Anistia para que(m)? Expectativas e frustrações às vésperas dos sessenta anos do golpe de 1964
No dia 8 de janeiro de 2024, o Governo Federal articulou, conjuntamente com representantes dos demais poderes, uma série de atos públicos alusivos ao primeiro aniversário dos atos golpistas orquestrados por seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro. A tentativa de golpe, ocorrida há pouco mais de um ano, pode parecer, para algumas pessoas, uma mera bufonaria praticada por alucinados da extrema direita descontentes com o resultado das eleições de 2022, nas quais Luís Inácio Lula da Silva foi eleito para a Presidência da República. Para muitos, parafraseando Marx, o 8 de janeiro brasileiro pode ser entendido como uma espécie de farsa que emulava, em certa medida, a tragédia ocorrida em janeiro de 2021 nos Estados Unidos, quando apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio.
Não me parece suficiente analisar o que ocorreu no Brasil em janeiro passado à luz do que houve nos Estados Unidos. O 8 de janeiro, em minha opinião, tem muito mais a ver, em forma e conteúdo, com circunstâncias endógenas do sistema político brasileiro. Mais do que uma mera cópia grotesca daquilo que fizeram os apoiadores de Trump descontentes com a eleição de Joe Biden, a invasão dos Três Poderes em Brasília demonstrou como velhos elementos da política brasileira seguem presentes no imaginário da direita e das extremas direitas no país. Afinal, o apelo às Forças Armadas como “salvaguarda da nação”, podendo ser convocadas a qualquer momento, e a visão de que um governo “esquerdista” representaria um grande perigo a ser combatido não são novidades em nossa história política.
As investigações que foram e continuam sendo realizadas desde então evidenciam que, longe de terem sido organizados por alucinados, os atos golpistas foram estruturados e amparados por pessoas e setores que se fortaleceram nos últimos anos, mas que, em realidade, sempre estiveram no horizonte da Nova República. Não deixa de ser curioso, neste sentido, que uma velha conhecida – a demanda por uma anistia –, que marcou o cenário da transição à democracia brasileira durante a década de 1970, venha sendo constantemente evocada, ganhado novos contornos e circulado com grande frequência desde o início do novo mandato do presidente Lula.
É fato que a atual disputa em torno da anistia possui diferenças abissais com a luta pela anistia organizada no contexto da ditadura. Tratava-se, naquela época, de uma demanda encabeçada inicialmente por familiares de presos políticos e vítimas da ditadura, mas que, aos poucos, conseguiu apoio de diversos outros setores da população. Após muita pressão, o regime autoritário finalmente encampou a luta pela anistia e editou, de forma torta e contrariando as reivindicações do movimento articulado pelos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA), a Lei nº 6.683/1979. Meu foco, no entanto, não é discutir a Lei da Anistia de 1979 em si, mas relembrar algo que reverbera desde o fim da ditadura e produz efeitos no cenário político brasileiro.
Faço menção às disputas em torno daquilo que se quer ou que se deve lembrar ou esquecer. Assim como ocorreu no contexto da transição à democracia, a palavra “anistia” tem sido novamente instrumentalizada para delimitar, no presente, a memória que se quer fixar a respeito do que aconteceu no ano passado. Se para setores progressistas os gritos de “sem anistia!” significam “memória”, para bolsonaristas e seus apoiadores, a mesma palavra reitera aquilo que a ditadura engendrou nas entrelinhas da Lei nº 6.683: o esquecimento.
O esquecimento induzido pela anistia de 1979 tem relação com os acontecimentos recentes. Não se trata de uma relação causal perfeita, como se fosse possível afirmar categoricamente que algo do passado determina o nosso presente, mas são formas não lineares, marcadas por peculiaridades, contradições, caminhos e descaminhos. A reivindicação de uma anistia aos golpistas do 8 de janeiro e a dificuldade que algumas pessoas têm de chamar os criminosos desta forma – como fazer referência a quem incita um golpe de Estado? – trazem à tona uma constante da história política republicana brasileira: a ideia de que alguns atos não só podem como devem ser esquecidos, num apelo hipócrita à pacificação nacional.
