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Foto do escritorIvan Lima

O fim e o princípio

Atualizado: 29 de abr. de 2021

 

É possível dizer que algo na arte termina? O italiano Alberoni teoriza sobre o Estado Nascente, o Movimento e a Institucionalização[1], argumentando que as sociedades tendem a seguir essas etapas, seja no campo da revolução ou em movimentos menores, mas intensos. Na arte acontece algo parecido. No entanto, dentro dessa dinâmica, novos “tentáculos” são abertos a Nascentes, Movimentos e Institucionalizações. A ideia de cronologia, baseada em princípio, meio e fim, é relativizada e, por vezes, desconstruída no universo da produção artística. Em um de seus melhores títulos de documentário, Eduardo Coutinho escolheu O fim e o princípio. Essa é uma ideia do cineasta que procuro incluir em meus textos. Anos atrás, havia quem dissesse que o disco tinha acabado. Foram-se os vinis, as fitas K7s e os CDs. Entrávamos na era do streaming, em que poderíamos ter acesso a todas as músicas em um só clique, onde quer que estivéssemos. YouTube, Deezer, Spotfy… sempre a mesma ideia: para que vou comprar um CD ou um LP se tenho tudo bem barato no próprio celular? Seria o fim do disco?

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Em 1902, a primeira música foi gravada no Brasil, um lundu com interpretação do cantor Bahiano. A partir daí, as músicas foram sendo distribuídas aos poucos e logo apareceram os discos de cera, os de 48 RPM, os de 10 polegadas e, por fim, os de 33 RPM. Os compactos simples ou duplos abriram passagem e, lentamente, foram ganhando capa, cor, título. Aos poucos, público e artista queriam mais: que o disco trouxesse 4, 5 ou 10 músicas. Mas como lançá-lo? Como seria a capa? Qual seria a ordem das faixas? O disco teria título?

O surgimento dessa obra “disco” passava a ter um significado polissêmico. O visual, o textual, o musical e a narrativa. Uma obra desse gênero, quando pronta, passava a ser lembrada, admirada, consumida e criticada por sua completude e por suas partes. Um disco envolve muito trabalho e vai bem além do que apenas a gravação e o canto. Produtores que o digam! São muitos detalhes… cores, título, capa, encarte, composição das faixas, arranjos, melodias, título de cada uma das canções, formatos, além da ordem em que as músicas serão apresentadas.

Normalmente, uso uma lógica comparativa: imaginem começarmos a ler um romance de Ariano Suassuna de trás para frente; ou fazer a leitura de Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez, iniciando pelo sexto capítulo; como entender a construção genealógica de Os Maias, do português Eça de Queiroz, começando o livro pelo último capítulo. Pois é, o disco também tem uma narrativa. Um sentido de construção que vai desde os aspectos visuais da capa, o encarte, o título, os componentes da narrativa textual em canções organizadas em determinada ordem e, é claro, os elementos não verbais que enriquecem a obra, tais como mensagens a partir de arranjos, solos, acordes maiores e menores, que podem entristecer, alegrar e colorir uma canção.

Isso não quer dizer que todos os discos obedeçam a esse critério, bem como os livros também não o seguem. Muitas vezes até os filmes fogem desse formato. No entanto, olhar para o disco como obra é fundamental para se entender, por exemplo, momentos históricos e concepções artísticas do período. As ligações do disco, como produto coletivo, a um determinado período são multidimensionais e multissensoriais. Desde movimentos artísticos lançados pela estética de uma capa junto ao título, até as narrativas de manifestos textuais e sonoros apresentadas ao longo na obra (faixa por faixa). O disco Tropicália – Panis et Circensis é um bom exemplo do que acabo de escrever. Não se trata apenas de um prenúncio vanguardista, mas a obra completa em si tem um legado. É um registro do circunstancial que envolve referências, influências e objetivos.

Tropicália – Panis et Circensis (Philips, 1968)

O disco é uma obra artística que age em múltiplas frentes sociais. Divertimento, reflexão, envolvimento e, também, revolução. O caso de gravações como as da banda Secos e Molhados é emblemático. O grupo constrangeu censores pelas atitudes performáticas nos palcos, na capa do disco e ao gravar versos como “Quem tem consciência para ter coragem / Quem tem a força de saber que existe”. Trata-se de um trecho do poema Primavera dos dentes, de João Apolinário[2], poeta português (e pai do fundador da banda João Ricardo) que se exilou no Brasil nos anos 1960, quando fugiu da ditadura salazarista.

