Breve cartografia do exílio brasileiro na Itália
Atualizado: 31 de jul.
I.
Na historiografia brasileira, entre os estudos já existentes sobre a relação entre exílio e ditadura,[i] ainda não há um trabalho especificamente dedicado aos deslocamentos entre Brasil e Itália nos anos 1960 e 1970. Em geral, priorizaram-se as comunidades do exílio em outros países numericamente mais relevantes em termos de população de exilados, tais como Chile e França, e as respectivas "capitais do exílio brasileiro", Santiago e Paris; ou tratou-se da recepção da Itália no contexto mais amplo da solidariedade internacional.
Os fluxos migratórios entre Brasil e Itália são muito lembrados quando se fala da grande imigração iniciada após a Unificação Italiana (1861) e intensificada nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, tendo o território brasileiro como um dos principais destinos mundiais. O caminho inverso, isto é, o êxodo de brasileiros, desde o final do século XX, em busca do reconhecimento da cidadania por direito de sangue na atual República Italiana, também é notório.[ii] Nesse quadro, o desterro ocorrido sob o emblema político do exílio, cronologicamente intermediário, é menos referido.
Inversamente, o tema do exílio brasileiro não é ignorado na península itálica, mas se dilui no tema mais amplo do exílio latino-americano e, particularmente, sul-americano. A massa de chilenos que deixou seu país após o golpe que instaurou a ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1990) deixou sua marca em um momento de renovação da esquerda tradicional italiana, naquela época interessada pela alternativa do socialismo democrático de Salvador Allende.[iii] O documentário Santiago, Italia, de Nanni Moretti (2018), registrou muito bem essa história dramática. Como se sabe, alguns brasileiros, naquela altura já exilados no Chile, também fizeram parte dessa debandada, junto aos chilenos, começando um segundo ou até mesmo um terceiro exílio.
O tema da última ditadura argentina (1976-1983) também tem relativa repercussão na Itália. A origem italiana de muitos argentinos – decorrente da grande imigração italiana para a região do Rio da Prata a partir das últimas décadas do século XIX – não necessariamente favoreceu sua recepção no exílio nos anos 1970, em comparação com os chilenos ou outros sul-americanos. Em 1976, a Embaixada Italiana em Buenos Aires fechou suas portas, diferente do que havia ocorrido em Santiago, três anos antes. No território italiano, não houve uma devida política de acolhimento para os exilados ítalo-argentinos.[iv] Em contrapartida, o inquietante tema dos desaparecidos, pelo qual a ditadura argentina ficou mais conhecida mundialmente, ganhou repercussão na imprensa e nas organizações políticas italianas da época. Hoje, a Itália conta com suas próprias organizações de direitos humanos referentes à ditadura argentina, como a 24 marzo Onlus.
Diante dessas conexões, o tema do exílio brasileiro na Itália corre o risco de ser visto como um assunto "menor" ou menos importante. Meu argumento é que a contribuição das relações ítalo-brasileiras no período em questão se define não pelo número de exilados, mas pela qualidade, ou seja, o tipo de atividade exercida naquele período. Nessa interseção, destacaram-se contribuições heterogêneas, tanto culturais quanto políticas, incluindo obras artísticas e ações testemunhais, na encruzilhada entre as linguagens da revolução e dos direitos humanos, e incluindo também o protagonismo católico. É preciso lembrar que o exílio brasileiro foi o primeiro por ordem de tempo e o mais prolongado do Cone Sul,[v] o que o torna um caso privilegiado para observar a transformação das formas de mobilização no período.
Para tanto, neste texto, proponho rascunhar um pequeno mapa do exílio brasileiro na Itália, mencionando alguns personagens e eventos que se destacaram no período compreendido principalmente entre o AI-5 (1968) e o retorno dos exilados após a Lei de Anistia (1979). Como certa vez sugeriu Jorge Luis Borges, um mapa do tamanho do mundo é inútil como mapa.[vi] Assim, espero que este exercício cartográfico, embora parcial e de impossível aprofundamento, possa servir de guia para futuros estudos acadêmicos, reportagens jornalísticas ou trabalhos criativos e artísticos sobre o tema. O esforço também é uma homenagem à memória daqueles que passaram pela península itálica nos anos 1960 e 1970 e que, de distintas maneiras, lutaram pelo fim da ditadura no Brasil.
