Repressão e censura no mercado editorial brasileiro ontem e hoje
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  • Foto do escritorLeonardo Nóbrega

Repressão e censura no mercado editorial brasileiro ontem e hoje

Atualizado: 27 de mai. de 2022

As recentes ameaças autoritárias no Brasil têm reacendido um importante debate sobre repressão e censura na produção artística e intelectual. Mecanismos de perseguição — nem sempre explícitos, mas não por isso menos eficazes — são contumazes instrumentos de regimes autocráticos. O deliberado corte de verbas de importantes aparelhos culturais e instituições públicas de pesquisa, educação e cultura, a ingerência administrativa com vistas a um crescente aparelhamento das instituições culturais, a utilização de artifícios jurídicos e econômicos como instrumento de intimidação: esses são alguns dos elementos que aproximam o governo do presidente Jair Bolsonaro aos piores dias do nosso último regime militar.


Reprodução.

O universo dos livros, tanto antes como agora, é um dos setores mais sensíveis às mudanças políticas. Edição, publicação, venda e distribuição, bem como a estruturação de mecanismos de acesso ao livro e à leitura, conformam uma intricada e complexa cadeia que faz circular ideias e debates fundamentais ao pleno exercício da cidadania. Reiterados golpes nessa cadeia podem gerar uma ferida difícil de curar. Foi o que ocorreu não somente com quem foi explicitamente perseguido pela ditadura, mas com tantas outras pessoas que passaram a refletir sobre cada um dos seus passos com o fundado receio de retaliação durante o longo período que se seguiu ao golpe de 1964.


A atuação da Zahar Editores nos anos 1960 e 1970 foi, nesse sentido, bastante reveladora. A Zahar foi uma das mais importantes editoras brasileiras da segunda metade do século XX e teve uma atuação destacada na área de Ciências Sociais e Humanas, contribuindo para a consolidação desse gênero editorial no país (NÓBREGA, 2021). Inicialmente, a editora investiu na tradução de autores estrangeiros, privilegiando textos clássicos, livros de introdução e divulgação, compilações e trabalhos monográficos e buscando suprir a crescente demanda de livros para estudantes universitários. Esse processo foi acompanhado por obras de tom mais político, marcadas pelo contexto de efervescência dos movimentos estudantis dos anos 1960. Os livros publicados pela Zahar contribuíram de forma significativa para uma ampla circulação de ideias vindas de todas as partes do mundo, o que possibilitou a conformação de uma comunidade intelectual nacional.


O recrudescimento do sistema repressivo instalado após o golpe de 1964 trouxe consigo, entretanto, uma aura de incerteza e cautela na escolha dos títulos a serem publicados. O clima de contestação e euforia que tomou conta dos anos iniciais após o golpe militar, com a expectativa de uma iminente transição democrática, deu lugar ao terror, sobretudo após a instauração do Ato Institucional nº 5, assinado pelo então presidente, o general Costa e Silva, em 13 de dezembro de 1968. A constituição outorgada em 1967 deu caráter oficial à centralização da censura como atividade do governo federal (REIMÃO, 2011). Vários professores universitários foram compulsoriamente aposentados, deputados tiveram seus mandatos cassados, estudantes foram desligados das instituições de ensino e proibidos de realizar novas matrículas, intelectuais passaram a sofrer severa perseguição, militantes foram torturados e mortos (MOTTA, 2014).


Jorge Zahar manteve a cautela em diversas ocasiões, evitando criar conflito com os órgãos de fiscalização do governo e utilizando procedimentos para burlar a censura e outras formas de ação dos agentes repressores. Mesmo assim, sendo uma editora voltada prioritariamente para a publicação de livros universitários de Ciências Sociais e Humanas, não escapou da fiscalização. Dezenas de livros chegaram a ser apreendidos pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS/RJ) (PEREIRA, 2010). Qualquer coisa que sugerisse pensamento marxista ou socialista era motivo de desconfiança.


