Como a ditadura produzia sua autoimagem através de cinejornais?
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  • Foto do escritorIsadora Dutra de Freitas

Como a ditadura produzia sua autoimagem através de cinejornais?

Imaginem entrar em uma sala de cinema na década de 1970 para assistir a um dos vários clássicos nacionais e internacionais da sétima arte. Porém, apesar da ansiedade para desfrutar o longa-metragem, antes era necessário assistir a dez minutos de notícias oficiais sobre o governo – nada mais do que propagandas que tentavam se afastar da imagem da repressão e exaltar os feitos da ditadura. Durante as décadas de 1960 e 1970, o Estado ditatorial elaborou produções de cunho propagandístico em busca de legitimação. Nessas representações oficiais, encontramos referências à história nacional, sobretudo às narrativas coloniais, e uma exaltação do papel das Forças Armadas. Por meio da atualização de ideias como a cordialidade dos brasileiros e a democracia racial, a ditadura pautava seu projeto autoritário na Doutrina de Segurança Nacional e no binômio Segurança e Desenvolvimento. Assim, podemos pensar como a ditadura civil-militar brasileira utilizou elementos históricos como temas recorrentes na produção de sua autoimagem, principalmente através da propaganda. É justamente sobre essas “versões oficiais” que iremos falar.


No caso brasileiro, marcado por sucessivos golpes militares, o passado foi repensado repetidas vezes conforme a conjuntura política. Nesse sentido, é possível questionar: como a História pátria foi – e continua sendo – utilizada como ferramenta de legitimação de discursos políticos? Diferentemente do caso de outros regimes ditatoriais, como o Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas, a ditadura iniciada em 1964 não investiu massivamente na produção de propagandas personalistas. Entretanto, isso não significa que os militares tenham descuidado de sua imagem enquanto ocupavam o poder. O historiador Carlos Fico, em sua obra Reinventando o otimismo (1997), apresenta como a promessa do Brasil como um país do futuro foi construída inicialmente ainda na época colonial, sendo atualizada ao longo de diferentes conjunturas, inclusive no período ditatorial. A partir da análise da propaganda elaborada pela Aerp (Assessoria Especial de Relações Públicas) e pela ARP (Assessoria de Relações Públicas), Fico afirma que a ditadura buscou elaborar um discurso otimista por meio de imagens que fortalecessem suas diretrizes cívico-pedagógicas.


A promessa de um “venturoso porvir”, como afirma o historiador, reforçava o imaginário de séculos e buscava promover a coesão nacional, fortalecendo a base de apoio ao regime: “os objetivos de toda esta mobilização eram 'fortalecer a coesão nacional e infundir esperança no povo brasileiro. A esperança e a confiança nos destinos da pátria são ingredientes fundamentais para o desenvolvimento nacional'. Em uma palavra: otimismo” (FICO, 1997, p. 143). Convivendo com forte repressão, vigilância e censura, a imagem oficial da ditadura apresentava à população uma nação idealizada pelo regime. Por isso, utilizou de todos os meios propagandísticos possíveis: rádio, televisão e cinema difundiam os ideais da nação, silenciando os horrores dos porões.


As imagens do otimismo


Além da Aerp/ARP , a Agência Nacional foi central para a produção de otimismo. Criada nos anos 1930, a instituição existiu até 1979, atuando como o principal órgão de comunicação do Poder Executivo, produzindo e distribuindo o que deveria aparecer sobre o governo na imprensa. Além de um imenso acervo fotográfico e radiofônico, dentre eles a produção da “Voz do Brasil”, os cinejornais também compõem os arquivos da Agência – disponível no Arquivo Nacional – e serviram como propaganda dissimulada em notícia (SILVEIRA, 2015). Em um governo que prezava pela modernização autoritária e conservadora, o cinejornalismo o acompanhou como expressão desse projeto.


Com mais de 300 edições publicadas entre 1964-1979, os cine-noticiários ocuparam a programação que precedia a exibição dos filmes nas salas de cinema de todo o país. Com duração média de dez minutos, apresentavam ao público as principais ações oficiais daquela semana, além de variedades como arte, cultura e esportes. Apesar do leque temático das reportagens, o plano de fundo era sempre o mesmo: a exaltação do governo e das elites políticas.