O ponto de partida desta reflexão foi uma pesquisa de pós-doutorado feita durante todo o ano de 2023 no arquivo histórico da Fundação Basso, em Roma,[vii] com foco na experiência de fóruns de denúncia como o Tribunal Russell II, cujo resultado parcial já contou com uma publicação prévia no História da Ditadura. Porém, o interesse deste artigo extrapolou esse caso específico, buscando evidenciar as tramas mais gerais do exílio brasileiro na Itália. Como autor, o fato de ser cidadão dos dois países em questão e de ter residido em ambos certamente contribuiu para o interesse no tema. Como pesquisador, espero levar o estudo adiante a partir da centelha aqui apresentada. Antes de avançar, quero destacar para o leitor a possibilidade de aceder a alguns materiais da pesquisa original, documental e audiovisual, por meio dos links inseridos ao longo do texto.
II.
O cantor Chico Buarque e a atriz Marieta Severo viajaram à Europa em janeiro de 1969, pouco depois do AI-5, para participar do festival de indústria fonográfica Midem, em Cannes, na França. Alguns meses antes, a peça Roda Viva, na qual ambos trabalhavam, já havia sido atacada mais de uma vez com agressões físicas ou ameaças aos artistas pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC). A permanência no velho continente foi uma decisão para manter a segurança da família, tendo em vista a repressão no Brasil.[viii] Outros músicos, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, que haviam sido presos, a esta altura já se encontravam no exílio em Londres. Chico e Marieta, porém, se instalaram em Roma por 14 meses e tiveram a filha Silvia em solo italiano.
Músicas de Chico, como A Banda, já tinham alguma repercussão na Itália na voz da cantora Mina (1967), o que motivou a inclusão do país mediterrâneo no roteiro europeu. Para a permanência na Itália, contou o fato de que cantor já residira em Roma por conta das atividades de seu pai, Sérgio Buarque de Hollanda, que dera aulas na Università di Roma La Sapienza.
Em sua segunda temporada italiana, já adulto, e em exílio, Chico chegou a gravar dois discos com versões em italiano de músicas originalmente cantadas em português: Chico Buarque de Hollanda na Itália (1969) e Per un Pugno de Samba (1970), este último orquestrado por Ennio Morricone. Além disso, se apresentou algumas vezes na televisão italiana. Alguns anos depois, suas canções, como Construção, seriam gravadas também pela cantora Ornella Vanoni (1975). Esta, por sua vez, trabalharia também com Toquinho e Vinícius de Moraes.
Durante a visita do amigo Toquinho, Chico compôs Samba de Orly em solo europeu. Não à toa, os primeiros versos da canção dizem: “vai, meu irmão, pega essa avião, você tem razão de correr assim desse frio”, indicando a insatisfação com o exílio e abrindo caminho para o retorno ao Rio de Janeiro. Embora os compositores tivessem partido da Europa por Fiumicino – o aeroporto de Roma –, o nome Orly foi colocado no título da canção em referência ao aeroporto parisiense, considerada a porta de entrada dos exilados que se dirigiam à Europa. Na Itália, Chico não obteve sucesso comercial. Na reportagem acima citada, feita no período, ele chegou a afirmar que “os italianos não gostam muito de samba” – o que poderíamos relativizar, dadas as numerosas parcerias estabelecidas.
Em 2024, ano de escrita deste texto, Chico publicará pela Companhia das Letras o livro Bambino a Roma, uma autoficção sobre sua infância romana, vivida a partir de 1953. Marieta, por sua vez, retomou contato com seu exílio italiano no filme Duetto (2022), ambientado no Brasil e na Itália. Não se trata de uma autobiografia, mas de uma ficção sobre a relação entre uma avó e uma neta. Para fazer o filme, a atriz reaprendeu a língua italiana, que praticara pela primeira vez no exílio. Embora não se trate de uma obra política, a história se passa no ano de 1965, um ano depois do início da ditadura no Brasil.
