A experiência educadora de Paulo Freire no Nordeste do Brasil
Devido ao anúncio da produção de um filme em que o ator Wagner Moura interpretará Paulo Freire (1921-1997), a experiência de alfabetização de trezentos adultos em quarenta horas realizada pelo educador pernambucano em 1963 na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, teve repercussão nas redes sociais. Segundo palavras do próprio Paulo Freire, a maior parte de seu pensamento está enraizada nas ações que foram desenvolvidas em Angicos. Com roteiro de Felipe Hirsch, a cinebiografia contará ainda com consultoria da família do educador e apoio do Instituto Paulo Freire.
Patrono da educação brasileira, Freire é um dos autores mais lidos do mundo. O filme será uma das muitas homenagens que lhes são devidas. Mas o que foi a experiência de alfabetização em Angicos? E o que ela revela sobre a história brasileira? Para refletirmos sobre essas questões, convidei a historiadora potiguar Roselía Cristina de Oliveira para nos ajudar. Graduada em História (2001), com mestrado (2005) e doutorado (2022) em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Roselía tem como temas de pesquisa a educação popular, o desenvolvimento e a americanização do Nordeste nas décadas de 1960 e 1970.
O que foi a experiência de Angicos? Como a trajetória de Paulo Freire se relaciona com ela?
A experiência-piloto de Alfabetização de Adultos – ou Alfabetização de Angicos, como foi denominada pela documentação estadunidense no ano de 1963 – fez parte de um conjunto de ações vinculadas ao Programa Cooperativo de Educação implementado pelo governo do Rio Grande do Norte em decorrência do convênio com a chamada Aliança para o Progresso (AP), um programa multilateral de ajuda norte-americana à América Latina. Fundada em 1961, durante o governo de John F. Kennedy, a AP teria vigência de dez anos e preconizava gastos de 80 bilhões de dólares em auxílio ao desenvolvimento dos países latino-americanos. Entre os aspectos que contribuíram para acentuar os interesses estadunidenses no desenvolvimento do continente estavam a exacerbação de conflitos sociais e a repercussão da Revolução Cubana de 1959. Dada sua importância geopolítica, o Brasil foi o país latino-americano que mais recebeu recursos da Aliança para o Progresso; o Nordeste, região historicamente associada à pobreza, foi priorizado pelas ações do referido programa.
Com recursos disponibilizados pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) e pelo governo estadunidense, a experiência de alfabetização em Angicos foi efetivada e seu êxito foi reconhecido internacionalmente, haja vista a aplicação do método ter privilegiado trezentos adultos – homens e mulheres, trabalhadores rurais, comerciantes locais e donas de casa, naturais do município de Angicos – que, ao longo dos anos, foram alijados do direito a uma formação básica. O método de alfabetização naqueles moldes marcou sobremaneira a história da educação nacional por sua eficiência, mas também deixou em evidência o município do sertão potiguar, assim como um dos maiores educadores brasileiros, Paulo Freire.
O contexto de ajuda externa nos leva a pensar Angicos para além de uma iniciativa educacional. A experiência foi levada a cabo devido à mobilização de diferentes atores sociais e, portanto, precisa ser analisada por diferentes perspectivas. A principal particularidade está no fato de sua implementação ter sido financiada com recursos estadunidenses e forjada por um grupo de educadores alinhados à esquerda. Por certo, as ideias desenvolvimentistas adotadas por Aluízio Alves, governador do Rio Grande do Norte entre 1961 e 1965, demonstravam a ideia-força de modernizar um Estado caracterizado como subdesenvolvido. Naquele período, não apenas no Nordeste, mas em todo o Brasil, a alfabetização foi adotada como uma estratégia política pensada como alternativa para solucionar o elevado índice de analfabetismo e o aumento do número de votantes. Além dos valores expressivos que o Rio Grande do Norte recebeu dos Estados Unidos, o governo de Alves também contou com recursos do governo federal, notadamente do MEC e da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), essa última criada em 1959, durante o governo de Juscelino Kubistchek (1955-1961), como uma agência voltada ao desenvolvimento regional.
Assim, a alfabetização de trezentos adultos de Angicos foi mais que uma simples experiência pedagógica, tendo em vista as repercussões da politização ofertada pelo método que mobilizou dos trabalhadores recém-alfabetizados a reivindicar por salários e condições de trabalho mais dignas. Tal fato, naquela conjuntura histórica, evidenciava a efervescência social e o acirramento de conflitos alimentados pela Guerra Fria, que norteava a polarização da política nacional.
