A moral e cívica como disposição ideológica na ditadura
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A moral e cívica como disposição ideológica na ditadura

I. O ano era 1967. As políticas repressivas e as violências de Estado postas em ação pela ditadura civil-militar brasileira se intensificavam. Nesse mesmo ano, o livro Brasil, minha Pátria!, escrito pelo professor universitário Theobaldo Miranda Santos e publicado pela Agir, foi reeditado. Com isso, a obra ganhava a sua 27ª edição e trazia um carimbo expressivo na capa: “Uso autorizado pela Ministério da Educação e Cultura. Registro nº 2.606”.


Capa do  livro Brasil, minha Pátria!, escrito pelo professor universitário Theobaldo Miranda Santos

A série, pensada como um programa cujo objetivo era “associar os temas da literatura infantil com as matérias escolares constantes nos currículos oficiais” (SANTOS, 1967, p. 1) poderia, então, ser divulgada por meio de um único livro ao invés dos três previstos no projeto inicial, representando, segundo as suas palavras, uma “exigência imperiosa da conjuntura econômico-financeira que atravessamos, na qual são raros os pais de família que podem adquirir mais de um livro didático para os seus filhos” (SANTOS, 1967, p. 1).


Ao final do prefácio, Santos esclarece o objetivo que guiou a escrita daquela série atualizada para o contexto militar sob a chancela do MEC: “O engrandecimento da pátria, tangido pela esperança de despertar nas novas gerações o amor e a admiração pelas conquistas da civilização brasileira” (SANTOS, 1967, p. 1). Esta sentença, vista em seu contexto, serviria como forma de estabelecer toda uma comunicação histórica pelo regime, configurando certa ordem do discurso, que poderíamos, conforme Carlos Fico, perceber como uma estratégia de propaganda. Em sentido social amplo, ela poderia ser movida, assim, como uma tática que visava a elaboração de “uma imagem positiva dos governos militares, desviando a atenção de boa parte da população dos desmandos que eles próprios praticavam” (FICO, 1997, p. 92).


A escolha dos livros didáticos como objetos de investigação histórica mostra-se importante porque são instrumentos pedagógicos que impactam decisivamente as construções de identidade coletiva e da alteridade, tendo por isso um papel político de destaque (FERRO, 1983). Eles respondem aos parâmetros educacionais disponíveis, circulantes ou em movimento de apropriação, em que se ressalta sua força de agenciamento social, pois os discursos, em geral, possuem a capacidade não apenas de revelar uma dada realidade, mas de instituí-la, de torná-la verdadeira socialmente, implicando e acentuando escolhas ético-políticas de uma sociedade.


Esse discurso tornado verdadeiro perverteria a realidade dos fatos, naturalizando-a por meios falsificadores, deturpadores ou negacionistas. Pela materialidade comunicativa, própria dos discursos, imprime-se toda uma ordem discursivo-social que pretensamente se apresenta legítima, ao ponto de afiançar a colocação de Santos de que no Brasil se viveria em uma democracia: “O Brasil é uma democracia, isto é, um país em que todos são iguais perante a lei e onde o governo é eleito pelo povo” (SANTOS, 1967, p. 227).


II. A elaboração de narrativas escolares durante o regime militar assentava tanto em uma disposição ideológica por parte dos seus autores como, também, respondia a parâmetros protocolares de órgãos criados pelo Estado brasileiro no âmbito da educação, o que abria condições e interditos para o tratamento de assuntos históricos. A partir dessa constatação, compreende-se o alcance do Conselho do Livro Técnico e do Livro Didático (COLTED), instituído em 1966. Cabe dizer que sua instauração não avançou no compasso esperado pelo MEC, levando à revogação do decreto inicial em outubro daquele ano.


Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático

A sigla foi reelaborada e foi estabelecida a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático, cuja finalidade era “incentivar, orientar, coordenar e executar as atividades do Ministério da Educação e Cultura relacionadas com a produção, a edição, o aprimoramento e a distribuição de livros técnicos e de livros didáticos” (decreto nº. 59.355/66). A sua atuação não era de menor importância, dado que ela arregimentava a política editorial em nível nacional, o que balizava a produção do saber histórico escolar no período, sobretudo no governo Castelo Branco (FILGUEIRAS, 2015).


Circe Bittencourt (2010) assinala a existência de mecanismos de controle presentes na elaboração e na mercantilização dos livros didáticos: “seu papel de instrumento de controle do ensino parte dos diversos agentes de poder”. Isso se dá por meio do estabelecimento de interditos de perspectivas, de proposições pedagógicas, de disponibilidade de acesso/veiculação de conteúdos que busca orientar, mesmo com resistências e desvios, as relações de ensino-aprendizagem. O que se depreende é que os livros didáticos, mesmo considerando as apropriações e as ressignificações por parte de estabelecimentos de ensino, professores e estudantes, servem de instrumentos de propagação ideológica e de um saber oficial, chancelando e validando, assim, disposições autoritárias de poder como, no caso em tela, as do regime ditatorial brasileiro.


A COLTED se movimentou a partir de uma trajetória dupla: ofereceu as condições para a expansão da produção de livros didáticos no Brasil, ao passo que se transformou em uma espécie de agência reguladora desses materiais por meio de uma dimensão não apenas epistemológica, mas também ético-política. A regulação da produção didática no Brasil sob o regime militar não parou por aí, como se pode ver a partir da associação da COLTED com a Central Nacional da Educação (CNME), que já existia desde 1950 e cumpria a função de dirigir a produção escolar no país. Já em 1967, foi criada a Fundação Nacional do Material Didático (FENAME), que substituiu a CNME e ampliou o seu raio de ação no sentido de produzir/distribuir “material didático de modo a contribuir para a melhoria de sua qualidade, preço e utilização” (Decreto nº 5.327/67).


Vemos toda uma preocupação com a política nacional de livros didáticos que, com o passar dos anos, foi assumindo as prerrogativas do regime, deixando profundas marcas na História a ser ensinada. Humberto Grande, sujeito alinhado ao regime, passou a ser o diretor executivo da FENAME. Algo que nos aponta para os rumos dessa produção nos anos seguintes devido a sua associação, em 1970, à Comissão Nacional de Moral e Cívica. Seu papel foi decisivo para a ampliação do acesso ao livro didático no Brasil, que sob sua direção trazia marcas do regime.


O plano institucional movimentado por aquela política educacional era o de levar livros didáticos para o interior do país, bem como alcançar as camadas populares. A intenção era promover uma nova ordem político-social, em que as interpretações do Brasil seriam associadas aos valores da moral e cívica e os eventos em torno de 1964 seriam desassociados da perspectiva de golpe de Estado. O objetivo era, assim sendo, o da elaboração de uma continuidade histórica que alçava os militares como democratas, bem como a necessidade da intervenção militar para assegurar a ordem, sendo percebida como uma reação apoiada de maneira consensual pela sociedade.


III. Um fator decisivo para a comunicação histórica do regime se deu pela intensificação dos programas de Educação Moral e Cívica, presentes no cenário educacional brasileiro desde finais do Estado Novo. A inovação no ensino de moral e cívica após o golpe de 1964 se deu por sua articulação com a Doutrina de Segurança Nacional (ALMEIDA, 2009). O seu ensino passou a ser obrigatório nos estabelecimentos escolares do país por imposição do Decreto nº 869, instituído em 12 de setembro de 1969.


A moral e cívica vinha assistir a Doutrina da Segurança Nacional ao buscar docilizar corpos e mentes em nome do dito “bem comum”. O objetivo era estabelecer algo como padrões comportamentais comuns cujos artífices eram os intelectuais militares da Escola Superior de Guerra (ESG): “(...) as elites dirigentes percebem a necessidade de despertar na população interesses, aspirações, valores e objetivos novos, com o fim de induzi-la a mudanças imprescindíveis ao Bem Comum”. (DOUTRINA BÁSICA, 1979, p. 31)


Edifício da Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro.
Edifício da Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro. Reprodução.