Em Roma, com a colaboração de Chico e Marieta, também se exilaram a cantora Elza Soares e o jogador de futebol Garrincha. Eles haviam tido sua casa metralhada por agentes da repressão no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, como relembrado pela própria Elza em uma entrevista no Programa do Porchat, em 2018, e viram na Itália a possibilidade de continuar suas carreiras durante a turnê de Elza na Europa. Eles se estabeleceram em uma casa no litoral romano, em Torvaianica. No mesmo período, Elza também se apresentou como cantora, inclusive no Teatro Sistina, cuja gravação posteriormente se tornou o álbum I Mitici Lunedì del Sistina 1969-1979, compartilhado com Jorge Ben. Diferente de Chico, ela relata na referida entrevista, já nos últimos anos de sua vida: “Fiquei bem na Itália. Trabalhei bem na Itália. Viajei muito. Tive bons empresários.” O Mané, por sua vez, chegou a treinar com o Lazio. Porém, sem sucesso no futebol, se contentou com trabalhar em um escritório brasileiro para a exportação de café.[ix]
A passagem desses dois casais pela Itália foi meteórica e terminou antes mesmo da anistia política, já em 1971, quando todos retornaram ao Brasil. Eles não constituíam os arquetípicos opositores da ditadura pertencentes às organizações clandestinas de esquerda, e saíram do país de maneira mais ou menos voluntária. De todo modo, suas vidas foram afetadas, e sua condição não constituiu um exílio menor. A influência da MPB na musica leggera italiana é uma das marcas deixadas por essa interseção, assim como o crescente teor político das próprias obras dos artistas aqui referenciados, após o retorno.
III.
A República Italiana não oferecia aos exilados o estatuto de refugiado, contrariamente a outras nações vizinhas, alinhadas à política do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e que ofereciam melhores condições de asilo, como, por exemplo, a Suécia. Destaque-se que apenas o refúgio figura na legislação internacional, sendo o exílio um termo que remete à autorrepresentação dos próprios atores sociais, e que foi particularmente incorporado nas narrativas das ditaduras militares latino-americanas.[x]
Ainda assim, a princípio, a Itália funcionou como lugar de retaguarda para os brasileiros a partir de iniciativas mais autônomas e espontâneas. Entre as pessoas acolhidas, não estavam somente artistas, intelectuais ou atletas famosos, como aqueles referidos anteriormente, mas também militantes e ativistas menos conhecidos.
Já em 1964, começou a operar a rede Radié Resch, uma organização humanitária situada em Roma, que oferecia apoio logístico aos recém-chegados de países do Terceiro Mundo, entre eles o Brasil. A rede era coordenada pelo jornalista da TV pública Ettore Massina e pelo padre Paul Gauthier, do Movimento das Igrejas dos Pobres. Por sua vez, na livraria do Instituto Ítalo Latino Americano (IILA), ligada à Democracia Cristã, realizavam-se debates sobre a realidade brasileira, servindo como fórum de denúncia e discussão política.[xi]
Também em Roma, outros lugares ofereciam um ponto de apoio aos revolucionários, muitas vezes apenas de passagem na Itália, com a missão de realizar treinamento em Cuba. Era o caso da residência pessoal do cineasta Jirges Ristum, representante da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e colaborador de Glauber Rocha, Pier Paolo Antonioni, Roberto Rosselini e Bernardo Bertolucci.[xii]
A presença dos brasileiros também se destacou fora de Roma. O paulista José Luiz del Roio era um ativista que rompera com o Partido Comunista Brasileiro para se somar à luta armada na Aliança Libertadora Nacional. Passara por Cuba e Peru antes de chegar ao Chile de Allende. Na Itália, país que descreveu posteriormente, em entrevista à socióloga Elina Pessanha, como “extremamente difícil”, pois “nunca deu asilo político para ninguém”, se estabeleceu em Milão, cidade que definiu como “praticamente deserta de brasileiros naquele período, pelo menos de brasileiros da área política”.[xiii] Oriundo de uma família de origem italiana, Del Roio travou contato com líderes operários europeus que o incentivaram a trazer para Milão acervos do PCB relativos ao movimento operário brasileiro, em risco no Brasil no contexto repressivo. O conjunto documental de livros, cartas e imagens foi reunido na Fundação Giacomo Feltrinelli, a partir da qual se criou um arquivo histórico, que incluía a biblioteca do fundador do Partidão, Astrojildo Pereira. Desde 1994, o conjunto se encontra no Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem-Unesp).
