Superar a sombra do ditador pelas vozes das ruas: as eleições de 2021 no Chile
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  • Foto do escritorLuan Aiuá

Superar a sombra do ditador pelas vozes das ruas: as eleições de 2021 no Chile

Atualizado: 20 de dez. de 2022

Em seu livro A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet, o cientista político Heraldo Muñoz apresenta em sua conclusão críticas contundentes à violência desencadeada pela ditadura chilena, mas não faz o mesmo em relação ao modelo neoliberal implementado pela Constituição de 1980. Muñoz, uma liderança importante da antiga Concertación, coalizão de partidos de centro-esquerda que governou o Chile pós-ditadura por mais de vinte anos, se orgulha do crescimento econômico do país a partir do modelo neoliberal legado pelo regime pinochetista. Segundo o autor, a sombra do ditador sobre a sociedade chilena se mantinha muito mais por conta de uma memória política sobre Pinochet e devido ao sucesso econômico pós-redemocratização, que, na verdade, não seria mérito exclusivo dos Chicago Boys. Quase nenhuma palavra é dita sobre a Constituição.


Até meados do segundo semestre de 2019, quem fosse ao Chile a turismo e lesse as notícias da grande mídia sobre o crescimento econômico do país poderia pensar, de fato, que tudo estava muito bem para os chilenos. Porém, por baixo do suposto sucesso dos números macroeconômicos, o Chile era um caldeirão em efervescência prestes a explodir por conta de uma profunda desigualdade social e um modelo capitalista atroz que transforma tudo em mercadoria. A afirmação de Muñoz de que “foi preciso restaurar a democracia em 1990 para conferir legitimidade às reformas de Pinochet e expandir e aperfeiçoar o desempenho econômico e social do país” se mostrava falha. O caldeirão político e social explodiu finalmente em outubro de 2019 e os chilenos foram às ruas contestar a legitimidade da Constituição do ditador e de seus aliados.


Do “estallido” social às eleições de 2021


As manifestações que tomaram conta das ruas no dia 18 de outubro de 2019 começaram por conta da elevação dos preços das tarifas do metrô de Santiago e foram deflagradas por estudantes secundaristas que sabiam do impacto deste aumento no orçamento de suas famílias. A tentativa de criminalizar os protestos e o fechamento das principais linhas de metrô na capital no meio da tarde do dia 18, deixando milhões de trabalhadores impedidos de chegar a suas casas, foi o estopim que faltava para que a revolta se espalhasse feito rastilho de pólvora por todo o país.


Em poucos dias, milhões de chilenos foram às ruas de todas as cidades do Chile e as reivindicações foram muito além de uma insatisfação com um aumento tarifário do transporte público. O que grande parte da população desejava derrubar era a própria Constituição, que estabelece um Estado subsidiário, ou seja, um Estado que permite que todos os serviços públicos sejam realizados por particulares, mesmo aqueles relacionados aos direitos básicos mais essenciais.


Cerca de um mês após o início dos protestos, que incendiaram, literalmente, as cidades do país, e a intensa repressão deflagrada pelo governo, que chegou a decretar Estado de Emergência e colocar o Exército nas ruas – algo que não acontecia desde a ditadura – foi firmado um Acuerdo por la paz social y la Nueva Constitución assinado pela direita governista, o centro e alguns partidos e lideranças de esquerda. Visando estabelecer prazos para eleições e a forma de como se levaria o processo constituinte, o Acuerdo por la paz foi bastante criticado por parte da esquerda não signatária e por movimentos sociais como o Foro por la Asamblea Constituyente.


Hasteamento da bandeira nacional com a presença dos 5 presidentes que governaram o Chile até o momento desde a redemocratização. Reprodução.

As principais críticas apontavam que o acordo visava esvaziar o poder das reivindicações das ruas; que os signatários não possuíam legitimidade para comandar o processo, principalmente a direita que se encontrava no poder, ferindo uma série de direitos humanos durante as manifestações; e que a decisão de manter um total de 2/3 para que qualquer artigo da possível nova Constituição fosse aprovado concederia muito poder à minoria, que seria provavelmente de direita, solapando a própria soberania da Convenção Constituinte, que na teoria poderia estabelecer suas próprias regras. Além disso, o Acuerdo por la paz também impedia que a Constituinte se sobrevalesse aos acordos internacionais assinados pelo Chile, a maioria com orientação neoliberal.


