Trans histórias de uma brasileira no Bois de Boulogne
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  • Foto do escritorMarina Duarte

Trans histórias de uma brasileira no Bois de Boulogne

Atualizado: 3 de mai. de 2022

Os anos 1960 são também os anos da emergência das travestis brasileiras, um novo grupo social que trouxe consigo uma nova forma de ser e vivenciar o gênero e a sexualidade. 1964, ano em que o presidente João Goulart foi destituído, o primeiro Ato Institucional foi decretado e as Marchas da Família com Deus pela Liberdade foram realizadas, lançou o Brasil nos anos sombrios da ditadura. Nesse mesmo ano, ocorreu o primeiro espetáculo travesti no Brasil: o Internacional Set. Realizado na cidade do Rio de Janeiro, o espetáculo marcou a estreia de artistas que se tornariam famosas, como Rogéria, Marquesa, Brigite de Búzios, Laura de Vison e Eloína. Na segunda metade dos anos 1960 e na década seguinte, viveu-se o auge dos espetáculos travestis, sendo o mais famoso deles o Les Girls, com turnês regulares no Brasil e em outros países da América Latina.


O aparente paradoxo entre um governo e uma sociedade conservadores e autoritários e o surgimento de uma expressão sexual e de gênero dissidente revela a complexidade das relações entre indivíduo, sociedade e Estado, e, também, dinâmicas de resistência, adaptação, subversão e apropriação. A história de Vera Furacão, tema deste texto, nos ajuda a visualizar o percurso e a experiência da primeira geração das travestis no Brasil.


Gostaria de esclarecer que sou uma mulher cis lésbica que pesquisa as questões migratórias de mulheres trans e travestis brasileiras na França. Em minha tese de doutorado, intitulada “Splendeurs et misères des travesties brésiliennes Histoires croisées entre le Brésil et Paris (1960 - 2016)”, Vera foi uma das maiores colaboradoras. Seu testemunho, seu rico arquivo privado composto de fotos, escritos, recortes de jornais, revistas e outros documentos, seus contatos e sua história de vida excepcional foram essenciais para que eu compreendesse o fenômeno da presença das travestis brasileiras na França.


Este texto é uma homenagem a Vera – que se tornou minha amiga após oito anos de pesquisa – e a todas as travestis que deixaram seu país natal em busca de uma vida melhor em Paris. Na Europa, Vera e suas amigas enfrentaram a experiência de serem duplamente estrangeiras: quanto à nacionalidade e quanto ao gênero/sexualidade. Relatar a experiência desse duplo entre-lugar, que começa a ser construído no Brasil e se completa no além-mar, pode ser interessante para compreendermos melhor as fronteiras que engessam os indivíduos, os normatizam e impedem a emergência do singular e do autêntico.

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No Brasil, o surgimento da primeira geração de travestis brasileiras na década de 1960 borrou os limites do masculino e do feminino graças às técnicas de mudança corporal, tais como injeções de hormônio e silicone. As primeiras travestis foram vistas pelo público em shows nos teatros do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nos anos 1970, o número de pessoas vivenciando esse modo de existência aumentou e, além do cenário artístico, elas começaram a ocupar as calçadas das grandes cidades brasileiras, onde atuavam como trabalhadoras do sexo. As travestis tornaram-se, a partir de então, um grupo social reconhecido nacionalmente, provocando múltiplas reações como abjeção, desprezo, piedade e rejeição, mas também sentimentos de atração, admiração e curiosidade.

Dez anos após o aparecimento dos shows das travestis no Brasil, algumas sonhavam em deixar o país e tinham a França como destino privilegiado. Inspiradas pelo imaginário construído desde o século XIX em torno de Paris como a capital do prazer e do glamour, e pelos ecos que, desde os anos 1950, ressoavam a respeito do internacionalmente famoso cabaré trans na cidade, as travestis brasileiras partiram para viver a aventura parisiense. Assim como no Brasil, na capital francesa elas ocupavam um lugar bem definido: a grande maioria sobrevivia como profissional do sexo, enquanto uma minoria evoluía como artista no mundo do entretenimento. Fora desses universos, a possibilidade de existência das travestis permanecia reduzida.