IV.
No âmbito católico, o Concílio Vaticano II (1962-1965) e, na esteira dele, a II Conferência Geral do Episcopado Latino Americano (Medellín, 1968), anunciavam uma mudança de tom na posição da Igreja na direção dos direitos humanos e da justiça social.[xiv] Na política italiana, a partir de 1973, o compromisso histórico, proposto por Enrico Berlinguer, constituiu uma tentativa de formar uma coligação entre o Partido Comunista Italiano (PCI) e os Democratas-Cristãos (DC) para estabilizar a Itália. Ambos os acontecimentos favoreceram o interesse público pela América Latina e, em particular, pela denúncia de suas crescentes violações de direitos humanos.
No Brasil, desde o AI-5 (1968), se intensificava o exílio de jovens, então integrantes de movimentos esquerdistas de oposição ao regime militar, muitos dos quais acreditavam na luta armada como forma de resistência.[xv] Esse momento se diferenciava daquele inaugurado logo após 1964, em que o perfil dos exilados era composto por políticos mais experientes, já estabelecidos, como o próprio presidente João Goulart. A nova geração havia sido presa, torturada e expulsa do Brasil, frequentemente em negociações entre organizações clandestinas de esquerda e o governo brasileiro, envolvendo a troca entre diplomatas sequestrados e presos políticos.
Carmela Pezzuti, uma funcionária pública mineira que começou a militar por influência dos filhos na organização clandestina Comandos de Libertação Nacional (COLINA), participou desse grupo. Ela foi banida do Brasil em janeiro de 1971, depois de ser trocada junto a outros 69 presos políticos pela liberdade de Giovanni Enrico Bucher, então embaixador suíço sequestrado em setembro de 1970. O destino inicial de seu banimento foi Santiago, mas ela rumaria para a Itália – com o passaporte italiano – logo depois do início da ditadura chilena. Filha de um médico italiano e descendente de uma família originária de Salerno, Carmela se estabeleceu em Roma, onde teve vários empregos, entre eles o de esteticista. Lá, se envolveu com as denúncias públicas da tortura e com a luta pela anistia. Seus filhos, Angelo e Murilo, seguiram o fluxo do exílio em outros países, como Bélgica e França. Angelo faleceu em 1975, em Paris, em um acidente de motocicleta. Carmela retornou ao Brasil após a anistia, trabalhando em creches comunitárias, e faleceu de Alzheimer em 2009. Foi sua irmã, Angela, quem prestou depoimento à Comissão Nacional da Verdade, alguns anos depois. O livro Companheira Carmela, escrito pelo parceiro de luta Mauricio Paiva com a colaboração ativa da própria biografada, é uma das persistentes memórias de sua luta.[xvi]
Assim, a crise dos banidos, se teve como destino inicial países como Chile, Argélia e México, também encontrou em solo italiano um lugar de recepção póstuma. Na Itália, aqueles que, como Carmela, experimentaram o banimento, contribuíram em duas das três sessões do Tribunal Russell II (1975-1976), um tribunal de opinião sem consequências penais constituído para denunciar as ditaduras brasileira e latino-americanas, com destaque para as ditaduras chilena, uruguaia e boliviana, entre outras.
O evento havia sido idealizado em Santiago do Chile, na interlocução entre exilados brasileiros – reunidos no Comitê de Denúncia contra a Repressão no Brasil (CDRB) – e Lelio Basso, um senador italiano interessado no socialismo democrático. Basso havia lutado contra o fascismo, participado da Constituição italiana e também da versão prévia do Tribunal Russell, realizada afim de denunciar os crimes dos Estados Unidos da América na Guerra do Vietnã. Com o golpe de 1973 no Chile, a segunda edição do TR acabou sendo realizada em solo europeu, contando com apoio de organizações socialistas, católicas e de direitos humanos.