Ademais, a cultura política local, os desafios regionais e os interesses pessoais dos atores políticos precisam ser considerados. A começar pelas contradições de Aluízio Alves: ao mesmo tempo em que recebia recursos do país líder do bloco capitalista para exercer um claro alinhamento político visando conter o avanço da esquerda na região, entregou a coordenação do projeto-piloto a um educador progressista como Paulo Freire – que, por seu turno, não era favorável ao controle estrangeiro da economia nacional.
O método desenvolvido pelo grupo de educadores da Universidade de Recife fora pensado como uma estratégia para combater as mazelas sociais do Rio Grande do Norte. Na ocasião, foi preconizada a urgência na demonstração de resultados, sobretudo no cumprimento das metas formuladas para combater problemas graves como o analfabetismo e a mortalidade infantil. Paulo Freire já vinha adquirindo experiência no debate sobre educação devido às atividades empreendidas junto a um grupo de educadores pernambucanos que se aprimorava em estudos sobre a alfabetização com influência de ações do Movimento de Cultura Popular (MCP) de Recife, dos programas de alfabetização da educação radiofônica e, posteriormente, da iniciativa de bispos católicos mais progressistas com o Movimento de Educação de Base.
O método de alfabetização em Angicos funcionou sem o uso da cartilha e contou com recurso audiovisual (a projeção fixa), bem como uma ferramenta eficiente de reconhecimento das situações existenciais dos grupos de alfabetizandos, caracterizada pela compreensão de sua realidade, a conscientização das palavras geradoras: “foice”, “tijolo”, “facão”, entre outras. Na ocasião foi percebido como um método rápido e eficiente, que alfabetizava um número considerável de adultos em pouco tempo.
O projeto-piloto previa a alfabetização de cem mil adultos em três anos, visando sobretudo erradicar o índice de analfabetismo, que nos anos 1960-1963 chegava a 80%. A alfabetização e a ampliação da escolarização, na perspectiva desenvolvimentista, levariam efetivamente a uma modificação da renda per capita, que no triênio de 1960-1963 se encontrava abaixo de 120 dólares. Com isso, Paulo Freire organizou as etapas do projeto e planejou a visita à cidade de Angicos para o reconhecimento da realidade local.
Além disso, foi organizado um curso de formação para os coordenadores e alfabetizadores. Algumas temáticas foram escolhidas como referência para abordar a realidade nacional, como a formação histórica do Brasil, a situação da região Nordeste e a cultura popular. Autores como Nelson Werneck Sodré, Celso Furtado, Fernando de Azevedo e Antônio Cândido serviram como fundamentação teórica e política, como mostra a imagem abaixo.
Paulo Freire esteve envolvido em todo o processo, inclusive no que se refere às etapas da politização tão criticadas pelos políticos conservadores e pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos.
A alfabetização exitosa de Angicos despontou nacionalmente e levou o estado do Rio Grande do Norte a receber visitantes curiosos pela compreensão do método, despertando interesses de diversos educadores, intelectuais, militares, especialistas, políticos, curiosos e até mesmo observadores internacionais e jornalistas de países da América Latina, da Europa, além da União Soviética, do Japão, do Egito e de Israel.
Logo após a aula de encerramento em Angicos, Aluízio Alves recebeu pedidos de assessoria, divulgação do método e empréstimos de material, equipamentos e alfabetizadores para que o modelo de alfabetização fosse replicado. Marcando presença na cerimônia de encerramento, o então presidente do país no período, João Goulart, convidou Paulo Freire para incorporar o método às ações do Ministério da Educação, dando andamento a uma campanha de erradicação nacional do analfabetismo.
Ex-ministro do Trabalho do governo Vargas, Goulart ficou marcado como seu herdeiro político e sofreu duras pressões do governo estadunidense. Essa conjuntura contribuiu para que a execução de uma proposta educadora a cargo de Paulo Freire não chegasse a ocorrer, vez que foi impedido pelo golpe civil-militar de 1964. Após contundentes críticas da imprensa e de grupos conservadores, o governo estadunidense suspendeu o repasse de recursos ao governo do Rio Grande do Norte, exatamente três meses antes do golpe contra Goulart (FREIRE, 2014: 222).
Como a reflexão histórica sobre esse contexto abre espaço para uma visão crítica dos limites da democracia e da sua manutenção?
A reflexão histórica assume um papel fundamental, possibilitando uma análise da conjuntura e das culturas políticas nacional e local que proporcionaram as condições para a existência de Angicos. Naquele momento, as elites conservadoras do país empreendiam, em diferentes frentes, uma política de desestabilização do governo João Goulart. Esta mobilização culminou no golpe civil-militar e no processo de transição de um regime democrático para uma ditadura militar que perdurou por vinte e um anos. Por isso acredito que, para abordar a experiência de Angicos, é preciso evidenciar o cenário político internacional influenciado pela hegemonia estadunidense e as especificidades da cultura política local, pois existem nuanças desse processo silenciadas pela força da hegemonia política.
