8 ou 9 de maio? As disputas ao redor do fim da Segunda Guerra Mundial
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  • Foto do escritorLúcio Geller Junior

8 ou 9 de maio? As disputas ao redor do fim da Segunda Guerra Mundial

Em várias partes do mundo, no dia 8 de maio, celebra-se a rendição do Terceiro Reich diante das Forças Aliadas – uma coalização de países liderada pelos Estados Unidos, França, Grã-Bretanha e União Soviética. Desde a década de 1980, até mesmo a Alemanha relembra a data como o fim de uma era sombria, que custou milhões de vidas, abandonando suas antigas percepções que a viam como uma vergonha nacional, seguida pela submissão e divisão do país pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial.


Em 2023, o presidente francês Emmanuel Macron, por exemplo, celebrou o 78º aniversário da vitória visitando, entre outros locais, a estátua do general Charles de Gaulle, na praça Clémenceau, em Paris Além de liderar a resistência francesa, De Gaulle. governou o país anos depois do fim da guerra. O mesmo, porém, não acontece exatamente assim em outros lugares. Não apenas em relação às figuras que cada país pode homenagear, mas aos próprios dias das comemorações.


Placa de rua na cidade de Rennes, na França. Abril 2022. Autor: Envel Le Hir. Wikimedia Commons.

Há, obviamente, questões de ordem prática, decorrentes do desenrolar desigual da guerra ao redor do mundo. No Japão, as cerimônias acontecem no dia 15 de agosto, quando o imperador Shōwa (Hirohito) reconheceu a derrota frente aos aliados, que concentraram suas forças na Ásia após a queda da Alemanha nazista. O mês de maio assume, portanto, uma perspectiva europeia do término da Segunda Guerra Mundial.


Contudo, não é simplesmente porque a história foi diferente na França ou no Japão que essas variações aparecem. Se a lembrança do fim da guerra em algumas partes da Europa é diferente de sua correlata japonesa, isso não é apenas porque as experiências históricas foram singulares, mas porque os sentidos atribuídos também mudam. A ideia de que a vitória aliada marca o início de uma era de paz e liberdade não é universal, com a diferença de que apenas surgiu de modo assíncrono nas várias partes do mundo.


É exatamente isso que assistimos nos últimas dias quando, dentro da própria Europa, alguns países fizeram suas cerimônias no dia 8, e outros no dia 9 de maio. Refiro-me especificamente aos casos da Rússia e da Ucrânia. Diferente do restante do continente europeu, os dois países, assim como outras ex-repúblicas soviéticas, celebravam a data no dia 9. A Ucrânia, todavia, anunciou que a partir de 2023 adiantará em um dia as suas comemorações, acompanhando os países da Europa Ocidental.


Com toda razão, alguém poderia afirmar que a Rússia, como um dos Estados nacionais que sucederam a União Soviética, apenas continuou seguindo o padrão de seus antepassados, que assinaram a rendição alemã somente no dia 9. No entanto, é preciso compreender mais do que o período do entreguerras para entender porque, mesmo dentro de uma perspectiva europeia, há diferenças significativas ao redor das comemorações.


Celebrações do Dia da Vitória em Kiev. Maio 2019. Autor: Vasyatka1. Wikimedia Commons.

Na realidade, a não ser no próprio ano de 1945, o governo soviético pouco comemorou a vitória sobre os alemães nos anos seguintes. Inclusive, o ditador Josef Stálin não promulgou feriado nacional posteriormente, defendendo que os esforços maciços para vencer as forças de Adolf Hitler deveriam ser colocados a partir desse momento na reconstrução das repúblicas soviéticas arrasadas pela guerra. Era preciso olhar para frente.


Foram necessárias quase duas décadas para que o dia da vitória ganhasse mais atenção dos líderes soviéticos. Foi somente com Leonid Brejnev, em 1965, que o 9 de maio adquiriu o caráter de data de celebração, seguida pelo incentivo dado aos veteranos a assumirem um papel público como testemunhas, a construção de monumentos e a realização de cerimônias oficiais, com condecorações e homenagens às vítimas.


A partir da década de 1960, a União Soviética não viu a rendição alemã como um momento de paz e liberdade, à maneira dos outros países aliados, mas como o triunfo da “Grande Guerra Patriótica”. A denominação específica, bem como a percepção de modo geral, não eram necessariamente novas. Já entre os anos de 1930 e 1940 havia uma ideia de que a invasão nazista colocou as pessoas dos cantos mais remotos do velho Império Russo diante de uma causa comum: a defesa da pátria.


Não é coincidência que, em 1938, o cineasta Sergei Eisenstein filmava o seu épico de guerra Aleksandr Nevsky. Embalado pela dramática melodia de Batalha no gelo do compositor Sergei Prokofiev, o filme conta a história da vitória de um príncipe eslavo medieval sobre os cavaleiros teutônicos que, em sua cruzada contra os cristãos ortodoxos, invadiram terras correspondentes às fronteiras soviéticas do entreguerras (Stelmach; GELLER JR., 2020, p. 373).