Ao longo dos quinze anos de produção de cinejornais pela ditadura, houve diferenças na forma de representação conforme o presidente em exercício. O primeiro deles foi o ditador presidente Humberto de Alencar Castelo Branco, que assumiu a Presidência após o golpe de 1964. Avesso às formas de propaganda personalista, Castelo Branco pouco investiu na mídia, raramente aparecendo nas telonas. Nessa época, a ênfase recaía nas Forças Armadas e na sua aproximação com a população civil. No primeiro aniversário do golpe, foram noticiadas comemorações cívico-militares; no frame a seguir, vemos um menino fardado desfilando junto a um soldado, numa narrativa que induz o olhar em direção ao futuro.


Desfile do Primeiro Aniversário do Golpe de 1964.  Menino desfila com farda ao lado de soldado
Desfile do Primeiro Aniversário do Golpe de 1964. Menino desfila com farda ao lado de soldado. Fonte: Cinejornal Informativo, n. 2, 1965.

O trecho ilustra uma das estratégias de produção da imagem otimista produzida pela Agência Nacional que buscava, além da propaganda acerca do projeto político, introduzir uma pedagogia cívica.


Seu sucessor, Artur da Costa e Silva (1967-1970), em contrapartida, investiu amplamente na elaboração dessas produções. No período de maior acirramento da repressão, representado pela publicação do Ato Institucional n. 5, a ditadura buscava aparentar uma suposta “normalidade democrática” amplamente aceita nas representações da modernização, através de encontros de Costa e Silva com estudantes e populações indígenas. Conhecido pelo início do chamado “milagre econômico”, a representação do período explorou as narrativas ligadas à promessa de desenvolvimento econômico. O recorte abaixo, por exemplo, retrata o encontro do ditador-presidente com indígenas Carajás. Através da narração, é reforçada uma perspectiva colonizadora, referenciando o processo de catequização do Brasil colônia e a modernização autoritária empreendida no período da ditadura.


Costa e Silva, em visita à aldeia do Bananal, entrega arma a um indígena, que segura um arco e flecha.
Costa e Silva, em visita à aldeia do Bananal, entrega arma a um indígena, que segura um arco e flecha. Fonte: Cinejornal Informativo, n. 145, 1969.

Avançando à década de 1970, adentramos no auge da repressão. Nessa época, a representação positiva ganhou ainda mais fôlego por meio do futebol e de elementos da cultura nacional, ainda que em menor quantidade. Emílio Médici (1970-1974) investiu pouco em relação ao número de cinejornais exibidos. Porém, trouxe às salas de cinema o primeiro cinejornal em cores, corroborando para o discurso modernizador autoritário e passando a utilizar cada vez mais os símbolos e cores nacionais junto às suas representações. Na primeira edição do cinejornal “Brasil Hoje”, uma das notícias apresentava ao público a inauguração do Parque dos Guararapes, em Pernambuco. Conforme vemos na imagem, a rememoração dos “heróis nacionais” e a menção à ideia de democracia racial aparecem claramente junto à representação oficial.


Inauguração do Parque dos Guararapes, em Pernambuco.
Inauguração do Parque dos Guararapes, em Pernambuco. Fonte: Cinejornal Brasil Hoje, n. 1, 1970.

O período final das atividades da Agência Nacional merece ainda mais atenção. Ernesto Geisel (1974-1979) foi o ditador-presidente que mais investiu na produção dos cinejornais, contabilizando 149 edições. Curiosamente, foi a época de maior desgaste da ditadura, o que justificava a necessidade de investimento na propaganda, buscando solidificar sua base de apoio. Para isso, as imagens mostravam uma maior proximidade da figura presidencial com a população civil, principalmente com os trabalhadores. Todavia, o protagonismo não recaía sobre os trabalhadores, que eram apresentados como meros coadjuvantes dos membros do Poder Executivo. Como podemos ver na edição n. 148 do cinejornal Brasil Hoje, uma série de elementos buscavam colaborar para o discurso otimista: o projeto desenvolvimentista associado às referências a um passado glorioso e às promessas de um futuro promissor, além da exibição de uma partida de futebol entre o time do Flamengo e o time de Volta Redonda. Não à toa, o “Dia do Trabalho” compunha um dos temas recorrentes em todo o período e, como afirma a historiadora Tatyana Maia, “se o 'dia do trabalho' significava 'dia de festa', todos os demais dias do ano eram marcados pela repressão às mobilizações dos trabalhadores em busca de seus direitos” (MAIA, 2017, p. 296).



