As imagens da Amazônia nos cinejornais da ditadura civil-militar
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  • Foto do escritorIsadora Dutra de Freitas

As imagens da Amazônia nos cinejornais da ditadura civil-militar

Atualizado: 9 de abr.

O imaginário que envolve a região amazônica permeia os mais diversos contextos através de diferentes fontes: relatos de viajantes dos séculos XV e XVI, representações visuais do período colonial, vestígios arqueológicos e, mais recentemente, a ditadura civil-militar. Mas o que esses períodos tão distantes temporalmente têm em comum?


Além das violações contra os povos originários, colaboram com a produção de representações coloniais, sobretudo a respeito dos grupos indígenas. Durante o período da ditadura civil-militar brasileira, fortaleceu-se o imaginário sobre a Amazônia ligado ao exótico, ao atraso e à necessidade de um processo civilizador, que buscava justificar o avanço do Estado na região. Essa representação foi sendo modificada ao longo dos vinte e um anos de regime, variando conforme os projetos políticos em curso. Para isso, a produção e difusão de imagens elaboradas por agências oficiais foram decisivas.


O Estado ditatorial teve como principal objeto de propaganda a promoção da modernidade e do desenvolvimento econômico do Brasil. Contudo, tais políticas foram definidas sob a perspectiva de uma “modernização autoritária e conservadora”, afinal, foram conduzidas por membros da elite política ligados ao sistema de repressão (MOTTA; REIS; RIDENTI, 2014). Logo, não havia espaço para discordâncias ou participação da sociedade.


Décadas depois, após a transição altamente negociada para a democracia, ainda percebemos os impactos das violências empreendidas contra os indígenas da região. Ao se referir às ondas de colonização do Projeto de Integração Nacional, empreendido durante a década de 1970, Ailton Krenak (2022) relembra a união entre indígenas e seringueiros para tentar impedir as violações e o desmatamento dissimulados em desenvolvimento. Referindo-se ao legado de Chico Mendes, Krenak (2022, p. 77) afirmou que os indígenas e seringueiros “não queriam estacas nem lotes, queriam a fluidez do rio, o contínuo da mata”. Porém, não foi o que aconteceu e as imagens dos cinejornais oficiais registraram esse processo.


Anos 1960: as primeiras representações da ditadura


A narrativa apresentada sobre a Amazônia pelas lentes da Agência Nacional estava relacionada diretamente às edições dedicadas à questão agrícola, à inauguração de obras e ao Projeto de Integração Nacional – em uma palavra, à modernização. Consequentemente, a perspectiva apresentada nas salas de cinema não tinha como protagonistas os indígenas e suas culturas, mas sim o Estado. O primeiro cinejornal que destacamos é a edição número 6 do “Informativo”, que foi ao ar nas telonas em 1965, produzido pela Agência Nacional, era exibido em todo o país. Sob a presidência do ditador Humberto de Alencar Castelo Branco, a pauta noticiada era a visita do então Ministro do Interior Cordeiro de Farias e sua comitiva ao Parque Nacional Villas-Boas, no Pará. Por meio de uma representação claramente colonial, os espectadores assistiram aos registros de uma missa celebrada (Imagem 1), enquanto as imagens colocavam em oposição os indígenas (Imagem 2), conforme descrito pelo narrador:


Entre as solenidades que marcaram a partida da expedição pioneira à região Xavantina Cachimbo, celebra-se missa campal a que assiste o ministro extraordinário. (...) O ministro Cordeiro de Farias aproveitou a sua permanência na região para visitar também o Parque Nacional Villas-Boas, onde a sua comitiva pode manter um contato direto com os índios Kalapalos e Carajás. A presença das altas autoridades da República nessa região significa que o governo está realmente empenhado em criar condições novas para que os habitantes da mesma, índios ou brancos, possam levar no futuro uma existência mais completa, mais integrada à realidade brasileira (INFORMATIVO, n. 6, 1965)

Celebração de missa.
1. Celebração de missa.Fonte: Cinejornal Informativo, n. 6, 1965.
Os indígenas observavam ao fundo.
2. Os indígenas observavam ao fundo. Cinejornal Informativo, n. 6, 1965.

As imagens da liturgia assemelham-se à pintura A Primeira Missa no Brasil (1861), de Victor Meirelles, na qual o processo de catequização é representado junto aos indígenas que o observam de longe. Como podemos ver, há a continuidade de uma representação dicotômica de colonizadores e indígenas, que corrobora com o imaginário do exótico sobre a região.


Quatro anos após a exibição dessa edição, em 1969, o número 145 do cinejornal Informativo foi ao ar. Na representação que consideramos uma das mais significativas, o ditador-presidente Artur da Costa e Silva viaja com a sua comitiva oficial para Tocantins, onde visita a aldeia do Bananal. O período foi marcado pelo início do “milagre econômico” e da intensificação da repressão após a publicação do Ato Institucional n. 5. Em uma tentativa de fortalecer sua base de apoio, o investimento na propaganda oficial aumentou consideravelmente.