Museu Nacional da História da Grande Guerra Patriótica, localizado em Kiev. Agosto 2012. Autor: Jorge Láscar. Wikimedia Commons.

Em suma, é possível perceber ao menos dois momentos distintos na lembrança da guerra na União Soviética, que não correspondem necessariamente a um sentido comum dos acontecimentos: um eclipse imediato e um retorno triunfalista. O último prolongou-se até o surgimento de uma nova relação a partir de meados de 1980. Próximo dos anos que antecederam seu colapso, a percepção soviética sobre a guerra começou a convergir com a da Europa Ocidental em alguns pontos.


Assim como na União Soviética, a perspectiva dos países europeus também foi mudando ao longo do tempo. Neles, houve igualmente um silêncio nos anos do pós-guerra antes de chegar na interpretação mais recente da vitória como um “ponto de virada”, sobre o qual seriam erguidos os valores das democracias liberais. Desde então, as referências à memória das vítimas, a exemplo do Holocausto, superaram as narrativas heroicas na Europa Ocidental, de modo que a própria União Soviética, em seus últimos anos, começou a revisar seus mitos triunfalistas (WOLFE, 2006).


No começo do século XXI, com a chegada de Vladimir Putin ao poder, houve um curioso reaparecimento do enfoque patriótico da guerra na Rússia, que havia diminuído nas últimas duas décadas. Em seus dois primeiros mandatos, de 2000 a 2008, Putin se concentrou na reorganização da política e da economia para, em seus mandatos seguintes, reforçar a ideia de que a Rússia precisava de um povo heroico e de um líder forte como seus ancestrais dos anos de 1930 e 1940.


Em todo dia 9 de maio, a Praça Vermelha, em Moscou, passou a receber um gigantesco desfile militar. Durante a cerimônia, marcham oficiais e soldados de todos os ramos das Forças Armadas e de Segurança e são exibidos veículos de combate e sistemas de mísseis e de defesa aérea. Além do desfile, o presidente participa de cerimônias de gala, encontros com grupos de veteranos e chefes de Estado, e da marcha do “Regimento Imortal”, em que as pessoas levam fotos de familiares que participaram da guerra.


Desfile militar na Praça Vermelha, em Moscou, em 24 de junho de 2020. The Presidential Press and Information Office. Wikimedia Commons.

Não se trata de uma simples repetição da velha fórmula soviética. Até porque Putin está inserido em um cenário bem diferente do que vivia a Rússia de Brejnev. O país possui agora uma economia de mercado muito distante do antigo socialismo de Estado, seu sistema político, suas fronteiras e sua autoimagem também já não são mais as mesmas; e, na Europa Ocidental, a “figura do herói tornou-se não apenas redundante, mas moralmente suspeita” (ZHURZHENKO, 2012).


Isso não significa que, atrás de uma fachada virtuosa, o ponto de vista da Europa Ocidental não possua contradições, como a incapacidade de barrar o crescimento da extrema direita contemporaneamente ou lidar com os legados coloniais deixados em outros continentes. Tampouco pode-se afirmar que a Rússia tenha qualquer obrigação de acompanhá-la em sua agenda e não possa formar uma relação diferente com o passado.


A questão subjacente é por que hoje a Rússia de Putin investe em uma percepção antagônica da guerra – afinal, a narrativa triunfalista fala mais de “heróis” do que de “vítimas” –, baseada em um modelo que, desde as suas primeiras manifestações, uniu a vitória soviética com o passado imperial? Qual a finalidade de reconfigurar um culto que, segundo Mark Edele (2019), inseriu o 9 de maio dentro de uma história milenar de guerras imperiais, de conquistas coloniais e entre príncipes e tzares, que nada tinham a ver com os princípios que, em tese, moldaram a União Soviética?


Questões assim me parecem bem mais interessantes de serem feitas, pois nos convidam a uma reflexão mais aprofundada, ao invés de assumir automaticamente um dos lados de uma disputa que não é só pela precisão dos acontecimentos, mas sobretudo pela sua relevância histórica no presente. Como escreveu Walter Benjamin (1987, p. 229), a “história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”.


Créditos da imagem destacada: Vladimir Putin discursa em um desfile militar que marca o 78º aniversário da vitória na Grande Guerra Patriótica. 9 maio 2023. The Presidential Press and Information Office. Wikimedia Commons.


 

Referências:

BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: Obras Escolhidas, vol. 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1984.

EDELE, Mark. The Soviet Culture of Victory. Contemporary History, v. 54, n. 4, 2019.

STELMACH, Yuri; GELLER JR., Lúcio. O príncipe e o poeta: o passado russo e transcaucásio pelas lentes de Sergei Eisenstein e Parajanov. Em Tempo de Histórias, v. 1, n. 37, 2020.

WOLFE, Thomas. Past as Present, Myth, or History? Discourses of Time and the Great Fatherland War. In. LEBOW, Richard Ned; KANSTEINER, Wulf; FOGU, Claudio (ed.). The Politics of Memory in Postwar Europe. Durham, EUA: Duke University, 2006.

ZHURZHENKO, Tatiana. Heroes into Victims. The Second World War in Post-Soviet Memory Politics. Eurozine, 31 out. 2012.

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