Apesar dos diversos volumes retidos pela polícia política, a Zahar não teve nenhum livro oficialmente censurado. Tanto para Jorge Zahar quanto para grande parte dos agentes de produção cultural, a prudência foi a regra. A autocensura foi a prática mais corrente não só nas editoras como nos jornais diários, na música, na literatura e em diversas outras formas de manifestação artística que pudessem levantar suspeita. O livro Pour Marx, de Louis Althusser, que havia sido publicado em 1965 na França, saiu pela Zahar em 1967 com o título Análise crítica da teoria marxista. A escolha do título da primeira versão brasileira serviu como estratégia para tentar burlar a censura. Somente na segunda edição da obra, publicada em 1979, período em que a ditadura já passava por um processo de distensão, o título foi traduzido como no original e passou a circular como A favor de Marx.


Capa do livro A favor de Marx, de Louis Althusser.

É também revelador, neste sentido, o documento confidencial escrito por um funcionário da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Educação e Cultura intitulado “Considerações sobre editoras brasileiras”. O relatório elabora uma série de comentários sobre alguns livros publicados no Brasil destacando sua “ação ideológica antidemocrática”. Depois de traçar comentários sobre as editoras Vozes, Herder, Civilização Brasileira e Paz e Terra, tratou, em um tópico específico, da Zahar. Sobre o lema “A cultura a serviço do progresso social”, que passou a estampar os livros da editora desde 1960, o autor do documento foi taxativo: “progresso social” era, neste caso, “entendido de modo diverso por aqueles realmente democratas”. Estão entre as obras listadas: Capitalismo monopolista, de Paul Baran e Paul Sweezy, Dependência e desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Introdução à história das ideias econômicas, de R. L. Heilbroner, História das doutrinas econômicas, de Eduard Heimann, Acumulação do capitalismo, de Rosa Luxemburgo, Teorias econômicas de Marx a Keynes, de Joseph Schumpeter, Escritos econômicos de Marx, de Robert Freedman, História das doutrinas econômicas, publicação da Academia de Ciências da URSS, O capital, de Karl Marx, Textos dialéticos, de Georg Hegel, Proudhon, Hegel e a dialética, de Djacir Menezes, Marxismo, de André Piettre, Marxismo e moral, de William Ash, Os marxistas, de C. Wright Mills, Conceito marxista do homem, de Erich Fromm e Materialismo, dialética e as ciências da natureza, de Kh. Fataliev.


Uma última obra mencionada, dessa vez de forma elogiosa — ironia que não escapou a Paulo Roberto Pires quando analisou o documento em A marca do Z: a vida e os tempos do editor Jorge Zahar — é A opinião pública, de Robert Lane e David O. Sears. “De vez em quando”, afirmou o censor, “a Zahar edita livros isentos de propaganda filocomunista (talvez forçada pelas circunstâncias políticas do Brasil atual)” (PIRES, 2017, p. 174) .


Considerações sobre editoras brasileiras — Arquivo confidencial da Divisão de Segurança e Informações. Nota: Imagens enviadas ao autor por Ana Cristina Zahar. Fonte: Aesi/UFMG, 1971.


A publicação de diversos livros vinculados ao pensamento marxista, como notou o funcionário do serviço de informação do governo, fazia parte da rotina da editora, embora isso não significasse que Jorge Zahar utilizasse a editora para fazer oposição à ditadura militar de forma ativa, como fazia seu colega e amigo Ênio Silveira tanto na Civilização Brasileira quanto na Paz e Terra. Isso explica, em grande medida, a diferença de tratamento dos órgãos de repressão em relação aos dois. Ênio foi preso sete vezes, sofreu atentado a bomba na sua livraria, teve tiragens inteiras de livros apreendidos, além de diversas outras retaliações que foram minando o equilíbrio financeiro da editora; Zahar, por outro lado, não chegou a ser preso ou ter obras censuradas, embora tenha estabelecido uma forma de autocensura em casos que julgava necessário: “Nunca fui preso ou perseguido, mas a autocensura pesou, foi muito desagradável [...]. Em dezembro de 1968 joguei fora 6 mil páginas traduzidas. Tinham, por exemplo, escritos de Engels, o que era muito forte para a época. Não abri mão da minha linha, mas também não ia abusar” (Jorge Zahar apud PIRES, 2017, p. 177).


