A questão indígena entre ecos: justiça de transição e colonialidade do poder
Nesta primeira contribuição como colunista no História da Ditadura, abordo a questão indígena na justiça de transição. O objetivo do texto não é esgotar o debate, mas lançar questionamentos que estimulem uma reflexão sobre o tema, conectando-o com o tempo presente. Os pontos expostos são fruto de minha pesquisa de mestrado, que deu origem à dissertação Entre permanências, reparações e avanços: a questão indígena na Comissão Nacional da Verdade (CNV).
A historiadora Juliana Ventura de Souza Fernandes (2020), nos processos iniciais da construção de sua pesquisa, foi atravessada pela escuta da perspectiva do povo Xakriabá sobre a ditadura militar. “O que é isso de ditadura, minha filha?”, foi uma das respostas dos indígenas diante das questões levantadas por Fernandes. Essas palavras apontam que a violência ditatorial incide nos povos originários em dimensões e significados próprios. Entendendo o campo da História como um pilar fundamental para a construção da justiça de transição, surge a seguinte pergunta: quais são as urgências que emergem diante de nós quando se torna evidente que a justiça de transição brasileira pode ter apresentado limites em relação aos povos indígenas no Brasil?
Ditadura militar e povos indígenas
A compreensão de que a ditadura militar representou um marco de violências e violações contra os povos indígenas se consolidou, ainda que de maneira frágil, nos debates da historiografia brasileira nos últimos anos. Pode-se afirmar que as violações se expressaram através dos seguintes eixos: a) Subordinação dos órgãos tutores e indigenistas oficiais aos projetos políticos e econômicos; b) Relação direta entre a execução dos planos de desenvolvimento com as violências e violações dos direitos dos povos indígenas; c) Militarização da política indigenista e sua relação com a repressão clandestina; d) Respaldo ou incentivo do Estado brasileiro para a existência das violências; e) Construção pela via estatal do entendimento dos povos indígenas como um empecilho ao desenvolvimento da nação e como ameaça à segurança nacional.
Apesar de avanços no entendimento da estrutura das violações, a ditadura militar é um processo histórico pensado majoritariamente por meio de conceitos e perspectivas não indígenas. Se as análises não tomam como um de seus pontos de partida a perspectiva indígena, a compreensão do que significaram as violações de Direitos Humanos para as nações indígenas se torna um feito difícil de ser estimulado e alcançado. No mesmo sentido, os significados que as reparações às populações originárias podem assumir depende diretamente do percurso e balizas adotadas durante a apuração das violações. Dessa forma, o estudo dos caminhos da justiça de transição – e, principalmente, de seus limites e fragilidades – possibilita um olhar para as continuidades do período ditatorial que se apresentam como feridas abertas no tempo presente.
Quando a palavra violência é evocada no entrelaço dos debates acerca da justiça de transição, algumas percepções são presentes. Dentre elas, destaca-se a existência do Estado e de agentes ligados à sua estrutura enquanto perpetradores de violações de Direitos Humanos, a definição de quais sujeitos são considerados “vítimas” e a própria definição do que é a violência. Porém, se esses elementos são pensados a partir de um repertório único, que não inclui a perspectiva dos povos originários, um cenário de limites e fragilidades pode ser estabelecido. Cito como exemplo a reflexão de que o significado do que é violência e seus desdobramentos nas formas de existência em sociedade podem não ser os mesmos para indígenas e não indígenas.
O ex-presidente boliviano Evo Morales, no prefácio do livro Decolonialismo indígena (2020, p. 13), de Álvaro de Azevedo Gonzaga, aponta que
o problema é que o eurocentrismo sempre observou a natureza como se estivesse fora dela, como se fossem superiores a ela e como se tivessem pleno direito a explorá-la. Nós sempre fomos parte da natureza, sempre respeitamos seus ciclos e sempre lhe prestamos homenagem, juntos. Atualmente, não encontrarão um ambiente mais saudável do que aquele onde historicamente se assentaram os povos originários. Portanto, se somos parte da natureza e o homem branco, ingenuamente, pensa que é superior a ela, evidente que não tivemos nem pudemos ter uma relação igualitária e respeitosa. Sempre enfrentamos uma relação desigual entre ‘eles’ e ‘nós’.
Essa relação entre o que podemos chamar de “eles” e “nós” expressa que o indígena se localiza em uma posição à margem do que é entendido como sujeito com agência e dotado de civilidade e humanidade. A consolidação dessa dicotomia legitima os processos de violência física e cultural contra os grupos indígenas e as fragilidades para a garantia de seus direitos. Como aponta Carlos Benítez Trinidad (2018), quando reflete sobre a questão indígena na ditadura militar e analisa os caminhos do imaginário ao dominar:
Nesta perigosa semente do Outro com quem não se compartilha uma natureza similar, ao ser estranho a nossas referências, reside o eixo central desta exposição. Imaginar a alteridade que nos rodeia como uma oposição ou um estranho, ao Nós, leva-nos a desenhar características que podem acabar facilitando a criação das lógicas que legitimam a dominação sobre o Outro, e a imposição de nossa ontologia ‘verdadeira’ na forma de hegemonia. Esse é o passo que leva do imaginar ao dominar, e a partir daí normalizar através de exploração, subordinação ou eliminação, a violência física ou cultural sobre o Outro. (TRINIDAD, 2018, p. 257-284)
Ao colocarmos em primeiro plano os processos que envolvem a questão indígena na justiça de transição, devemos buscar analisar se seus mecanismos colaboraram para romper ou dão continuidade às lógicas que sustentam os processos de violação fundados na perspectiva do “nós” e do “eles”.