No caso da representação da Amazônia, novamente, as imagens demonstram os indígenas como exóticos (Imagem 3). A narração reforça a ideia da catequização, bem como aspectos ligados ao processo civilizador empreendido pela ditadura (Imagem 4). Consequentemente, a versão oficial desconsidera a cultura dos povos originários e as violências físicas e simbólicas que sofreram. Dessa forma, o narrador anuncia:


É na aldeia do Bananal que o presidente da República visita, sendo ali recebido pela tribo e autoridades entrando na verdadeira intimidade dos silvícolas, obsequiando-os e levando-os a presença da grande pátria a que hoje se integram definitivamente ao Brasil. Os Carajás amam a música e a catequese já lhes trouxe instrumentos da civilização para expressar ritmos e melodias da terra (INFORMATIVO, 145, 1969

Presidente e comitiva observam uma mãe Carajá com seu bebê.
3. Presidente e comitiva observam uma mãe Carajá com seu bebê. Fonte: Cinejornal Informativo, n.145, 1969.
Presidente entrega uma arma a um indígena que segura um arco e flecha.
4. Presidente entrega uma arma a um indígena que segura um arco e flecha. Fonte: Cinejornal Informativo, n.145, 1969.

A década de 1970: silenciando para modernizar


Com a chegada dos anos 1970, as representações sobre a Amazônia sofreram uma mudança de perspectiva. Se antes as imagens demonstravam os grupos indígenas sob a ótica de uma espécie de “projeto civilizacional”, durante o governo de Emílio Garrastazu Médici isso se transformou. Em meio a um panorama marcado pela forte repressão, a autoimagem da ditadura passou a focar cada vez mais em apresentar índices econômicos, sobretudo por meio da inauguração de obras faraônicas – entre elas, a Transamazônica. Assim, durante o período Médici há uma queda substancial na produção cinejornalística, por motivos que não ficam claros. Apesar disso, a extinção do “Informativo” e a inauguração do “Brasil Hoje” – o primeiro cinejornal em cores do mundo – dá a dimensão do investimento na propaganda oficial.


Em 1974, houve duas edições seguidas sobre a Amazônia – mais especificamente, sobre a Transamazônica. Afinal, era hora de Médici propagandear os índices de seu governo. Desta forma, a edição n. 52 do cinejornal “Brasil Hoje” divulgou a inauguração do terceiro trecho concluído da rodovia transamazônica:


As obras de construção da grande rodovia começaram em 1970, agora, com a inauguração desse trecho, se concretiza a integração econômica irreversível da Amazônia, definindo uma das metas mais importantes do governo Médici. (...) Essa estrada, aberta em plena selva é duas vezes maior que a Rio-São Paulo e através da rede rodoviária nacional permitirá a viagem de Manaus a Brasília em três dias. (Brasil Hoje, n.52, 1974) 

Além da narração que exclui os indígenas do discurso e se refere à floresta como “selva” – o que reforça o argumento de “projeto civilizador” da ditadura – as imagens nos dizem muito. Percebe-se que a presença é majoritariamente de mulheres e crianças com trajes ocidentais, que não fitam as câmeras ou olham com olhar de desconfiança e temor (Imagens 5 e 6). Nesses registros, claramente não há vestígios de aprovação ou de benefícios, como dito pelo narrador. A respeito desse período, retomamos a fala de Krenak sobre os eventos de resistência contra o projeto de integração nacional e seus revérberos negativos e, principalmente, violentos. Nas imagens, não há mais espaço para a representação dos povos originários e sua cultura nativa – nunca houve, nesse caso. A visão colonial se sobrepôs, representando-os de forma dicotômica.


Famílias observam a solenidade.
5. Famílias observam a solenidade. Fonte: Cinejornal Brasil Hoje, n. 52, 1974.
Meninas indígenas
6. Meninas indígenas. Fonte: Cinejornal Brasil Hoje, n. 52, 1974.

