A Tropa: a ditadura através do teatro
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  • Foto do escritorDaniel Saraiva

A Tropa: a ditadura através do teatro

O passado que não passa, que deixa marcas: o trauma. Henry Rousso nos lembra que se costuma ler, e muitas vezes com razão, “que as lembranças mais inassimiláveis da história, tanto a recente quanto a antiga, foram, por um longo período, reprimidas ou objetos de silêncios e tabus”. Ao mesmo tempo, faz aproximadamente meio século que a sociedade contemporânea, ocidental e ocidentalizada, relaciona-se com o passado considerando o “dever de memória”, onde há um clamor pelo reconhecimento do destino imposto às vítimas de perseguições, opressões e crimes em massa. (ROUSSO, 2020, p. 71).


No Brasil, sem dúvida, o passado traumático mais recente foi a ditadura militar. O golpe de 1964, que muitos ainda insistem em chamar de “revolução”, deixou marcas indeléveis na sociedade. Além de cassar direitos políticos de cidadãos e censurar as artes, o regime militar torturou e, diversas vezes, assassinou seus opositores. Corpos que nunca apareceram, famílias que, até hoje, não puderam concluir o ritual fúnebre e viver o luto, pois não há um corpo que materialize a morte.


Diante disso, falar sobre a ditadura militar foi, e ainda é, um tabu, muito pela maneira conciliatória como o regime ditatorial terminou. O autoritarismo do governo golpista muitas vezes foi escamoteado, ganhando verniz legalista. Propagandas foram divulgadas durante os mais de vinte anos em que os militares estiveram no poder, com slogans como “Brasil: Ame-o ou deixe-o!”, músicas ufanistas como “Eu te amo meu Brasil”, composição de Dom, da dupla Dom e Ravel, e o hino “Pra frente Brasil”, de Miguel Gustavo – que alimentavam um clima patriótico e buscavam promover a sensação de que o Brasil era um país em pleno crescimento. Para esse objetivo, também foram produzidas propagandas sobre o chamado “Milagre Econômico Brasileiro” (1968-1973), quando o Produto Interno Bruto (PIB) do país teve crescimento acelerado, chegando a 11,1% ao ano, com baixa inflação, aumento da industrialização e construção de grandes obras como a ponte Rio-Niterói e a usina de Itaipu. Esses elementos, que foram propagandeados em exaustão, fazem, ainda hoje, com que muitos clamem pela “volta da ditadura”. O que esses indivíduos e grupos não enxergam ou desconhecem são as heranças deixadas pelo período, como o exponencial aumento da dívida externa, a desvalorização da moeda brasileira frente ao dólar, o aumento da pobreza e diversos casos de corrupção – em sua maior parte censurados pelo governo militar.


Passadas mais de três décadas após o fim da última ditadura brasileira, ainda é difícil falar sobre o tema para um público mais amplo. Na televisão, duas tentativas – Amor e revolução (SBT) e Os dias eram assim (Rede Globo) – não foram sucesso de audiência, assuntos como tortura e prisões políticas ainda causam estranhamento e muitos não acreditam que elas aconteceram, e, em alguns casos, chegam a afugentar o público.


Capa do livro A Tropa, de Gustavo Pinheiro.

Essa dificuldade em abordar o tema aparece, por vezes, também em outras artes, quando a temática repele os espectadores. A peça de teatro A Tropa, porém, vai na contramão dessa tendência conservadora. Escrito em 2015, durante os atos contra a então presidente eleita, Dilma Russeff, trata-se de um texto que tem como um de seus objetivos mostrar que ainda temos “esqueletos no armário”, o que faz o público repensar, entre momentos de risos e silêncios, sobre o que foi a ditadura militar brasileira. A peça, escrita por Gustavo Pinheiro, não é panfletária: é profunda mesmo quando nos faz rir. Imagine-se, por exemplo, assistindo à cena de um pai, coronel da reserva, viúvo, internado em um hospital, recebendo a visita de seus quatro filhos.


O cenário remete a um quarto de hospital, tem uma cama, na qual o protagonista passa todo espetáculo, e bancos, onde os filhos vão sentando de forma alternada. O ambiente é construído em um tom verde claro, o que nos ajuda a entender a ideia central do espetáculo.