A propaganda oficial e os usos do passado


Apesar das diferentes formas de representação em cada um dos períodos, há elementos fundamentais que permaneceram comuns a todos eles. Primeiramente, a utilização de símbolos nacionais e das cores da bandeira como símbolo máximo da união e apoio ao regime. Em seguida, a divulgação recorrente de obras públicas faraônicas, como a Rodovia Transamazônica e a Usina Hidroelétrica de Itaipu. Finalmente, a rememoração constante de eventos e personagens históricos da arena política brasileira. Por meio de um discurso que prometia dar continuidade a projetos políticos que visavam um futuro de riquezas, a ditadura civil-militar elaborou um imaginário sobre si como promotora do projeto desenvolvimentista, sem mencionar os horrores da repressão e as desigualdades causadas pelo Estado.


Assim, os usos políticos do passado constituem um elemento contínuo em nossa história. A elaboração de versões que silenciam eventos em detrimento da exaltação de outros colabora com a utilização dessas narrativas como elementos de disputas de poder. Não à toa, dentro da própria constituição da historiografia como campo, convivemos constantemente com transformações que desconstroem a versão “oficial” ou a dita “versão dos vencedores”, e colocam pautas de lutas populares e de grupos invisibilizados sob a luz das pesquisas e de trabalhos de divulgação científica.


Nesse sentido, considero que os usos do passado podem ser entendidos como tentativas de justificar ou legitimar atos públicos e políticos, sobretudo quando visam ataques à democracia e a defesa a regimes autoritários. Para a historiadora Caroline Bauer (2018), o discurso favorável à ditadura não a nega, nem propõe revisionismos, mas busca legitimá-la. Conforme a autora afirma, essas manifestações:


Encontra[m] origem no próprio regime instaurado com o golpe de 1964, que fomentou a desinformação com a divulgação de ‘versões oficiais’ sobre os assassinatos cometidos pela repressão e com práticas como a censura, impedindo a divulgação de determinados índices econômicos e denúncias de corrupção (BAUER, 2018, p.197).

Em situações como essas, rememorações saudosistas sobre a ditadura civil-militar e seu sistema repressivo são recorrentes. Para o historiador Fernando Nicolazzi, nesses casos trata-se de usos políticos, cuja intenção “não reside nos dilemas vivenciados no passado, mas sim nos impasses criados no presente” (NICOLAZZI, 2021). Contudo, ainda que muito atual, cabe ressaltar que a exaltação do passado não é uma novidade da escalada autoritária com que convivemos nas últimas décadas, mas uma prática que podemos identificar na propaganda oficial dos cinejornais e em regimes anteriores à ditadura civil-militar.


 

Referências:

BAUER, Caroline Silveira. Qual o papel da história pública frente ao revisionismo histórico? In: MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviane Trindade (Org.). Que História Pública Queremos? São Paulo: Letra e Voz, 2018.

FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

FREITAS, Isadora Dutra de. Otimismo nas telas: a propaganda oficial da ditadura civil-militar nos cinejornais da Agência Nacional (1964-1979). 2020. 180 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2020.

MAIA, Tatyana de Amaral. As 'comemorações cívicas' do 1º de Maio nos cinejornais da Agência Nacional na ditadura militar (1964-1979). Transversos: Revista de História. Rio de Janeiro, n. 09, abr. 2017. p.280-299

NICOLAZZI, Fernando. O que são “usos políticos do passado”, segundo este historiador. Entrevistadora: Thaís Pio Marques. Café História, 30 Jun. 2021.

SILVEIRA, Mariana Monteiro da. O governo Médici pelas lentes da Agência Nacional (1971-1974). 2015. 146 f. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.


Como citar este artigo: FREITAS, Isadora Dutra de. Como a ditadura produzia sua autoimagem através de cinejornais? História da Ditadura, 3 jul. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/como-a-ditadura-produzia-sua-autoimagem-atraves-de-cinejornais. Acesso em: [inserir data].

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