Outro caso muito significativo é o da banda MPB4, quando, em 1972, lançou o disco Cicatrizes com uma capa em preto e branco e fragmentos em torno do título. O ano era duro e as principais composições do disco dão força ao título e multiplicam o sentido da capa e as dimensões do som e do texto de cada uma das canções. Pesadelo, composição de Paulo César Pinheiro, anuncia em seus versos “Você corta um verso, eu escrevo outro / Você me prende vivo, eu escapo morto / De repente olha eu de novo”. O Brasil vivia um verdadeiro pesadelo nos anos do governo Médici. Quantas cicatrizes esse período nos deixou! Capa, ordem e título das canções, aspectos musicais e até o coro do MPB4 fortalecem a obra. É arte, resistência e caminho; “quando um muro separa, uma ponte une”.

A obra “disco” é princípio, mas não é fim. As conjugações de arte em um produto híbrido tão rico fortalecem a consciência, desenvolve a imaginação e nos encorajam a ver, ouvir e agir.

MPB4 – Cicatrizes (Philips, 1972)

Secos e Molhados (Continental, 1973)

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Ouço bastante Spotify e YouTube, mas ouço ainda mais os discos. Ao escolher uma música de um artista, o streaming, ao fim da canção escolhida, me carrega automaticamente a outros artistas que não escolhi, nunca os ouvi e nem sequer os conheço de nome. Às vezes agradeço, outras vezes me chateio. Mas, independentemente do que sinto, percebo que minha formação musical vai se diluindo entre milhões de artistas e poucas obras. São muitas gravações conhecidas e poucos discos lidos, sentidos e vibrados. Volto à ideia dos livros. São capítulos de Suassuna seguidos por Garcia Márquez e findados por Eça. A ideia do todo vai se perdendo. Sem contar a falta de acesso aos encartes, produtores, músicos, capas, contracapas… Quantos profissionais e talentos relegados ao anonimato! Mas quando o princípio parecia o fim… eis o fim e o princípio.

Nos últimos anos, a indústria música viveu um revival dos Long-plays. Os motivos dariam um bom texto e uma densa discussão. Agora, limito-me a comemorar e a assistir com entusiasmo a esse boom retrô que paira sobre as vitrolas e os vinis. Novamente aquelas artes dos “bolachões” estão de volta com edições de luxo e com direito a capa dupla e encarte completo. Voltamos às inquietações sobre a capa, a ordem das canções, as cores, os sons, os encartes e tantas outras construções incluídas na obra. Sou da geração das transições: do vinil para o CD, do CD para o MP3, do MP3 ao download e do download ao streaming. Nesse caminho, vi os encartes sumirem, produtores serem esquecidos, músicos que tocaram nos discos e a noção da construção da obra ser cada vez menos discutida. Hoje volto a enxergá-los. O retorno do consumo dos produtos sonoros e, mais-que-sonoros, físicos, me anima, revigora a esperança de reconstrução nesse meio e faz com que a indústria (literalmente física) dos LPs e CDs, mesmo que não com a pompa de antes, se mantenha ativa e a circularidade dessa noção de arte não desafine. Pelo visto, a produção, que há pouco tempo andava em tom menor e prenunciava o fim, voltou para o refrão e para os acordes maiores. Não tem fim.

A música é sempre princípio.

Sobre a coluna

E no princípio… era o disco é um convite à música brasileira. Amores, discos, conflitos, sorrisos, diásporas, batuques. Tudo que não cabe no que a gente imagina, a música do Brasil é capaz de fazer. É transcendental, é som, é imaginário. Que a música nos abrace: abrassonho, abrassom. E não pula de faixa.

 

Notas

[1] ALBERONI, Francesco. Génese. Lisboa: Bertrand Editora, 1990.

[2] João Apolinário Teixeira Pinto (Belas, Sintra, 18 de Janeiro de 1924Marvão, 22 de Outubro de 1988) foi um poeta e jornalistaportuguês. Combateu o fascismo tanto em sua terra natal, quanto em seus anos de exílio no Brasil. Colaborou em inúmeras publicações importantes nos dois países. É, no entanto, mais conhecido no Brasil por seus poemas, musicados pelo filho João Ricardo e apresentados pelo conjunto Secos e Molhados.

 

Crédito da imagem destacada: Photo by Adrian Korte on Unsplash

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