Apesar das divisões dentro da esquerda e da crise sanitária causada pela COVID-19, a sociedade civil organizada, por meio de diversos movimentos progressistas, conseguiu manter-se firme e atuante no processo que resultaria na aprovação, com a opção do Apruebo ganhando com 78%, de uma Convenção Constituinte totalmente eleita pela população no Plebiscito de 25 de outubro de 2020. Neste ínterim, outras importantes vitórias foram alcançadas pela pressão popular, como a lei que estabelecia a paridade de gênero para a formação da Constituinte e a lei que garantia a reserva de dezessete cadeiras para os povos originários.


A formação das coalizões para disputar as eleições da Convenção Constituinte confirmou uma união dos partidos de direita e de extrema direita em torno do bloco Vamos por Chile, e uma pulverização dos partidos e grupos de centro, centro-esquerda e esquerda. Os partidos se organizaram nas coalizões Lista del Apruebo (formado pelos partidos da ex-Concertación) e Lista del Apruebo Dignidad (formado pelos partidos mais a esquerda, incluindo alguns que assinaram o Acuerdo por la paz e outros que o rechaçaram, como o Partido Comunista). Por fim, os chamados independentes, de maneira geral vinculados ao espectro político da esquerda, mas sem pertencer a nenhuma agremiação partidária, organizaram-se em diversas coalizões, sendo as maiores a Lista del Pueblo (esquerda) e o Independientes no neutrales (centro-esquerda).


O temor em relação à pulverização das candidaturas de esquerda, que permitiria que a direita alcançasse pelo menos 1/3 ou mais das cadeiras da Constituinte foi por água abaixo com os resultados das eleições dos dias 15 e 16 de maio. O que os votos revelaram foi não somente uma ânsia por enterrar de vez a Constituição de 1980, como uma insatisfação evidente com as organizações partidárias, principalmente as que haviam governado o Chile nas três últimas décadas e pouco haviam feito para mudar o sistema estruturalmente.


Dentre as 155 cadeiras a serem ocupadas pelos constituintes, a Lista del Pueblo, o Independientes no neutrales, outros grupos regionais de independentes e a coalizão de partidos Lista del Apruebo Dignidad conseguiram juntas 76 cadeiras. Soma-se a isso o fato de que as eleitas e os eleitos dos povos originários também são vinculados ao espectro da esquerda, somando, portanto, 93 cadeiras que desejam uma nova Constituição totalmente oposta à antiga. Entre os constituintes eleitos pertencentes aos povos originários, uma das vitórias mais emblemáticas foi a da líder mapuche Francisca Linconao, a mais votada desse grupo. Linconao chegou a ser presa e julgada acusada de terrorismo e agora vai ser uma das representantes autóctones a escrever a nova Constituição.


A coalizão de direita Vamos por Chile conseguiu apenas 37 cadeiras, cerca de 20% das vagas da Constituinte. Já a Lista del Apruebo amargou um resultado ainda mais pífio, conseguindo apenas 25 cadeiras. Destas 25, 15 ficaram com o Partido Socialista da ex-presidente Bachelet, mais suscetível às pressões e ao clamor das ruas. O recado não poderia ser mais claro.


Cartaz pedindo a libertação da mapuche Francisca Linconao. Reprodução.

A população chilena também votou para prefeito, vereador e, pela primeira vez em sua história, para governador. E o que se viu foi também a derrota das forças políticas tradicionais, com os independentes sem partido e os partidos mais à esquerda conseguindo mais de 46% das prefeituras do Chile, incluindo comunas importantes como Valdivia, Valparaíso, Viña del Mar e a capital Santiago, que será comandada por Irací Hassler do Partido Comunista. Os partidos de esquerda e os independentes também conseguiram mais de 30% das vagas para vereador e garantiram já um governo regional, além de chegarem ao segundo turno em 6 das 13 regiões onde a disputa continua, incluindo a estratégica Região Metropolitana de Santiago.


