Daniel Saraiva
A trajetória de Sandra Barsotti: memória além das telas
Atualizado: 13 de abr. de 2022
A historiadora Gisele Bischoff Gellacic analisa em sua História da liberação sexual feminina no Brasil (2018) o destaque conferido à sexualidade em meio da efervescência cultural na década de 1960. Segundo a pesquisadora, são importantes as mudanças que já vinham sendo pleiteadas pelos jovens cerca de dez anos antes, como a busca por uma “sociedade mais descontraída e mais espontânea, sobretudo quando a juventude propôs novas formas de vestimenta e de relacionamento com próprio corpo, a partir dos movimentos sinuosos, rápidos e frenéticos do rock´n roll”. Fundamentais foram também as inovações científicas, como o advento da pílula anticoncepcional, a produção de relatórios médicos e psicológicos que redimensionaram a sexualidade, propondo novas formas de amar e de prazer. Gisele Gellacic destaca ainda que o cinema de Hollywoodfoi um dos grandes responsáveis por apresentar na grande tela corpos erotizados, exercendo importante influência sobre as mudanças de atitude a partir dos anos 1950 (p. 14-17).
Naquele mesmo período, um grande número de mulheres passou a adquirir independência através do mercado de trabalho. A mudança foi radical. No Brasil, sobretudo a partir da década de 1970, essas transformações tornaram-se perceptíveis. A trajetória de Sandra Barsotti se insere nessa história da emancipação feminina. Nascida no dia 12 de abril de 1951, na cidade do Rio de Janeiro, Sandra foi criada na Zona Sul carioca, como ela lembra na entrevista concedida em maio de 2019: uma criação tradicional, para ser esposa e mãe. Entretanto, com menos de vinte anos, Sandra foi convidada para gravar seu primeiro filme Romualdo e Juliana (1971) e, a partir daí, não parou mais. Só na década de 1970 foram 20 filmes; estrelou mais de uma dezena nos anos seguintes. Do cinema, a atriz foi para a televisão onde trabalhou em diversas emissoras como a Rede Globo, TV Tupi, Bandeirantes e Manchete, interpretando textos de diversos autores nas mais de vinte produções das quais fez parte.
A professora de Língua, Literatura e Cultura Daphne Patai afirma que uma entrevista, seguindo a metodologia de história oral, deve ser entendida como um ponto de intersecção entre duas subjetividades – a do entrevistador e a do entrevistado – as visões culturais dos dois interlocutores, as memórias do entrevistado e as questões do entrevistador, as hesitações e as palavras e os gestos de estímulo e muito mais (PATAI, 2010, p. 20). Ainda segundo Patai:
A história oral nos permite ouvir as histórias de indivíduos e grupos que de outra forma seriam ignorados; possibilita expandir os horizontes de nosso conhecimento sobre o mundo; e estimula o questionamento de nossas próprias hipóteses a respeito das experiências e dos pontos de vista de outras pessoas e culturas (PATAI, 2010, p. 142).
Foi a partir desse encontro entre duas subjetividades que a entrevista com Sandra Barsotti foi realizada na cidade do Rio de Janeiro, resultando em mais de uma hora de depoimento, um relato de vida. A atriz abre suas memórias sobre influências artísticas, suas experiências no cinema, teatro, televisão, fala sobre o preconceito enfrentado durante sua trajetória por ser mulher, por ter feito filmes que eram identificados pejorativamente como pornochanchada. Através das lembranças de Sandra, podemos perceber aspectos da história social como a própria emancipação feminina vivida à época, as formas de discriminação, a censura nas produções culturais, a influência da ditadura militar nas artes, o desenvolvimento da televisão e os percalços da vida artística naquele tempo.
Entre as memórias evocadas por Sandra na entrevista, a atriz explica como passou a ser reconhecida depois de estrear no cinema. Destaca que houve uma “descontinuação”. Ela, que havia tido uma criação tradicional para ser esposa e cuidar dos filhos, ao iniciar a carreira de atriz, passou a ser vista com outros olhos pela sociedade.
Como símbolo sexual, como gostosa, a digerível para não dizer comível. Que horror. E isso incomodava. Mudou talvez o meu destino. Por exemplo, digamos, eu fui programada para ser uma boa esposa com um monte de filhos. E eu tenho essa coisa, eu sou cuidadora, quem frequenta minha página, acompanha minha vida, me conheceu e me conhece, e sabe que eu gosto das minhas coisas de cozinha, dos meus bichinhos, minhas plantinhas, de costurar, gosto, fui criada para isso. Mas a imagem sexy interrompeu, porque nós vivemos em um país, eu já não sei se mundo, mas muito mais um país mesquinho, machista, nojento. Agora mais fundamentalista e nojento do que nunca, e para aquela gente eu era o pecado (SANDRA BARSOTTI, 2019).
A trajetória de Sandra Barsotti nos ajuda a entrever um momento cultural do Brasil marcado pela efervescência das artes diante de um governo autoritário, ao mesmo tempo em que nos convida a acompanhar a vida de uma jovem de classe média alçada à fama, a entender os percalços enfrentados por essa mulher em uma sociedade predominantemente machista.
Ouvir as lembranças de Sandra Barsotti me remeteu à canção da cantora e compositora Joyce Moreno, Mulheres do Brasil. A entrevista vale cada segundo, assim como a música:
No tempo em que a maçã foi inventada/Antes da pólvora, da roda e do jornal/A mulher passou a ser culpada/Pelos deslizes do pecado original/Guardiã de todas as virtudes/Santas e megeras, pecadoras e donzelas/Filhas de Maria ou deusas lá de Hollywood/São irmãs porque a mãe natureza fez todas tão belas (JOYCE MORENO)
Referências:
GELLACIC, Gisele Bischoff. Despindo corpos: uma história da liberação sexual feminina no Brasil 1961-1985. São Paulo: Alameda, 2018.
MORENO, Joyce. Mulheres do Brasil. In: Joyce Ao Vivo (LP). 1989. EMI-Odeon.
PATAI, Daphne. História oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz, 2010.
Crédito da imagem destacada: Sandra Barsotti nas gravações do filme Romualdo e Juliana (1971). Acervo: Arquivo Público do Estado de São Paulo.
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