O evento contou com uma série de relatórios sobre a estrutura da repressão, com grande destaque para o Brasil, entendido como modelo de autoritarismo para a região[xvii]. O ato de acusação ficou a cargo de Miguel Arraes, político pernambucano exilado desde 1964 por conta de sua atuação, destacada pelo apoio às Ligas Camponesas e à reforma agrária. O material relativo ao TRII foi parcialmente publicado no Brasil em 2014, como parte do projeto Marcas da Memória.[xviii]
Em Roma, no auditório do Consiglio Nazionale delle Ricerche, a convite da organização, dezenas de brasileiros exilados em outras partes da Europa testemunharam: o jornalista Fernando Gabeira veio da Suécia; a produtora cultural Dulce Maia e o cineasta Wellington Diniz, da Bélgica; Nancy Unger, da França. Eles respondiam a perguntas de jurados, intelectuais, teólogos e juristas, tais como Laurent Schwartz, Vladimir Dedijer, George Casalis, Albert Soboul, François Rigaux, Giulio Girardi, Joe Nordmann, Amalia Fleming, entre outros. Também integravam o evento outros latino-americanos, como Gabriel García Márquez e Júlio Cortázar.
Alguns testemunhantes eram italianos ou brasileiros de origem italiana. Estes, sim, se estabeleceram na Itália naquela época, tais como o líder sindical Rolando Frati, o então engenheiro – e posteriormente cientista político – Tullo Vigevani, sua esposa, Maria do Socorro Vigevani, e a já citada funcionária pública Carmela Pezzuti. Favorecidos pela cidadania concedida ou reivindicada, por nascimento ou descendência, eles se instalaram no país, na tentativa de reconstruir suas próprias vidas.
Tullo Vigevani era integrante do Partido Operário Revolucionário Trotskista (POR-T), uma organização que não praticava a luta armada, mas que, à esquerda do Partido Comunista Brasileiro, se envolvia em mobilizações das ligas camponesas. Após o golpe de Estado no Brasil em 1964, o POR-T enviou seus membros para trabalhar nos campos e na indústria, sofrendo uma forte repressão. Em seu testemunho, Tullo descreveu as causas de seu encarceramento através de sua trajetória familiar. Cidadão italiano, seus pais emigraram para o Brasil em 1951, quando ele tinha 8 anos, depois de passar pela Suíça. Os avós maternos já haviam chegado alguns anos antes, escapando do antissemitismo fascista. Tullo entrou na Escola Politécnica de São Paulo em 1961, quando se somou ao movimento estudantil. Diferente de seus colegas banidos, ele saiu do Brasil via salvo conduto mediado pelo Consulado Italiano de São Paulo, junto a sua família. Em Roma, estudou Ciências Políticas e trabalhou no Istituto per le relazioni tra Italia e i Paesi dell’Africa, America Latina e Medio Oriente (IPALMO). Depois de retornar ao Brasil, se tornou professor da UNESP-Marília. Atualmente, a Fundação Basso alberga o Fundo Tullo Vigevani, que inclui toda a documentação pessoal relativa à atividade do titular entre 1965 e 2022 no Brasil e na Itália.
Denise Crispim, companheira de Eduardo Leite, o Bacuri, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e da Aliança Libertadora Nacional (ALN), também teve um testemunho lido na primeira sessão do TRII pelo relator, o médico e antropólogo Ettore Biocca. Ela preferiu não o proferir oralmente, mas esteve presente na sessão. Com Leonardo Ditta, um italiano também ativista, criou sua filha Eduarda em solo italiano. Em 2015, Eduarda foi declarada anistiada política pelo governo brasileiro. Na ocasião, Paulo Abrão, presidente da Comissão da Anistia, a convocou a testemunhar, chamando a atenção para o fato de que ela havia sido educada em outra língua e que não precisaria se preocupar com o português correto. Eduarda, por sua vez, descreve – em português fluente, e com um leve sotaque estrangeiro – sua vinda ao Brasil como um renascimento, já que sempre teve problemas com documentos no Brasil, Itália ou Holanda, para onde posteriormente se transferiu.