Finalmente, Ernesto Geisel encerra o rol de ditadores-presidentes que investiram nos cinejornais da Agência Nacional entre 1964 e 1979. Porém, isso não significa que o investimento na mídia caiu, pelo contrário. Em uma conjuntura marcada por crises internas e externas, a ditadura necessitava produzir discursos que fortalecessem sua base de apoio. Por isso, o período Geisel correspondeu ao de maior número de edições produzidas, e a Amazônia esteve entre as suas principais pautas. Todavia, novamente sob a égide do avanço industrial e da inauguração de obras. Com foco no Projeto de Integração Nacional empreendido na década de 1970 e encerrado em 1974, a ênfase recaiu sobre os processos de colonização por famílias das regiões Sul e Sudeste. Isso fica evidente na edição número 176 do “Brasil Hoje”, exibida em 1976 sob o título: “Edição Especial: Desafio da Amazônia”. Nessa edição, uma família de colonos gaúchos composta pelos pais, uma filha e a avó, é entrevistada sobre a vida na região, exaltando o projeto do governo:


- Mulher: “Quando a gente chegou aqui a gente achava que transamazônica era o fim do mundo. (...) Não tem carapanã, que inventavam que tinha onça, bicho, mil e uma coisas. (...) o futuro do Brasil é a Amazônia, transamazônica é tranquilidade 
- Narrador: Povoar a Amazônia, incorporá-la ao ambiente nacional, é um grande programa em que o Brasil está empenhado. (...) A Amazônia é um desafio que o Brasil está vencendo. (Brasil Hoje, n.176, 1976)

As imagens que alternam entre as famílias de colonos entrevistados, as obras na rodovia (Imagem 7), os trechos inaugurados e a floresta, compõem uma narrativa que apresentava contrariedades para o espectador: deixava claro o que devia ficar no passado e o projeto de futuro empreendido. Nesse caso, fica clara a falta de protagonismo dos povos indígenas, que nem mesmo são incorporados na narrativa. Nesse momento, o destaque era dirigido às famílias das regiões Sul e Sudeste que migraram por meio do PIN. A cena final do cinejornal encerra essa representação de maneira muito significativa: enquanto o narrador afirma categoricamente que “A Amazônia é um desafio que o Brasil está vencendo”, a imagem de um menino indígena remando em uma canoa aparece entrando pela esquerda da tela e saindo pela direita, numa narrativa que projeta a ideia de início e fim (Imagem 8).


Máquinas abrem estradas em meio ao que era floresta
7. Máquinas abrem estradas em meio ao que era floresta. Fonte: Cinejornal Brasil Hoje, n. 176, 1976. Edição Especial: Desafio da Amazônia.
Menino indígena
8. Menino indígena. Fonte: Cinejornal Brasil Hoje, n. 176, 1976. Edição Especial: Desafio da Amazônia.

Entre o passado e o presente: os impactos das representações na atualidade


A fala de Krenak sobre os povos originários – “não queriam estacas nem lotes, queriam a fluidez do rio, o contínuo da mata” – é o oposto do que é apresentado pelas imagens. Dialogando com o contexto atual de denúncias sobre o extermínio dos Yanomami e disputas políticas em torno do Marco Temporal, é possível perceber o quanto essas representações e imaginários colaboraram para o estabelecimento de políticas autoritárias e pouco inclusivas com as quais convivemos até hoje.


Como pudemos observar, há uma construção de imagens que estabelece uma ordem cronológica durante os anos da ditadura. Nas primeiras ocorrências, percebemos um contato muito semelhante ao do imaginário colonial, inclusive por meio da catequização. Com o passar dos anos, a modernização autoritária atinge a região por diferentes frentes: além da abertura de estradas e inauguração de obras, a ocidentalização através das vestes, da entrega de armas de fogo e da tentativa de apagamento da identidade dos grupos indígenas. Esse processo fica ainda mais claro na última imagem, quando a única imagem apresenta um menino indígena saindo de cena. Hoje, podemos ver os impactos dessas políticas que empreenderam práticas de silenciamento e violência sistemática contra esses grupos.


 

Referências:

FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

FREITAS, Isadora Dutra de. Uma arena de disputas – fotografia e história como agentes da memória: as imagens da Agência Nacional e os registros de Claudia Andujar. In. MONTEIRO, Charles; ETCHEVERRY, Carolina Martins. Imagem e Poder: Cultura Visual nas Ditaduras Latino-Americanas (1964-1985). Porto Alegre: Editora Fi, 2019. p.33-54.

GOMES, Paulo César; TRINDAD, Carlos Benitez. A questão indígena durante a ditadura militar brasileira e a opinião pública estrangeira em perspectiva transnacional. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 14, n. 35, jan./abr. 2022.

KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

MAIA, Tatyana de Amaral. A Imagem Pública da Ditadura Civil-Militar nas lentes dos Cinejornais da Agência Nacional. In: ______. Imagens e Propaganda Política na Ditadura Civil-Militar (1964-1979): Tópicos de Pesquisa. Paco: Jundiaí, 2018. p.23-39.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá; REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTII, Marcelo (Org.). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2013.


Como citar este artigo:

FREITAS, Isadora Dutra de. As imagens da Amazônia nos cinejornais da ditadura civil-militar História da Ditadura, 8 abr. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/as-imagens-da-amaz%C3%B4nia-nos-cinejornais-da-ditadura-civil-militar. Acesso em: [inserir data].

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