Em minha interpretação, os quatro filhos representam setores da sociedade: um dentista aposentado do Exército (Humberto), um engenheiro de uma grande construtora (Arthur), um jornalista que recém saiu do emprego para seguir a vida como cineasta (Ernesto) e o quarto filho, que é usuário de drogas e sem profissão fixa (João Baptista). Durante a trama, descobrimos ainda que havia um filho, o terceiro (Emilio), que faleceu ainda criança. Os nomes te lembram algo?


A temática da peça é entrecortada por gargalhadas da plateia, que vê no protagonista razinza um alívio cômico. Interpretado por um magnético Otávio Augusto, o personagem central critica ferozmente seus rebentos e, aos poucos, vai deixando claro seu apreço e saudosismo pela ditadura militar. A interpretação do protagonista, e dos quatro atores que interpretam seus filhos, é arrebatadora, e faz com que a plateia fique vidrada no diálogo apresentado por eles. Os cinco atores no palco apresentam grande cumplicidade em cena e nos brindam com uma atuação primorosa.


Sobre a peça, Otávio Augusto, que completa neste ano 60 primaveras de carreira, fala do amor pela profissão, por estar no palco: “Porque chegou um ponto na carreira, agora por exemplo com essa peça, que você fala assim: é um amor tão grande que se eu não fosse para o teatro fazer alguma coisa agora, eu estaria em depressão”. Estar no palco diante de uma plateia que vai tomando posições no decorrer da atuação, que vai se apropriando do texto que relaciona com sua trajetória política parece fundamental ao ator, que viveu o período autoritário e sentiu na pele os desmandos da censura.


A Tropa: espetáculo protagonizado por Otávio Augusto
A Tropa: espetáculo protagonizado por Otávio Augusto (Elisa Mendes/ Divulgação)

Durante a apresentação, alguns espectadores se identificam com o pai conservador, outros vão entendendo o caráter desse coronel e vão repelindo aquela figura que representa um passado que viola o presente, um grupo que não foi punido pelos crimes que cometeram. O que gera uma grande expectativa não só em relação ao texto, mas também ao que o cidadão que está na poltrona ao lado está pensando. Será que ele concorda com o coronel? Será que é um dos que clamam pelo retorno da ditadura?


Cristina Mullins, atriz e companheira de Otávio Augusto, faz a assistência da produção da montagem e afirma que o elenco tem um afeto pelo espetáculo e sobretudo entre si. A respeito do texto ela diz:


Chega uma hora que você não sabe onde você está, e o que acontece? Você abre as defesas, então você embarca na viagem. Eu acho que é isso que acontece com essa peça. E você vê, tem gente que chora de soluçar na peça, a gente escuta! Tem gente que torce, grita, fala... (MULLINS, 2022)

Sobre o afeto entre o grupo, Otávio Augusto destaca:


Eu estou tão tocado com isso, não é nem sucesso, é aquela coisa de você ver que a sua cabeça, o seu sentimento, está orientado certo no trabalho, entendeu? Foi todo mundo, de repente o grupo, a gente não se larga, fica aquela turma. [...] Ontem eles fizeram um negócio de aniversário, fizeram uma festinha lá, falei: “porra, uma festinha?”, foi gente pra caramba! Aeroporto de Curitiba, não esqueço... (OTÁVIO AUGUSTO, 2022)

Otávio Augusto enxerga o encontro do grupo como algo que o remete ao princípio de seu oficio, quando o teatro aglutinava os artistas e a convivência era constante. O ator começou no teatro profissionalmente no Oficina, no espetáculo Os inimigos. Naquele tempo, as peças duravam meses e tinham apresentações em vários estados. Isso tudo foi quebrado e tolhido pela ditadura militar, pelos cortes da censura, pela marcação cerrada sobre os autores, atores, pela instabilidade que a ditadura provocou fundamentalmente no teatro, uma arte de contato direto entre público e plateia.


Durante a ditadura, a peça tinha de ter o texto liberado pela censura e, depois, a liberação ainda era condicionada a um ensaio geral para os censores, que podiam, naquele momento, vetar o espetáculo, o que geraria um grande prejuízo financeiro para todo o grupo. Assim ocorreu com a censura de Calabar, em 1973, peça de Chico Buarque e Ruy Guerra, que já tinha sua estreia e mais alguns dias com todos os ingressos vendidos. Produzida por Fernando Torres, a peça foi censurada e assim foi mantida por sete anos. O espetáculo tinha sido ensaiado por dois meses com direção de Fernando Peixoto e direção musical de Dori Caymmi. No elenco, 48 atores, entre os quais, Betty Faria. O espetáculo foi censurado na véspera de sua estreia, resultando em um prejuízo de mais de três milhões de cruzeiros.