Além de um zelo com a empresa que se revertia, na prática, em prudência em relação às obras a serem publicadas, alguns casos serviram para manter a atenção do editor com relação aos órgãos repressores. Em março de 1970, Ana Maria, sua filha mais velha, chegou a ser detida por suspeita de vínculos com “grupos subversivos”; meses depois, Ana Cristina, sua caçula, que participava do grêmio do Colégio de Aplicação da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi), partiu em um autoexílio que duraria sete anos (PIRES, 2017, p. 186). No mesmo período, houve a visita de um policial do Exército à sede da editora, no centro do Rio de Janeiro. O aviso foi dado por um funcionário da Livraria LER, que ficava no térreo do mesmo prédio, por um bilhete datilografado deixado sobre a mesa do editor:


Sr. Jorge
Otávio Guilherme e Gilberto Velho
A Polícia do Exército (à paisana) esteve aqui para colher informações dos irmãos. Mostrei um dos livros da col. Textos Básicos, onde consta o Otávio como “organizador”. Na orelha traseira apareceu o nome do Gilberto como “organizador” de Sociologia da arte. Perguntaram se sabia o local de trabalho do Gilberto, o que ignoro.

É notável, portanto, como os diferentes mecanismos de repressão e censura atuaram, e continuam a atuar, de formas muito distintas, mas invariavelmente danosas à livre circulação de ideias. Findo o regime ditatorial há tempo o suficiente para a produção de uma narrativa distorcida sobre as desastrosas consequências do autoritarismo por grupos mal-intencionados, voltam a pulular exemplos ameaçadores: as tentativas do governador de Rondônia Marcos Rocha e do então prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella, ambos aliados de Bolsonaro, de censurar livros; a autocensura de autores vinculados ao Programada Nacional do Livro Didático (PNLD); as tentativas de intromissão do MEC na elaboração das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM); a recente proposta do governo federal de taxação dos livros acompanhada pela fala desastrada do Ministro da Economia Paulo Guedes; estes são alguns dentre tantos outros exemplos nefastos que passam a fazer parte do cotidiano da produção cultural nacional.


Analisar com os olhos do presente os mecanismos de intimidação utilizados no passado pode revelar com mais clareza as consequências do atual cerco ao pensamento crítico sob o qual vivemos e os possíveis e desastrosos desdobramentos aos quais podemos vir a nos submeter. Manifestar-se agora é crucial para que um futuro ainda mais opressor não venha a silenciar a diversidade de opiniões e a circulação de ideias, tão caras ao pleno exercício da democracia.


 

  1. O texto conta com algumas passagens, devidamente adequadas à presente proposta, da minha tese de doutorado, defendida em 2019 no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, intitulada Editoras e ciências sociais no Brasil: a Zahar Editores e a emergência das ciências sociais como gênero editorial (1957-1984) (SILVA, 2019).

  2. Uma reprodução do documento pode ser consultada no livro A Marca do Z escrito por Paulo Roberto Pires (PIRES, 2017, p. 182).


Referências


MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2014.

NÓBREGA, Leonardo. A tradução de livros de ciências sociais no Brasil: Uma análise das publicações da Zahar Editores (1957-1984). Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 36, n. 107, p. 1–16, 2021.

PIRES, Paulo Roberto. A Marca do Z: a vida e os tempos do editor Jorge Zahar. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

REIMÃO, Sandra. Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar. [s.l.] USP, 2011.

SILVA, Leonardo. Nóbrega da. Editoras e ciências sociais no Brasil: a Zahar Editores e a emergência das ciências sociais como gênero editorial (1957-1984). [s.l.] Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019.


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