Entre os organizadores do Tribunal, estava também a ex-freira italiana Linda Bimbi, que trabalhara com educação popular no Brasil antes de retornar à Itália, seguindo a linha de Paulo Freire. Assim como Tullo Vigevani, ela viveu o paradoxal exílio na própria terra de origem durante a ditadura brasileira. Dedicou-se à Liga Internacional pelo Direito e Liberdade dos Povos, com Lelio Basso, e ao Tribunal Permanente dos Povos, com o médico e também ativista Gianni Tognoni. Bimbi bambém era responsável pela escola de jornalismo da Fundação Basso, fundada em 1973 a partir da fusão da biblioteca pessoal de Basso e do Istituto per lo studio della società contemporânea (ISOCCO). Faleceu em 2016, aos 91 anos.
V.
Durante o TRII, ainda não se falava em anistia. A ênfase era na descrição das torturas e na denúncia das violações, na encruzilhada entre a já estabelecida linguagem revolucionária e a nascente e crescente linguagem dos direitos humanos. Tratou-se, porém, de uma antessala importante para as mobilizações posteriores.
O nascimento informal do Comitê Italiano pela Anistia no Brasil se deu justamente a partir de uma coletiva de imprensa realizada em Roma, em 1978, na sede da Fundação Basso, reunindo membros da esquerda comunista e socialista, da democracia cristã e de organizações internacionais de direitos humanos. O evento contou com a participação de Eny Raimundo Moreira, advogada e presidente do comitê do Rio de Janeiro.
Vale destacar que, no mesmo ano, Lelio Basso viajou ao Brasil, em comitiva acompanhada pelo deputado democrata-cristão Carlo Fracanzani. Em São Paulo, ele participou do I Congresso Nacional organizado pelo Movimento pela Anistia, sediado na Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e no Instituto Sedes Sapientiae. No Brasil, Basso conheceu personalidades importantes, como dom Paulo Evaristo Arns, o crítico de arte Mario Pedrosa e o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, Luiz Inácio Lula da Silva.[xix]
Em junho de 1979, foi realizada a Conferência Internacional pela Anistia de Roma, no Palazzo Montecitoro, na Livraria Paesi Nuovi e no edifício da Fundação Basso, como consequência natural do encontro paulista. Ocorrida já após a morte de Lelio Basso, contou com o protagonismo de sua companheira Lisli Basso, junto a políticos italianos locais, como a deputada da Esquerda Independente Giancarla Codrignani, entre outros.
Entre os brasileiros, estavam importantes representantes da anistia, tais como a ativista Helena Greco, o advogado Luís Eduardo Greenhalgh e a atriz Ruth Escobar; além de militantes históricos, como Apolônio de Carvalho, Diógenes Arruda Câmara, Gregório Bezerra, Francisco Julião, Marcio Moreira Alves etc. Eles não estavam exilados na Itália, mas viajaram ao país para participar do evento. Entre os vários exilados também presentes, destaca-se Carmela Pezzuti e Tullo Vigevani, que haviam participado do Tribunal Russell II e permanecido no território italiano durante todos aqueles anos.
No encontro romano, reforçou-se a ação conjunta dos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs) sediados na Europa. Poucos dias antes, o presidente João Figueiredo havia enviado o projeto de lei prevendo uma anistia parcial e restrita. Assim, o evento se destacava por criticar essa concepção no momento de sua própria gênese. Denunciava também a opressão de mulheres e minorias étnicas e clamava pela liberdade de expressão, evidenciando a nova linguagem política que se estabelecia na redemocratização.[xx]
Destacaram-se testemunhos como o de Anita Zarattini, mãe do engenheiro de origem italiana Ricardo Zarattini Filho, militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, então preso em São Paulo. No mesmo ano, se daria na Itália uma reunião do Tribunal Permanente dos Povos em Bolonha, bem como variadas atividades dispersas no território italiano, as quais deveriam ser mapeadas futuramente em alguma pesquisa.[xxi]
VI.
O cenário do exílio brasileiro na Itália foi marcado pela diversidade e heterogeneidade, em um país desprovido de uma política estatal de asilo. Nesse contexto, diferentes vertentes da esquerda, da produção cultural e do ativismo político feito no marco dos direitos humanos se reuniram em encontros e fóruns de denúncia pública autônomos, confluindo na luta pela anistia e pela redemocratização, já ao final da década.