Sobre suas memórias da ditadura militar, Otávio Augusto lembra:


Arena e Oficina com certeza eram perseguidas. Inclusive aqui no Rio também, não era só em São Paulo, aqui no Rio tinha um dia que eles marcavam durante a tarde, vinham até dois, três censores para assistir. Era um espetáculo feito só para eles, não podia entrar ninguém, nem diretor, para ficar ali na plateia, era só para eles. Então era uma coisa que você ficava ali, era meio... era meio uma prisão mesmo, da tortura, entendeu? E eles cortavam coisas que são absurdas. (OTÁVIO AUGUSTO, 2022)

Em determinado momento, em A Tropa, um dos irmãos, o jornalista que quer fazer um filme, diz que tentaria arrumar alguma vaga na produção para o irmão mais velho, o dentista aposentado do Exército. É aí que o personagem afirma: “Nós, militares, estamos mais acostumados a proibir filmes do que a fazê-los” – em uma clara referência à censura aplicada às artes, que não começou na ditadura militar de 1964, mas se tornou centralizada e se manteve atuante durante período autoritário, só sendo extinta com a Constituição de 1988. A lembrança anterior de Otávio Augusto vai ao encontro da frase do texto de Gustavo Pinheiro, de como a censura usava a “tesoura” para tolher as artes. Otávio ainda lembra de um dos momentos mais violentos de nossa história, quando a cultura foi perseguida, como no ataque do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) no espetáculo Roda Viva:


Roda Viva. Que fez aqui, nós estávamos fazendo o teatro com o Zé Celso, aí a turma fez com o Zé Celso em seguida esse espetáculo, foram para São Paulo. Lá em São Paulo se pegava pesado, tinha o CCC, lá eles invadiram, um dia pegaram, entraram lá, arrebentaram tudo, parecia esse negócio de Brasília, sabe? Arrebentavam... Aí a Marília [Pêra] apanhou, foi uma coisa brava. Mas, de certa forma, tirou o medo. Se tem que levar porrada, então vamos dar também. Porque era uma coisa que você não tinha praticado, né? (OTÁVIO AUGUSTO, 2022)

O depoimento expressa parte da violência ditatorial pouco comentada no meio artístico atual. Um momento corajoso e que tem destaque na peça ocorre quando o coronel fala para os filhos que eles “não conheceram o Brasil que a minha geração conheceu”; “um país esperançoso, de crescimento, de grandes projetos” – claramente fazendo uma alusão à parte da sociedade que ainda tem da ditadura a lembrança de um momento áureo para o país. No fim, ele diz “A gente simplesmente vivia, e era feliz”. A frase vem depois de uma série de críticas à violência nos dias atuais. O discurso idealizado do pai é quebrado, no entanto, por uma fala do filho mais novo, João: “Esta é a sua versão da História. Muita gente nunca voltou para casa...”. O personagem se refere aos desaparecidos políticos que sofreram com a violência da máquina do Estado, alguns até hoje com paradeiro desconhecido. Quando o pai diz “Lá vem você, João Batista”, o filho rebate “Não sou eu, coronel. É a História. Centenas de pessoas foram torturadas e mortas nesse mesmo mundo cor-de-rosa que você está pintando”. O dialogo segue e frases como “A revolução tinha uma causa” e “Eu nunca cometi nenhum abuso” são entoadas pelo coronel.


Pouco adiante, descobrimos que uma namorada de Humberto, o filho mais velho, foi presa durante a ditadura. Eis que o pai adjetiva a jovem como “aquela arruaceira”, “comunista” e “subversiva”. O coronel afirma que o filho mais velho nunca pediu ajuda para a namorada – astúcia da memória ou dissimulação? –, já que, em uma digressão, Humberto, com as luzes apagadas e com o foco apenas o iluminando, lembra do episódio no qual pediu insistentemente a ajuda do pai. Quando a luz volta ao normal e o diálogo segue, o coronel reproduz uma fala de desresponsabilização: “Sabe lá por que essa moça sumiu da vida do seu irmão... Sabe lá... quem disse que tem a ver com a política?”.


