Imaginar o passado? Autoritarismo e usos políticos das imagens e imaginários
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  • Foto do escritorDavid Netto

Imaginar o passado? Autoritarismo e usos políticos das imagens e imaginários

Atualizado: 13 de abr. de 2022

A relação entre História, imagem e autoritarismos não é nenhuma novidade. Pelo menos desde os usos do rádio e do cinema pelos regimes autoritários e totalitários de meados do século XX, as Ciências Humanas em geral e a História em particular refletem sobre o papel das mídias nas relações humanas. Mas, nosso objetivo aqui é menos discutir historiografia e mais propor reflexões sobre estas relações entre mídias e autoritarismos, com destaque especial para o autoritarismo no Brasil e sua longa trajetória na história nacional.


É fato que autoritarismo e violência também não são novidade nos debates dentro e fora da academia sobre o Brasil. Ademais, deve-se sempre duvidar de quem tenta explicar a história brasileira excluindo estas duas categorias como fundadoras não apenas do Estado nacional, mas também da nossa sociabilidade. Quando adicionamos a esses dois temas os usos políticos das imagens, um leque amplo de análise pode ser vislumbrado, especialmente no que se refere ao diálogo entre imagens e imaginário.


Os autoritarismos fizeram e fazem uso bastante especial desses elementos porque eles são parte de um processo mais amplo de legitimação, que caminha ao lado do uso da violência física enquanto instrumento de governo. Assim, existe uma extensa produção de diversas formas de imagem que exaltam o líder, o partido, o grupo social ou a nação, fortalecendo um imaginário que, via de regra, é construído mais com anacronismos e menos com mentiras como apontou Eric Hobsbawm. Isto significa que existe uma mistura deliberada entre o que o passado oferece como “matéria prima” e o que é inventado e/ou falseado a partir das ideologias políticas do presente. Por exemplo: a ideia de “Brasil Potência”, comum nos anos 1970, deita raízes numa leitura de passado, segundo a qual, o Brasil tem/teria todas condições de ser um país de “Primeiro Mundo”: rico em recursos naturais e habitado por um povo pacífico, amistoso, avesso à violência, bastaria “olhar para nossa história”. Tal perscpectiva, é uma forma bem acabada da mistura passado + ideologia: não nega os processos históricos (colonização, escravidão), mas, invisibiliza e/ou deslegitima não apenas as diversas formas de resistências (como indígenas, africanas, por exemplo), mas também as revoltas, motins e rebeliões de todo tipo, legitimando a continuidade da estrutura de poder vigente, pautada pelo continuísmo e não pela ruptura.


Estas leituras do passado são articuladas às técnicas de propaganda. Tudo é minimante pensado e planejado: cores, slogans e frases, filmes e fotografias passam por um amplo processo de montagem. Não é a toa que a propaganda é parte fundamental, já que são algumas estratégias da publicidade que ampliam o impacto destas imagens. Frases como “O trabalho liberta”, “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos” ou “Deus, pátria e família”, têm o sentido de ser não apenas facilmente memorizadas, mas, também, facilmente replicadas por aqueles que não apenas repetem, mas incorporam em sua estrutura psíquica tais argumentos, em outras palavras, passam a dar sentido à sua vida a partir daquilo que as imagens informam.


Exemplos dessa relação entre política e publicidade podem ser observados na História. Em 1928, os profissionais da propaganda italianos fundaram a União Nacional de Agências e Casas de Publicidade Fascistas (Sindicato Nazionale Fascista Agenzie e Case de Pubblicità), associação reconhecida pelo governo de Benito Mussolini. Na Alemanha, foi criada em 1933 a Gesestz über Wirtschaftswerbung (regulamentação para a publicidade comercial) e, na sequência, o Werberat der Deutschen Wirtschaft (Conselho de Propaganda para a Economia Alemã). Neste último caso, destacamos o papel do publicitário Hans Domizlaff, considerado criador do conceito de identidade da marca. Para Domizlaff, tal identidade é constituída por um conjunto de símbolos que devem disparar um “gatilho” no público à medida que este ouve um jingle ou olha um outdoor, que leva imediatamente à lembrança da marca.


A tese do publicitário baseava-se numa visão conservadora da sociedade alemã. Segundo ele, as massas seriam influenciáveis mais facilmente por imagens e mensagens curtas do que pela argumentação e, portanto, seria fundamental criar símbolos que motivassem as pessoas e que fossem rapidamente replicados, como uma espécie de vírus – daí o conceito de “propaganda que viraliza”. O trabalho de Domizlaff foi uma das inspirações de Joseph Goebbels, ministro da propaganda na Alemanha nazista.


Referência ao nazista Goebbels derruba secretário da Cultura de Bolsonaro.

Envolvidos neste processo, os partidários acreditam viver numa guerra real, contra inimigos que os ameaçam na sua existência. Mas o que sustenta esta guerra contra o real? Aliás, o que faz com que a dimensão do real possa ser invertida pelas imagens e/ou pelo imaginário? Pois este é o segundo e, talvez, mais fundamental aspecto da produção das imagens: manipular vínculos sociais e afetividades políticas. Nesse sentido, os partidários de tais regimes se sentem imbuídos de um grande projeto que, não é exagerado dizer, dão sentido à suas vidas.

É justamente este grande propósito que transforma o sentido da vida. Ela passa a ser entendida como uma luta real do bem contra o mal, daqueles que fazem parte do grupo contra aqueles que não fazem, cujas derrotas são sempre explicadas por alguma força oculta, uma conspiração secreta, liderada por algum inimigo que é, ao mesmo tempo, reconhecido e intangível: a Maçonaria, os Illuminati, os repitilianos, o comunismo, o marxismo cultural, entre outros. Esse envolvimento mistura ego com ideologia e favorece o surgimento de personalidades paranóicas, ou seja, os indíviduos perdem a capacidade de enfrentar os limites impostos pela realidade, envolvidos num looping de negação do real, que é sustentado pela propaganda e, atualmente, pelo fenômeno das fake news. Tais comportamentos são reforçados pelo processo de intensa identificação entre os seguidores e o líder.