Vera nasceu em 14 de novembro de 1954, em Alto Paraíso (MT). Nascida em uma família pobre, ela passou sua infância nessa pequena cidade do interior, rodeada por quatro irmãs, nove irmãos e seus pais. O pai trabalhava nas minas, sua mãe era dona de casa e se ocupava dos catorze filhos. Desde muito jovem, Vera era um garoto efeminado e se sentia atraído por homens. Em Alto Paraíso, foi confrontado desde cedo com propostas de homens mais velhos para fazer sexo em troca de dinheiro ou pequenos presentes. A relação com sua família era tensa e o ambiente em casa, hostil, levando o jovem a fugir várias vezes. Aos quinze anos, resolveu escapar de vez de Alto Paraíso. Após conseguir uma carona, percorreu quase dois mil e quinhentos quilômetros para chegar à cidade do Rio de Janeiro. O desejo de viver livremente sua sexualidade triunfou e Vera deixou para sempre a pequena cidade em que nasceu.

Ao chegar no Rio de Janeiro, se instalou na Lapa, onde encontrou na prostituição os meios para se sustentar. Foi nesse universo que Vera conheceu Ângela, uma travesti que trabalhava nas ruas da Lapa e que lhe apresentou as técnicas de transformação do corpo e os códigos das ruas, tornando-se sua “mãe travesti”. Aos dezesseis anos de idade, Vera começou a tomar hormônios e, aos dezessete, teve sua primeira aplicação de silicone industrial. Com o corpo transformado, o adolescente de Alto Paraíso se tornou Vera Furacão.

Antes de emigrar para a Europa, Vera morou em várias cidades brasileiras como São Paulo, Belo Horizonte e Salvador, mas foi no Rio de Janeiro que ela mais trabalhou. Na capital fluminense, desfilava todos os anos nos bailes de Carnaval e festejava no tradicional Baile dos Enxutos. Além disso, conviveu com Madame Satã e com grande parte do grupo de travestis que circulavam na Lapa nas décadas de 1960 e 1970. Essa época marcou a memória de Vera com lembranças afetivas dos tempos de sua juventude. Entretanto, a vida na Lapa estava longe de ser só alegrias e festejos. No ambiente prostitucional do bairro conhecido pela boemia desde o final do século XIX, as travestis eram regularmente perseguidas pela polícia e, por vezes, levadas para delegacias, sendo acusadas de pequenos delitos como vadiagem, brigas de rua ou furtos.


Viver como travesti no Brasil não era situação fácil: a violência e as exclusões relacionadas ao seu gênero e à sua sexualidade deixaram cicatrizes no corpo e nas memórias de Vera. Seu sonho, como o de muitas de suas amigas, era mudar-se para Paris. Ela já tinha ouvido falar da capital francesa desde o início dos anos 1970, mas foi na segunda metade da década que ela viu a prova empírica da riqueza e do sucesso de suas colegas que retornavam da cidade Luz ostentando joias, roupas e sapatos europeus nos desfiles e nos bailes.

Vera chegou em Paris em 1979 e logo começou a trabalhar em Pigalle, bairro boêmio localizado no 9° distrito da capital, e no Bois de Boulogne. parque aberto localizado no limite do 16° distrito da cidade, local habitado e frequentado pela elite parisiense. Ela conta: “as travestis chegavam com suas pequenas malas e iam direto para o Bois de Boulogne. Elas nem sabiam falar francês, mas a linguagem da puta é universal”. Instalar-se em Paris não era simples, mas ela afirma que nos anos de 1980, com os contatos das travestis que já moravam lá, era mais fácil, pois se conseguia moradia por intermédios delas.

Vera diz que costumava “fazer a madame” em Saint-Germain e “fazer a puta” entre Anvers e a Place Blache. Ela trabalhava regularmente em Pigalle, no Bois de Boulogne e, de vez em quando, no 17º distrito de Paris. Em Pigalle não pagava pelo ponto e afirma nunca ter tido problemas com os cafetões no bairro, porque as próprias travestis gerenciavam suas redes. Na floresta do Bois de Boulogne, na década de 1980, as brasileiras eram as grandes estrelas. Vera lembra que, nos finais de semana, os clientes ou curiosos formavam engarrafamentos para vê-las. Porém, apesar da soberania das travestis, Vera teve problemas para negociar seu ponto nas alamedas do bosque. Os homens de Dédé, notório cafetão, exigiram uma soma muito elevada para que ela pudesse trabalhar. Para escapar dessa extorsão, ela e algumas colegas procuraram outros lugares de trabalho e encontraram na floresta de Saint-Germain-en-Laye um ambiente parecido com o do Bois de Boulogne.


Vera em Saint-Germain-en-Laye, década de 1980. Arquivo pessoal de Vera.