Justiça de transição brasileira e a questão indígena: a Comissão Nacional da Verdade em perspectiva
Pode-se afirmar que a apuração das violências contra os povos indígenas feita pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi a primeira em grande escala na história do Brasil e deve ser considerada como um importante passo da questão indígena na justiça de transição brasileira. A CNV trouxe uma fresta de sol, mesmo que de maneira frágil em alguns aspectos, e possibilitou que se pudesse avançar na percepção da existência dessas violações e violências que, até então, não eram vistas como possíveis e importantes para serem inseridas nos espaços da justiça de transição. Portanto, analisar criticamente os limites e as fragilidades existentes na experiência brasileira não significa criticar de maneira imediata o trabalho da CNV, e sim reconhecer que ela se localizava em uma estrutura historicamente marcada por limites e formas de violências em relação aos povos indígenas – e romper com tal estrutura não é uma tarefa fácil e a curto prazo.
Marcelo Zelic, no ano de 2017, em uma entrevista concedida durante a XV Semana dos Museus, evento promovido pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná (MAE/UFPR), afirma que esteve presente nos processos relacionados ao início da construção da CNV. Na época, ele era vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo. Zelic aponta que o grupo foi abordado por um e-mail que continha a seguinte mensagem: “Por que vocês só veem mortos e desaparecidos e não os índios?”. Esta mensagem, que foi escrita por um indígena da etnia Marubo, representava a urgência de uma apuração que, até aquele momento, era sinônimo de ausência. O Grupo Tortura Nunca Mais respondeu o e-mail indagando sobre o que se tratava e recebeu como resposta um arquivo referente à violência contra o povo Waimiri-Atroari durante a Guerrilha do Araguaia. A expressão de nítida diferenciação entre “mortos e desaparecidos” e “índios” denuncia a dicotomia entre indivíduos não-indígenas e indígenas presente nas reflexões e percepções sobre as vítimas de violações dos Direitos Humanos no período ditatorial.
Ao analisarmos o processo de inserção e desenvolvimento das apurações é possível perceber certas dificuldades dos mecanismos da justiça de transição brasileira em captar o significado e o desdobramento das violências para os povos indígenas. Estes pontos são intensificados e demonstrados pela presença majoritária de marcadores não indígenas no processo de escrita do relatório. Durante as sessões presentes no caderno que trata das violações contra os povos indígenas são mobilizados aproximadamente treze depoimentos de indígenas, enquanto o número de trechos de documentos, CPIs, relatos e levantamentos feitos por antropólogos ou funcionários do Estado é de quarenta e três.
As especificidades da violência refletem consequências complexas que só podem ser percebidas e analisadas verdadeiramente quando se escuta sobre o significado da terra, da floresta, da água, da possibilidade de manutenção da cultura, da alimentação e outras esferas fundamentais para as diversas formas de existência de mundos. Davi Kopenawa, em suas “palavras dadas” no livro A queda do Céu (2015), se refere ao “branco ocidental” como o “povo da mercadoria”, um povo que sonha muito, mas que só consegue sonhar consigo mesmo. É urgente a reflexão de que o “povo da mercadoria” é incapaz de saber e entender sozinho o significado de uma violência contra uma nação indígena. Não se trata também de acreditar que as nações indígenas são incapazes de resolver seus conflitos: devemos colocar em primeiro plano a urgência de acolher outros tipos de conhecimento e buscar entender como podemos colaborar com o processo de busca por Memória, Verdade e Justiça. A começar por compreender que essas três palavras podem não significar a mesma coisa entre índios e não índios.
Juliana Fernandes (2020, p. 294) trabalha a importância de reconhecer que a consideração dos elementos específicos das cosmovisões indígenas é ponto fundamental para a restituição de uma justiça epistêmica, e que este caminho é condição necessária para “o estabelecimento de parâmetros de políticas efetivas de memória e verdade aos povos indígenas”. Não se trata de construir um caminho em que os mecanismos da justiça de transição se apresentem através de modelos prontos ou universalistas, mas de propor uma alternativa que tenha como pilar fundamental a compreensão das perspectivas dos povos indígenas em relação às violências e seus significados.