A motivação do grupo de educadores progressistas envolvidos na execução da experiência de Angicos transcendeu o capital financeiro, uma vez que buscou mobilizar a conscientização política dos alfabetizados e isso não era esperado pelos gestores, que logo perceberam a força da conscientização e consideraram que aquele processo levaria a uma “revolução”, ameaçando o status quo e a ordem nacional.
O contexto demonstra, portanto, que a execução do programa não foi tranquila. A experiência-piloto de Angicos provocou celeuma tanto por parte dos grupos conservadores, quanto pela esquerda nacionalista, bem como pelos comunistas e lideranças sociais, assim como de parte do governo estadunidense, que não via com bons olhos o financiamento de programas de educação alinhados à politização de esquerda. Essa conjuntura nos ajuda a entender como a história daquele período marcado por ideias e ações engendradas em um alto grau de polarização política.
De acordo com historiadora potiguar, o início dá década de 1960 foi marcado por intervenções regionais, nacionais e internacionais que visavam sobretudo enfrentar o avanço do comunismo e garantir o controle estadunidense sobre o continente americano. A historiografia sobre o período indica que essas intervenções tinham caráter diverso, iam desde medidas de caráter militar, projetos culturais, esforços diplomáticos em educação e mesmo iniciativas privadas. Entretanto, devido a conjuntura da Guerra Fria, cada vez mais as questões se polarizavam em termos de direita e esquerda. Assim, um debate mais plural e inclusivo sobre educação dificilmente poderia permanecer. Foi nessa conjuntura que, no ano seguinte à experiência de Angicos, Paulo Freire chegou a ser convidado para dirigir o Plano Nacional de Educação.
Após o golpe civil-militar de 1964, Freire e alguns integrantes da experiência de Angicos – bem como de outros segmentos da sociedade que, na época, pensavam alternativas para o país, foram perseguidos e presos. De todo modo, a ditadura interrompeu não apenas uma experiência democrática de educação no país, mas também a circulação de ideias e ações de indivíduos que, fora da estrutura estatal, vinham desempenhando um papel importante como mediadores no desenho das políticas públicas no período.
Por que você acha que o ocorrido em Angicos desperta interesse ainda hoje a ponto de ensejar a gravação de um filme?
A Alfabetização de Angicos representa um marco para a história da educação nacional, o que precisamos enaltecer como algo genuíno. Além disso, após o golpe de 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff, e os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, vimos surgirem discursos de ódio, preconceito e propagação de falsas informações sobre Paulo Freire. O filme se constitui como um dever de memória diante de tantas falas preconceituosas. Penso que a história de vida do educador, a intencionalidade e a ideia-força que mobilizou sua prática precisam ser evidenciadas amplamente. Não podemos deixar de pensar sua trajetória e seu amor profundo pela educação. Todavia, penso que a conjuntura e a cultura política dos anos 1960 não podem ser postas de lado. Nesse período, a interferência do capital internacional, notadamente norte-americano, como também a subserviência dos políticos conservadores e militares, silenciaram por 21 anos nuanças de um processo intenso de amor à vida de um ser humano como Freire, que acreditava na educação como uma possibilidade de transformação social e redução de assimetrias históricas num país com um número tão alto de analfabetos.
Por fim, há alguma expectativa para a cinebiografia sobre a vida de Paulo Freire e a experiência de Angicos. Se pudesse fazer alguma indicação aos produtores da obra, qual seria? O que você considera indispensável destacar ao se tratar dessa experiência?
Para deixar a obra mais encorpada, sugiro incluir a relação de Aluízio Alves com o governo dos Estados Unidos – mais precisamente, a questão do convênio com a Aliança para o Progresso e os conflitos locais com o prefeito Djalma Maranhão. Além disso, pode ser interessante a cinebiografia destacar as feições jovens de Paulo Freire, diferente da imagem que se cristalizou no imaginário popular do “velho senhor barbudo”.
Há alguma indicação de filme, série, música ou leitura sobre a experiência de Angicos?
Penso que a leitura dessas três obras são fundamentais para ampliar o conhecimento sobre a temática:
FREIRE, Paulo. Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis. Obra organizada por Ana Maria Araújo Freire. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
TERRA, Antônia; FERNANDES, Francisco Calazans. 40 Horas de Esperança – O método Paulo Freire: política e pedagogia na experiência de Angicos. Série Educação em Ação, Editora Ática, 1994.
OLIVEIRA, Roselia Cristina de. A educação made in Rio Grande do Norte: entre as políticas desenvolvimentistas e o projeto hegemônico da Aliança para o Progresso (1961-1971). Tese de doutoramento, Programa de Pós-graduação em Educação, 2022. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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