Não é de se estranhar, portanto, que os usos feitos pelo fascismo italiano e pelo nazismo alemão sejam os primeiros exemplos que apareçam na História. Aqui, gostaríamos de focar nas análises do fenômeno feitas pela Escola de Frankfurt, com destaque para os textos de Theodor Adorno.

O que os frankfurtianos articularam de maneira singular foi a relação entre marxismo e psicanálise. O objetivo é aprofundar a compreensão de como as massas se comportam frente ao líder e as mensagens produzidas pelo regime político. Como T. Adorno sustenta, a propaganda fascista mobiliza processos irracionais, inconscientes e regressivos (basicamente, a divisão da realidade entre “nós” x “eles”). Em segundo lugar, ao articular suas bases na repetição compulsiva dos argumentos, não precisa, portanto, oferecer uma forma de superação da mentalidade existente. Assim, abriram caminho para a compreensão sobre como as imagens produzidas pelos regimes políticos autoritários procuram utilizar-se dos sentimentos (ódio, raiva, amor, etc.) como combustível para ação política. As imagens informam aos partidários e simpatizantes o que, quem e como devem amar, quais são os símbolos que os unificam e para onde, como e contra quem devem convergir os ódios.

A manipulação de tais imagens dialoga com o passado, mas não com qualquer passado. Trata-se de um passado que, ao mesmo tempo, informa o que deve ser defendido contra toda a sorte de inimigos e que também garante o futuro da “Grande Alemanha”, da “Grande Itália” ou do “Brasil Potência”. Eis o residual ideológico com altas doses de anacronismo.

Portanto, as imagens fazem parte de um complexo jogo ideológico que procura fornecer ao grupo que adere um sentido, um caminho... um destino. Assim, a ideologia aparece como parte importante daquilo que Pierre Ansart chamou de “gestão das paixões políticas”. A ideologia sistematiza estas paixões informando, por exemplo, que o ódio aos judeus pode ser transformado numa ação política salvacionista de uma nação que estaria correndo risco de ser (ou que já havia sido) transformada em cinzas depois de um processo de decadência, como defende Roger Griffin. Informa, ainda, racionalmente, como será feito o processo, o tamanho de cada forno, quantas pessoas poderão ser transportadas por dia, quantos corpos poderão ser incinerados e, inclusive, quais metas devem ser atingidas. Informa também que o sucesso nessa empreitada da morte é o caminho necessário para atingir a felicidade do país, que deve estar a salvo do outro, do estrangeiro, do negro, em suma, de todo aquele que não seja “eu”.

O modelo de ego também é informado por estas imagens. Elas dizem como “eu” devo ser e como devo me comportar para fazer parte do grupo. Da mesma forma, o ego é instruído sobre como são e como se comportam aqueles que não fazem parte do grupo dos eleitos e, assim, podem ser alvos do ódio.

Mas a relação é mais complexa do que parece. As imagens do líder são compartilhadas pelos seguidores como aquele que é, ao mesmo tempo, o que eu sou e aquele que eu não posso ser. O líder faz o que eu faria, diz o que eu diria, e o movimento pode, até mesmo, existir sem ele, como mostram os dados de resistência à vacinação nos EUA. Porém, este mesmo líder enfrenta as adversidades (o “sistema”, os políticos, o capital, os partidos e toda sorte de inimigos) como eu não conseguiria. Portanto, ganha ares de salvador, de escolhido, de mito, que só poderia ser derrotado devido a existência de “forças ocultas” ou conspiratórias.

Benito Mussolini con il figlio Romano sulla spiaggia di Riccione nel 1932. Wikimedia Commons.

As imagens de Adolf Hitler comandando as massas (como em “O triunfo da vontade” de Leni Riefenshtahl) ou de Mussolini demonstrando seu “histórico de atleta” em eventos públicos passam a se misturar com as imagens projetadas da nação, que se torna mais forte à medida que os indesejáveis são exterminados. Contra estes, no plano psíquico, são direcionados os ódios, no plano material, são orientadas as políticas de extermínio ou aqueles que o poder soberano pode “deixar morrer” que não têm direito a ter direitos, como frisou Hannah Arendt.

Portanto, a morte e as imagens da morte, para aqueles que misturaram quem eles são com o que a ideologia informa que devem ser, não causa espanto, não causa vergonha, não causa culpa, como demonstrou o julgamento de Otto Adolf Eichmann. Ela é o resultado natural do processo que, imaginam, levará à glória.

Este será o ponto central desta coluna: pensar como as imagens produzem, ajudam a produzir ou, ainda, contribuem para a continuidade dos vínculos afetivos e políticos que são estabelecidos entre autoritarismo e sociedade. Não se trata apenas de pensar a construção destas imagens, mas, principalmente, qual o sentido da sua circulação.


 

Referências:


ADORNO, Theodor. A psicanálise da adesão ao fascismo. Publicado no blog da editora Boitempo.

ANSART, Pierre. A gestão das paixões políticas. Editora UFPR: Curitiba, 2019.

ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém. Cia das Letras: São Paulo, 1999.

CHOMSKY, Noam. Controle da mídia: os espetaculares feitos da propaganda. Rio de Janeiro: Graphia, 2003.

GRIFFIN, Roger. Fascism. Oxford University Press, 1995.



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