O Bois de Boulogne e o Pigalle foram os pontos privilegiados de concentração da prostituição travesti brasileira. Mas essa atividade tinha uma territorialidade fluida: havia pontos de prostituição de travestis brasileiras isolados em vários bairros da cidade e, segundo Vera, naquela época, “Paris era dominada pelas travestis”. Esse sucesso foi acompanhado de uma conquista financeira: os programas das brasileiras eram muito solicitados e às vezes até mais caros do que os das prostitutas mulheres. A renda de Vera alcançava, por vezes, dois mil francos (equivalente à 310 euros) por noite de trabalho no Bois de Boulogne. No entanto, seu estilo de vida a impediu de economizar. Ela diz: “Se eu não gastasse tudo em drogas, festas e roupas, eu ficaria rica”. As condições de trabalho na rua às vezes a levaram a usar drogas para suportar o frio e a tomar uísque com comprimidos de anfetaminas para manter-se acordada durante toda a noite.

O final dos anos 1970 e o início dos anos 1980 foram vibrantes para a cultura e o divertimento gay em Paris. Vera frequentava as festas lendárias do Le Palace e do Galaxy, famosas casas noturnas parisienses. Durante o dia, ela passeava em Pigalle, onde fazia compras ou visitava a loja de Angela Pavon, uma estilista que criava coleções de “haute-couture para travestis” na rue des Dames. Ela se lembra de uma sapataria na rua Lafayette onde encontrava sapatos de saltos altos com numeração grande; uma outra em Pigalle vendia vestidos de noite.


Alguns anos após sua chegada, Vera começou a conciliar o trabalho como prostituta com um emprego formal em uma fábrica de um de seus clientes, onde ela fazia a limpeza durante o dia. Ela foi uma das poucas travestis dispostas a se engajar em trabalho formal, já que o trabalho sexual rendia muito mais dinheiro. Porém, esse vínculo não foi em vão. Vera conta que o emprego possibilitou a obtenção de sua residência francesa e, assim, ela pôde permanecer legalmente no território. Alguns anos mais tarde, “a imigração fechou para as travestis”.


Na segunda metade dos anos 1980, o mercado da prostituição começou a se deteriorar, especialmente após a morte das primeiras vítimas da AIDS. Vera recorda que o falecimento de Fabrice Emaer, dono do Le Palace, chocou toda a comunidade gay em Paris: “Todos tinham medo: no bosque as bichas desapareciam de um dia para o outro e a polícia nos prendia cada vez mais”. Este é um assunto delicado, pois se trata de revisitar memórias dolorosas; muitas de suas amigas morreram da doença. Antes de ter informações mais precisas sobre a AIDS, Vera dormia todas as noites com medo de morrer, assim como suas colegas.


Com as dificuldades no Bois de Boulogne, ela não podia mais pagar seu aluguel e foi obrigada se mudar para periferia de Paris, onde viveu em um hotel chamado Villa Biron, que, antes de sua chegada, era habitado por mulheres portuguesas. Não havia comércio sexual no prédio até Vera inaugurar essa atividade divulgada por meio de anúncios que foram publicados na revista La Vie Parisienne. A princípio, suas amigas não acreditaram no sucesso dos negócios de Vera na Villa Biron, pois o hotel ficava longe do centro da cidade e do Bois de Boulogne. Entretanto, a modalidade do comércio sexual por meio de propagandas se desenvolveu com sucesso e Vera reivindicou a criação do ponto. Resultado: a Villa Biron ainda hoje é um lugar de moradia e prostituição travesti.


Apesar da repressão policial e da queda no número de clientes devido à epidemia de AIDS, Vera visitava o bosque de vez em quando, seja por nostalgia, seja para, às vezes, fechar as contas do mês. Entretanto, em 1993, foi surpreendida por uma tragédia. Ao voltar da floresta com um cliente, sofreu um acidente de carro e passou treze meses no hospital, três dos quais em coma. Os ferimentos foram graves, sua recuperação foi lenta e até hoje ela sofre de problemas de mobilidade. Após sua alta do hospital, Vera deixou a Villa Biron e mudou-se para um estúdio em Marcadet-Poissonnier. A incapacidade de trabalhar a levou a procurar ajuda da Associação PASTT (Prevenção Ação Saúde e trabalho para Transgêneros) e de sua amiga, Camille Cabral. Após os esforços desta, Vera conseguiu obter a nacionalidade francesa, o que lhe permitiu acesso a ajuda social e a subsídios estatais para pessoas em dificuldade.