A identificação da dicotomia do “nós” e do “eles” e a presença majoritária de marcadores não indígenas nos espaços relacionados à justiça de transição no Brasil demonstram marcas da existência do que Anibal Quijano debate enquanto uma colonialidade do poder. Nas palavras de Quijano (2005, p. 136),
por tudo isso, a colonialidade do poder estabelecida sobre a ideia de raça deve ser admitida como um fator básico na questão nacional e do Estado-nação. O problema é, contudo, que na América Latina a perspectiva eurocêntrica foi adotada pelos grupos dominantes como própria e levou-os a impor o modelo europeu de formação do Estado-nação para estruturas de poder organizadas em torno de relações coloniais. Assim, ainda nos encontramos hoje num labirinto em que o Minotauro é sempre visível, mas sem nenhuma Ariadne para mostrar-nos a ansiada saída.
A colonialidade do poder atuou e atua sobre a formação do poder estatal e sobre a perspectiva de conhecimento adotada de maneira majoritária em nossa sociedade. A legitimação da violência e sua continuidade podem ser vistas através do entendimento de que existe um ideal de hierarquização racial, ancorado em práticas cotidianas, que influenciam o imaginário coletivo e é muito presente nas estruturas ligadas ao Estado-nação e ao poder estatal. Quando essa identificação é colocada em perspectiva com a reflexão de que os mecanismos da justiça de transição no Brasil nascem ligados a essas estruturas, é possível visualizar como o debate sobre as fragilidades e limites da justiça de transição em relação aos povos indígenas precisa buscar analisar as lógicas de poder fundadas na colonialidade e como elas se manifestam nesses espaços.
Parece-me que um importante primeiro passo diante das questões aqui levantadas é de repensarmos quais referências temos adotado para pensar e pesquisar processos de violência nos regimes ditatoriais e suas continuidades. Um elemento que pode surgir ao final deste pequeno texto é o questionamento sobre o limite que possuímos para lidar com o tema da questão indígena. Como lidar com um tema tão complexo, buscar colaborar para existência de resoluções, mas entendendo nosso lugar, visão de mundo e influências?
O caminho de buscar colaborar para que as vozes dos povos indígenas possam ecoar para além das barreiras construídas em nossa sociedade é um importante começo. Atrelado a esse ponto devemos reconhecer o impacto que as fragilidades e limites apresentados possuem para a existência e o entendimento da reparação para os povos originários, entendendo que a garantia da existência de mundos passa essencialmente pelo direito à terra.
Este texto não busca ser uma resposta pronta, mas se enquadra em uma tentativa de dar forma a pensamentos urgentes e colaborar para que outras reflexões sobre o tema existam ao final de sua leitura.
Recentemente o Brasil deu um passo histórico. No dia 27 de outubro de 2022, aconteceu uma audiência pública na cidade de Belo Horizonte-MG para iniciar o processo de criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade, tive a oportunidade de estar presente. Nas palavras de Célia Xakriabá na mesa de abertura: “O futuro, a verdade, será ancestral ou não será”. Esta fala aponta o caminho que os povos indígenas têm buscado nesse espaço, principalmente no sentido de lutar para que as balizas adotadas e a condução das apurações sejam orientadas pela perspectiva indígena. Com certeza o tema da Comissão Nacional Indígena da Verdade e a pauta da questão indígena no governo Lula será assunto central do próximo texto, que irá se conectar com as inquietações deixadas por este.
Créditos da imagem destacada: Capa do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2021 (CIMI). Autora: Giuliane Martins/Com. Txai. Reprodução.
REFERÊNCIAS: FERNANDES, Juliana Ventura de Souza. A “guerra dos 18 anos” – repertórios para existir e resistir à ditadura e a outros fins de mundo: uma perspectiva do povo indígena Xakriabá e suas cosmopolíticas de memória. 2020. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais.
GONZAGA, Álvaro de Azevedo. Decolonialismo indígena. São Paulo: Matrioska, 2021.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
LIMA, E. C. d., & AZOLA, F. A. (2017). Entrevista com Marcelo Zelic: Sobre o relatório Figueiredo, os indígenas na comissão nacional da verdade e a defesa dos direitos humanos. Mediações - Revista de Ciências Sociais, 22(2).
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: QUIJANO, Anibal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 117-142.
QUINALHA, Renan Honório. Justiça de transição: contornos do conceito. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo.
QUINALHA, Renan Honório; TELES, Edson L. de A. (org.). Espectros da ditadura: da Comissão da Verdade ao bolsonarismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. 484 p.
RED LATINOAMERICANA DE ANTROPOLOGÍA JURÍDICA (RELAJU). Formas de incorporación del tratamiento diferencial a víctimas de pueblos indígenas en procesos de justicia transicional en Latinoamérica, 2010.
TRINIDAD, Carlos Benítez. A questão indígena sob a ditadura militar: do imaginar ao dominar. Anuário Antropológico, Brasília, v. 43, n. 1, p. 257-284, 2018.
Como citar este artigo:
FARIA, Hygor Mesquita. A necessidade de dizer o indizível. História da Ditadura, 13 fev. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-questao-indigena-entre-ecos-justica-de-transicao-e-colonialidade-do-poder. Acesso em: [inserir data]
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