprensa e pornografia no Rio de Janeiro (1898-1916), está disponível no Repositório da Produção Científica e Intelectual da Unicamp. 

Créditos da imagem destacada: Charge publicada no jornal O Rio Nu em 12/01/1910 (Fundação Biblioteca Nacional).


 
  1. Decreto nº 2.230, de 10 de fevereiro de 1896; Art. 5° e 6°. Disponível em: Câmara Federal. Acesso em: 20/10/2018.

  2. O Rio Nu, 30/03/1910, p. 2. Grifos originais.

  3. O Rio Nu, 30/03/1910, p. 2.

  4. Idem.

  5. Idem.

  6. Aqui.... Gazeta de Notícias, 23/05/1910, p.1.

  7. Idem.

  8. O Rio Nu, 30/03/1910, p. 2.

  9. Jornal do Comércio, 04/09/1916, p.4.


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