Enterrando a herança pinochetista: um exemplo do Chile para o mundo


Mais uma vez o Chile se constitui como uma espécie de vanguarda de experiências políticas. Passando da via democrática ao socialismo de Allende, e deste ao laboratório do neoliberalismo de Pinochet, o país andino se destaca quando o assunto é quebrar paradigmas. A Convenção Constituinte do Chile é a primeira do mundo a exigir paridade de gênero e a reservar vagas para povos originários. São aspectos que revelam que não apenas as questões econômicas do modelo chileno serão enfrentadas. Uma rápida busca nas propostas dos constituintes eleitos revela que demandas relacionadas aos direitos das mulheres, das pessoas LGBTs, dos povos originários e de outras minorias, além de problemáticas relacionadas à preservação ambiental, são pontos chave a serem debatidos – e possivelmente aprovados – nos trabalhos da Convenção. Expressões como “direitos reprodutivos”, “direitos de minorias sexuais” e “Estado plurinacional” são recorrentes nos documentos, inclusive dos grupos independentes, revelando que as pautas ditas de costumes e de identidade possuem a mesma relevância das pautas econômicas.


Obviamente que o modelo econômico neoliberal também parece estar com os dias contados no Chile. Na Constituição de Pinochet, foram privatizados o sistema educacional, principalmente o de nível superior, o de saúde e o previdenciário. As dívidas estudantis chegaram a valores altíssimos, comprometendo a renda de jovens sem emprego ou recém ingressados no mercado de trabalho. Além disso, o sistema previdenciário chileno passou a ser controlado pelas AFP (as administradoras de fundos de pensões), sendo a maior parte delas multinacionais estrangeiras. Grande parte dos aposentados, atualmente, recebe menos de um salário-mínimo no Chile, sendo que as AFP registram lucros recordes com o rendimento do dinheiro dos trabalhadores. A atual Constituição chega a considerar tudo como bem de consumo que até os rios e o mar do país sofreram processos de privatizações. Sem mencionar as terras dos povos originários, que foram divididas em pequenas propriedades individuais de acordo com a concepção liberal, destruindo a cultura destas populações e ignorando seus direitos à autodeterminação.


O que os chilenos intencionam é substituir o Estado subsidiário por um de Bem Estar Social, no qual os direitos básicos e a dignidade humana estejam à frente dos interesses do capital. Esse movimento iniciado nas ruas, no entanto, não diz respeito somente ao Chile. Ao se revoltarem em um país dócil ao FMI, exemplo de bons resultados macroeconômicos, tido, nas palavras de Piñera, como um oásis em uma América Latina conturbada, o povo chileno escancara e rechaça as mazelas do neoliberalismo justamente em seu berço e pavimenta um caminho que pode servir de exemplo para o resto do mundo.


Após a redemocratização, o Chile buscou efetuar, dentro de certos limites, uma justiça de transição que realizou mais de duas comissões de verdade e reconciliação, que construiu uma política de memória com investimentos em monumentos, museus e apropriação de antigos centros de detenção, tortura e assassinato, além de julgar e condenar diversos criminosos da máquina repressiva ditatorial. No entanto, a pedra fundacional da institucionalidade do regime de Pinochet continuava de pé, atingida apenas por algumas reformas. Ao derrubar a Constituição de 1980, a sociedade chilena completa um longo percurso que culmina na derrubada do maior legado de Pinochet, revela a fragilidade democrática do atuar neoliberal, que precisa se apoiar em estruturas autoritárias para se efetivar, e grita em alto e bom som: Nunca mais!


Créditos da imagem destacada: Reprodução.


 
  1. Como são chamados os economistas que implementaram as reformas no Chile. O nome se dá por eles serem, à época, jovens que haviam estudado na Universidade de Chicago, um dos baluartes do pensamento econômico neoliberal, onde lecionava Milton Friedman, um dos principais teóricos do neoliberalismo.

  2. MUÑOZ, Heraldo. A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 359.

  3. Como já apresentado em alguns hiperlinks ao longo do texto, um bom endereço para acessar as propostas das coalizões é o site do jornal La Tercera.


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