No limite, a função do Estado era a da garantia da ordem, de racionalizadora da arena pública com vistas à manutenção de sua autoridade. Essa seria uma tarefa da intelligentsia de Estado, que agiria com finalidade mediadora, conjugando supostos anseios sociais com os objetivos nacionais, tais como pacificação, ordenamento, cordialidade, adaptabilidade e religiosidade cristã: “(...) à medida que o povo se identifica mais diretamente com os Objetivos Nacionais haverá melhores condições para que a Nação vença as etapas necessárias à consecução desses objetivos” (DOUTRINA BÁSICA, 1979, p. 41). Os livros de moral e cívica, em interação com os de História, foram vetores para a movimentação dessas prerrogativas junto ao tecido social do país, numa tentativa de inculcação, disciplinarização coletiva e controle, em que o apelo moral era a aposta para a regulação comportamental e para o enquadramento de sensibilidades.


Tanto é que o coronel Diniz Almeida do Valle, em seu Guia de civismo (1971), se preocupa com certa “mocidade” que, em sua percepção, estaria privada de “bons exemplos” que a guiasse ante “a mais baixa moral” circulante. Por isso, “urge compreendê-la, orientá-la e protegê-la, objetivando a formação da família, sólida, indivisível, apoiada nos alicerces morais e espirituais, como o culto, sobretudo, de tradições, construtivos de fundo religioso” (VALLE, 1971, p. 34). A equação é esta: a instauração de dispositivos institucionais de ordem e de segurança sendo movimentados, entre outros mecanismos, pela moral e cívica, sendo esta uma espécie de corporificação normativo-disciplinar da Doutrina de Segurança Nacional. O coronel segue o seu raciocínio gravando nos corpos dos sujeitos o regime de ordenamento posto em prática, na ambição de conformar subjetividades adesistas a todo um projeto social e político: “o futuro de um País depende, e também o da Humanidade, de cada família, em particular, de cada rebento que será, amanhã, o homem completo que a Pátria exige, diante de tarefas cada vez mais complexas e gigantescas” (VALLE, 1971, p. 34).


O discurso da ESG, corporificado por meio da Doutrina de Segurança Nacional, percebia a realidade a partir de um mote combinatório: fortalecimento de referenciais valorativas de ordenamento e de harmonia pressionados pela noção de engrandecimento, que aparecia vetorizada pela moral e cívica. Acompanhemos o estabelecido pelo texto:


Se a Segurança Nacional é imprescindível para a consecução dos Objetivos desejados, é através do Desenvolvimento que as tensões e angústias serão reduzidas pelo atingimento pleno dos anseios de qualquer sociedade. Em ambiente de insegurança, as ações voltadas para o Desenvolvimento poderão perder intensidade pela pulverização e desgaste dos meios do Poder Nacional, reorientados para a redução de antagonismos (DOUTRINA BÁSICA, 1979, p. 271).      

Os livros de moral e cívica possuíam, nessa direção, a finalidade de capilarizar as disposições orientadoras estabelecidas pelos órgãos estatais, movimentando um conjunto articulado de valores normativos que instaurava a ordem discursiva visada pelo regime. Buscava-se estabelecer, através de uma comunicação histórico-publicitária enredada à escolarização em massa, todo um modo de comportamento social. É exatamente isso que traz o programa oficial da “Revolução de 1964” prescrito no Compêndio de Educação Moral e Cívica (1973), de Rubens Ribeiro dos Santos:


1.Aprimorar a prática e os princípios democráticos consagrados na Constituição Brasileira, sobretudo os referentes à dignidade da pessoa humana no bom sentimento do humano – aos direitos e deveres e liberdade do homem brasileiro – mas não do pseudo-brasileiro, isto é, daquele que está a serviço de outra Pátria – à conceituação da família, à individuação da Pátria e à convicção de que o Estado existe para o Homem e não o Homem para o Estado;
2.Estimular os valores positivos de sustentação da nacionalidade e da Soberania, dando ênfase ao moral, ao civismo e ao espírito religioso;
3.Opor-se às doutrinas e às ideologias que contrariam a alma, a consciência e a tradição brasileira;
4.Garantir a melhora crescente e acelerada dos padrões econômicos do homem brasileiro;
5.Dar à Nação, com o máximo empenho, toda a segurança e a liberdade indispensáveis ao desenvolvimento acelerado, que propicie o bem-estar e a tranquilidade compatíveis e exigidos por nossa grandeza (SANTOS, 1973, p. 46).

Esses livros desejavam integrar comportamentos e a disciplina em si, chancelando a Doutrina de Segurança Nacional – o que significava a legitimação da atuação do regime a partir de um projeto de educação, de pacificação de consciências e de formatação de subjetividades. Há, ainda, uma estratégia correlata de acoplamento das noções de Estado e de Nação, em que se percebe o vetor moral e cívico agindo como componente de coesão e de articulação em que a lógica do dever implicaria, no limite, a manutenção da ordem.


Novamente, o livro de Rubens Ribeiro dos Santos oferece o esteio empírico desta análise em quadro: “Assim, para que os brasileiros compreendam a sua honrosa obrigação Constitucional para tornar-se ativo e espontâneo colaborador nos encargos da Segurança Nacional, impõe-se-lhe, não há como negar, uma completa e urgente Educação Cívica, Moral e Política” (SANTOS, 1973, p. 3).


IV. Um conceito criado por Paul Ricœur pode nos servir como horizonte operatório para esta investigação: memória manipulada. O filósofo insere essa disposição memorial junto ao âmbito prático, onde se pode falar, de fato, em abuso da memória, que correlatamente implicaria em abusos de esquecimento. A manipulação dos repertórios memoriais ocorre de forma ideológica. Em seu entender, esse processo deve-se à “(...) intervenção de um fator inquietante e multiforme que se intercala entre a reivindicação de identidade e as expressões públicas de memória” (RICŒUR, 2007, p. 95).


A comunicação discursiva posta em ação pelo regime e corporificada pela moral e cívica, e pela mediação da narrativa histórica escolar, se enreda, então, na identidade coletiva. É, em outras palavras, a ideologização da memória, em que se verifica um discurso que justifica o poder, algo possível pelos recursos de manipulação que a narrativa oferece. Como deixou claro o autor: “Até o tirano precisa de um retórico, de um sofismo, para transformar em discurso sua empreitada de sedução e intimidação” (RICŒUR, 2007, p. 98).


 

Referências:

ALMEIDA, Djair Lázaro de. Educação moral e cívica na ditadura militar: um estudo de manuais escolares. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos, 2009.

BITTENCOURT, Circe. Identidades e ensino de história no Brasil. In: CARRETERO, Mário et al. Ensino da história e memória coletiva. Porto Alegre: Artmed, 2007.

BRASIL. Escola Superior de Guerra. Doutrina Básica. Rio de Janeiro: Solivro Editora, 1979.

FILGUEIRAS, Juliana Miranda. As políticas para o livro didático durante a ditadura militar: a COLTED e a FENAME. História da Educação. Porto Alegre, v. 19, jan/abr, 2015.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.

SANTOS, Rubens Ribeiro dos Santos. Educação moral, cívica e política. São Paulo: Brasiliense, 1973.

SANTOS, Theobaldo Miranda. Brasil, minha pátria! Rio de Janeiro: Agir, 1967.

VALLE, Diniz Almeida do. Guia de civismo. Brasília, Ministério da Educação e da Cultura, 1971.


Como citar este artigo:

DETONI, Piero. A moral e cívica como disposição ideológica na ditadura militar. História da Ditadura, 6 nov. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-moral-e-c%C3%ADvica-como-disposicao-ideologica-na-ditadura-militar. Acesso em: [inserir data].

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