Mas qual é o segredo para que uma peça sobre temática tão espinhosa tenha passado de 160 apresentações? Como explicar um espetáculo que tem mais de oito anos de estrada após a estreia? A peça acompanhou anos complexos de nossa vida política. Se ela foi escrita próximo da deposição de uma presidenta eleita democraticamente, ela seguiu em um governo ocupado por um vice impopular e ainda por quatro anos após a eleição de um presidente populista de extrema direita (MOUFFE, 2003), onde os setores progressistas da sociedade, de fato, tiveram medo do retorno a uma ditadura. Várias vezes o ex-presidente Jair Bolsonaro elogiou o regime autoritário, flertou com o golpe e fez com que nos deparássemos, em nossas vidas pessoais, profissionais, familiares, comunitária etc., com várias figuras semelhantes ao coronel da peça, viúvos do regime autoritário, pessoas que não imaginávamos que pudessem apoiar um presidente capaz de tecer elogios públicos a um conhecido torturador. A figura do pai que encontramos em A Tropa é a figura de vários parentes que durante os quatro anos da vigência do governo Bolsonaro e da eleição seguinte trouxeram para os encontros de família uma visão de país que alguns de nós considerávamos inexistente.


Cabe destacar que a peça também traz críticas a aspectos dos governos de esquerda, afinal é um texto que nos faz pensar nas contradições da política institucional. Júlio Bentivoglio, ao falar sobre as políticas e práticas de esquecimento em um “país sem memória”, destaca:


Historicamente, políticos, grandes empresas financiadoras de campanhas e veículos da grande mídia assumiram um espaço e um controle enorme sobre as narrativas históricas, tornando-se agentes decisivos na produção de memória histórica e política no Brasil (BENTIVOGLIO, 2020, p. 168).

O passado brasileiro é, muitas vezes, representado de maneira fragmentada, factual e dispersa por emissoras de TV, jornais e rádio, o que dificulta a compreensão de processos mais gerais, de estruturas mais profundas e dos mecanismos de funcionamento do jogo político (BENTIVOGLIO, 2020, p. 168). A memória das vítimas da ditadura continua presente, mas individualizada, o que a torna incapaz de mobilizar a sociedade coletivamente nos dias atuais. Bentivoglio segue destacando que a ditadura e a repressão viraram um passado pedagógico que não deve se repetir. Além de uma ferida aberta em nossa sociedade, pois torturadores continuam “caminhando tranquilamente à luz do Sol”. (BENTIVOGLIO, 2020, p. 173).


Um passado que não passa, uma ferida social aberta, punições nunca realizadas, julgamentos que não existiram. Esse é parte do passado que a ditadura militar nos legou. De um lado, até hoje há mães que não puderam enterrar seus filhos, de outro, brasileiros saudosistas do regime autoritário invadiram a Praça dos Três Poderes, em Brasília, pedindo a impugnação de uma eleição da qual saiu vitorioso um presidente democrático e que traz a pluralidade em seu mandato. Lula foi eleito em grande parte por minorias, por grupos desvalorizados pelo governo anterior, incluindo os artistas. Assistir A Tropa é pensar no que vivemos nos últimos anos, pensar na nossa história, pensar no Brasil que queremos e ter certeza do país do que não queremos. Tudo isso sentados em uma cadeira diante de um palco, seus atores, a arte e o convite à catarse.


 

Referências:

BENTIVOGLIO, Júlio. Políticas de esquecimentos em um país sem memória: enredamentos da ditadura militar no Brasil. In: FREDRIGO, Fabiana; GOMES, Ivan. História e Trauma: linguagens e usos do passado. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania e a questão do pluralismo. Política e Sociedade, n. 3, out. 2003.

OTÁVIO AUGUSTO; MULLINS, Cristina. Entrevista concedida ao pesquisador Daniel Saraiva. Rio de Janeiro, jan. 2023.

PINHEIRO, Gustavo. A Tropa. Rio de Janeiro: Cobogó, 2018.

ROUSSO, Henry. Memória traumática da Europa. In: FREDRIGO, Fabiana; GOMES, Ivan. História e Trauma: Linguagens e Usos do passado. Vitória: Editora Milfontes, 2020.


Como citar este artigo: SARAIVA, Daniel. A Tropa: a ditadura através do teatro. História da Ditadura, 4 out. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/a-tropa-a-ditadura-atraves-do-teatro. Acesso em: [inserir data].

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