Em um cenário de incipiência da própria política pública para refugiados, em que a noção de exílio sequer figurava – como ainda hoje – na legislação internacional, a origem italiana de muitos exilados – e a possibilidade de permanência no território por conta da cidadania jus sanguinis – pode ser apontada como um fator específico desse contexto, em diferenciação a outros destinos europeus do exílio brasileiro. Vê-se que aqueles exilados que permaneceram mais prolongadamente na Itália ou possuíam passaporte italiano ou o reivindicavam. Daí, podemos pensar no princípio jus sanguinis não somente como um direito racista e excludente – como muitas vezes é visto na atual esquerda italiana –, mas também com um potencial de inclusão, uma forma de reparação e de continuidade da ação política para descendentes de italianos, um povo historicamente diaspórico.
Também podemos pensar na semelhança cultural – linguística e religiosa, dois aspectos nada triviais – entre Brasil e Itália como um fator que contribuiu para definir esse exílio em diferenciação a outros destinos, a exemplo das composições musicais aqui mencionadas e do fluxo de personagens entre um e outro país em importantes eventos de denúncia pública, em que um mínimo compartilhamento de linguagem e valores foram cruciais.
Com a Anistia de 1979, a maioria dos exilados retornou ao Brasil. Na Itália, o assassinato de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas em 1978 aprofundou a crise política e social no país. Eram os anni di piombo, caracterizados pela violência política no próprio território italiano, mesmo em democracia.
As relações entre Brasil e Itália não acabaram por aí, e têm continuidade inclusive no presente século. Mais recentemente, no alvorecer do século XXI, a justiça italiana conseguiu iniciar o julgamento de repressores envolvidos na Operação Condor que vitimaram cidadãos ítalo-latino-americanos.[xxii] O sequestro e o assassinato do ítalo-argentino Lorenzo Viñas Gigli foi um dos casos julgados. O acusado era um militar brasileiro. Tratava-se de Atila Rohrsetzer que, em 1980, era chefe da Divisão Central de Informações (DCI), parte da polícia política do Rio Grande do Sul. No âmbito do direito internacional, a Lei de Anistia brasileira – que impede o julgamento dos repressores desde 1979 – não ofereceria nenhum empecilho para o andamento do processo. Essa seria a primeira condenação de um brasileiro por crimes cometidos durante o regime militar. Porém, isso não ocorreu, pois Rohrsetzer morreu pouco antes de ser condenado, em agosto de 2021. Os demais processos continuam em curso, e dezenas de algozes de outras nacionalidades já foram indiciados.
Assim, esta cartografia permanece em aberto, atenta aos fluxos entre América Latina e Europa já no marco das incessantes lutas por memória, verdade, justiça e reparação.
Notas:
[i] Ver, por exemplo, os trabalhos de Rollemberg, 1999; Chirio, 2006; Green, 2010; Quadrat, 2011; Napolitano, 2014; Badan Ribeiro, 2014; Cruz, 2016; Gomes, 2021, entre outros.
[ii]Alvim, 2000; Zanini, 2014; Beneduzi, 2019 etc.
[iii] Stabili, 1991; Nocera e Rolle, 2010; Mulas, 2023, etc.
[iv] Novaro, 2005, Calderoni. 2022.
[v] Monina, 2021.
[vi] Borges, 1960.
[vii] Magaldi, 2023a.
[viii] Pezzonia, 2019.
[ix] Leite Lopes & Maresca, 1992.
[x] Azevedo e Sanjurjo, 2013.
[xi] Badan Ribeiro, 2014.
[xii] Isola, 2009.
[xiii] Pessanha, 1999.
[xiv] Gomes, 2014.
[xv] Rollemberg, 1999.
[xvi] Paiva, 1996; Magaldi, 2023.
[xvii] Monina, 2021.
[xviii] Tosi e Ferreira, 2014.
[xix] Monina, 2021.
[xx] Pedretti, 2024.
[xxi] Mulas, 2021.
[xvii] Lessa, 2023.
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Como citar este artigo:
MAGALDI, Felipe. Breve cartografia do exílio brasileiro na Itália. História da Ditadura, 30 jul. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/breve-cartografia-do-exilio-brasileiro-na-italia. Acesso em: [inserir data].
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