Enquanto escrevo esta coluna, uma enquete online do Senado apura o apoio popular à proposta de anistia redigida pelo atual senador Hamilton Mourão. Aproximadamente 52% dos participantes da enquete concordam com a proposta de que as pessoas acusadas e condenadas pela invasão aos Três Poderes sejam anistiadas. Em outros momentos, o apoio estava vencendo por uma ampla maioria. A militância virtual de setores progressistas, ao que parece, tem conseguido diminuir esta diferença. Como diminuir esta diferença, contudo, para além das enquetes?
A ideia de que existem crimes que podem ser tolerados e esquecidos está tão arraigada em nosso imaginário social que é difícil convencer algumas pessoas de que alguns esquecimentos não podem ser tolerados. Afinal, como fazer com que o coro que grita “sem anistia!” seja ouvido para além de determinados círculos? Como demonstrar que o esquecimento dos crimes cometidos no passado retroalimenta uma série de problemas atuais? É difícil, para mim, pensar em respostas para estas perguntas sem lembrar que estamos cada vez mais perto de completar sessenta anos do golpe de 1964. A forma como tal efeméride será rememorada em abril pelo Governo Federal e seus integrantes tem estreita relação com a forma como lidaremos, enquanto coletividade, com a memória de outros eventos que nos atravessaram nos últimos anos.
Desconheço a agenda alusiva ao tema que está sendo organizada neste momento pelo Governo Federal e pelo Ministério dos Direitos Humanos. Ano passado, em minha coluna que abordava avanços e desafios do governo Lula no que se refere às políticas de memória, fui otimista e, ao mesmo tempo, realista. Muitos passos significativos foram dados em direção ao resgate da memória e à reparação das vítimas da ditadura nos primeiros cem dias de governo. Os acertos dos primeiros meses, contudo, precisavam ser aprofundados, visto que o (des)governo anterior fez terra arrasada no campo dessas medidas. Era preciso, contudo, deixar de lado o voluntarismo, ainda que bem-intencionado, de algumas ações da atual gestão.
Apesar da recomposição da Comissão da Anistia, cujos integrantes seguem fazendo o possível, e, às vezes, até mesmo o impossível para cumprirem com seus objetivos, faltam recursos públicos para indenizar vítimas da ditadura. Ainda que tenha sinalizado um respeito que o antecessor nunca teve com os familiares de mortos e desaparecidos, o presidente Lula nunca os recebeu. A despeito da promessa, continuamos aguardando a reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), que foi extinta no apagar das luzes do governo anterior. Circulam notícias afirmando que setores das Forças Armadas tiveram que ser convencidos a dar aval para que tal instância seja recriada.
Um ano de gestão. Um ano do 8 de janeiro. Oito anos do golpe de 2016. Sessenta anos do golpe de 1964. São fatos que nos levam a uma espécie de encruzilhada política. Neste momento, não basta lembrar que a ditadura foi uma ditadura. Descolar da rememoração do golpe de 1964 a memória de outros golpes mais recentes é um erro cujo preço pagaremos em curto, médio e longo prazos. Se nós queremos, de fato, construir as bases da não repetição e do “Nunca Mais”, não adianta gritar “sem anistia!”, “democracia sempre!” ou “ditadura nunca mais!”, mas, em nome da governabilidade, deixar algumas tarefas para depois. Enfraquecer as políticas de memória na atual conjuntura é fortalecer o apelo ao esquecimento feito pelos golpistas de ontem e de hoje. Não foi para isso que eu fiz o L.
Como citar este artigo:
GALLO, Carlos Artur. Anistia para que(m)? Expectativas e frustrações às vésperas dos sessenta anos do golpe de 1964. História da Ditadura, 26 fev. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/anistia-para-que-m-expectativas-e-frustracoes-as-vesperas-dos-sessenta-anos-do-golpe-de-1964. Acesso em: [inserir data].
Comments