Hoje, aos sessenta e nove anos de idade, Vera vive em um apartamento social no 15º distrito. O aluguel subsidiado pelo Estado francês melhorou consideravelmente as suas condições de vida e ela é capaz de se sustentar com dignidade, algo que seria muito difícil no Brasil. Embora esteja satisfeita com sua casa parisiense, Vera ainda deseja retornar para os festejos de Carnaval do Rio de Janeiro.


Vera em 2021. Arquivo pessoal de Vera.

Com o fim da ditadura, muitos exilados retornaram ao Brasil, mas Vera não voltou. Ela não era exilada política: seu exílio é de outra natureza. Se o risco de morte dos perseguidos pelo Estado tem seu fim, o de Vera e de todas as travestis brasileiras não. No Brasil, as travestis e os grupos de sexualidades dissidentes continuam sofrendo violência e discriminação cotidianas. Alcançar a idade de Vera é uma exceção, já que a expectativa de vida de uma travesti no Brasil é de 35 anos. No Brasil de hoje, as relações de força continuam a ser uma complexa rede de resistências e violências: São Paulo tem a maior parada gay do mundo e o Brasil é o país que mais mata a população LGBT no mundo.

Quando as travestis imigram para França ou para qualquer outro país da Europa, elas o fazem para escapar de uma violência generalizada, que vai da dificuldade de se inserir no mercado de trabalho formal até as agressões físicas e morais por parte da população e do Estado. Na Europa, elas não estão livres de toda a discriminação de gênero e sexual, mas a violência contra pessoas travestis e trans é menor e a existência de um Estado de bem-estar social para imigrantes legais não é sem importância, ainda que se observe uma crescente fragilização desse Estado.

A emergência do grupo das travestis no Brasil ocorre no contexto da ditadura e os anos seguintes foram palco para uma revolução na história do gênero e da sexualidade. O deslocamento do feminino e do masculino partiu de uma ordem íntima, do desejo, das relações afetivas e materiais (hormônios, silicone, facilitação no mercado do sexo), e gerou uma importante consequência política e social. De certa forma, o íntimo é também político e essa revolução se torna mais evidente nas gerações seguintes, com a criação de movimentos sociais engajados. O movimento LGBT tem muito a agradecer ao grupo T, que está na dianteira do movimento com seus corpos, sua resistência e sua luta cotidiana.

Carrousel de Paris, sem data, provavelmente anos 1970 no auge da presença das travestis brasileiras nos espetáculos do Carrousel. Fonte: Arquivo pessoal de Chérie da Bahia.

Carrousel de Paris, sem data, provavelmente anos 1970 no auge da presença das travestis brasileiras nos espetáculos do Carrousel. Fonte: Arquivo pessoal de Chérie da Bahia.

Como citar este artigo:

Duarte, Marina. Trans histórias de uma brasileira no Bois de Boulogne. História da Ditadura, 15 mar. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/transhistoriasdeumabrasileiranoboisdeboulogne. Acesso em: [inserir data].


 
  1. Sobre a primeira geração das travestis brasileiras, ver: LOPES, F.; DUARTE, M. A primeira geração de travestis no Brasil: desvios e (re)invenções das sexualidades e do gênero na década de 1960. Territórios e Fronteiras, v. 14, p. 151-177, 2021

  2. Para aprofundar sobre o imaginário de Paris como a cidade dos prazeres, ver: GONZALEZ-QUIJANO, Lola. Capital de l’amour : filles et lieux de plaisir à Paris au XIX siècle, Vendémiaire, Paris, 2015.

  3. Para verticalizar a importância, o papel, as relações de poder e as hierarquias entre jovens travestis com as mães, madrinhas e cafetinas, ver: PELÚCIO, Larissa M. Abjeção e desejo: uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de AIDS. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2009.

  4. Entrevista de Vera concedida à Marina Duarte em 16/08/2016.

  5. Fazer a Puta é uma expressão que significa se prostituir.

  6. Para conhecer melhor a história de Camille Cabral, ver o filme Madame dirigido por André da Costa Pinto e Nathan Cirino e lançado em 2020.

  7. BORTONI, Larissa. Expectativa de vida de transexuais é de 35 anos, metade da média nacional, Jornal do Senado, Jornal do Senado, ano 23, n. 4721, 20 jun. 2017.

  8. O sentimento de estar em maior segurança na Europa, sobretudo em relação à agressão física severa, é um dado que eu pude constatar ao longo dos meus quatro anos de trabalho de campo com travestis e mulheres trans brasileiras em Paris.


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