Hidrelétricas no Brasil: o clima e a herança da ditadura
Atualizado: 5 de abr. de 2022
No último mês de novembro, ocorreu a COP26 em Glasgow, na Escócia, onde se discutiram soluções e engajamentos que implicam o futuro climático do planeta. Na busca de limitar o aquecimento global a 1,5°C acima do nível pré-industrial, o objetivo das discussões é zerar as emissões equivalentes de gás carbônico através de metas voluntárias para 2030 e 2050 propostas pelos países participantes. O presidente Jair Bolsonaro não apareceu, e seu enviado, o ministro do Meio Ambiente Joaquim Leite, anunciou, sem convencer ninguém, que o corte das emissões passará de 43% a 50% até 2030. Como denunciam diversos analistas, a base desse cálculo não foi esclarecida, mas representa uma regressão na ambição climática em relação à meta anunciada em 2015 por Dilma Rousseff no Acordo de Paris.
A questão energética, principalmente a diminuição do uso dos combustíveis fósseis, é central nessas discussões. Assim, um dos principais engajamentos adotados durante a COP26 foi o de eliminar progressivamente a energia à base de carvão até o fim de 2022. Esse compromisso foi assumido por mais de quarenta países – entre os quais importantes consumidores como Polônia, Vietnã e Chile.
Neste cenário, o Brasil possui algumas vantagens, pois depende de uma matriz energética que conta com grande parte de renováveis, das quais a hidroeletricidade é uma das principais. O Brasil é um dos maiores construtores de barragens do mundo e o segundo país a gerar mais energia hidrelétrica, atrás apenas da China. Só que, quem diz hidroeletricidade, diz infraestruturas conhecidas por seus enormes impactos ambientais e sociais. As sucessivas modificações dos rios e de sua morfologia, além dos enormes impactos ambientais e sociais da sua construção e operação são alguns deles. Por isso, durante a COP26, um manifesto assinado por trezentas organizações civis, indígenas, científicas e conservacionistas de sessenta e nove países pede um corte em investimentos em hidrelétricas.
A história da hidroeletricidade no Brasil e o regime militar
O Brasil adotou a tecnologia hidrelétrica ainda no final do século XIX, ao mesmo tempo em que Estados Unidos e diversos países da Europa. Seguindo a ideia de que a abundante hidrografia nacional era uma vantagem comparativa para a produção energética no país, a hidroeletricidade se desenvolveu no país ao longo do século XX. A partir dos anos 1950, a produção hidrelétrica se intensificou sob a agenda desenvolvimentista de Getúlio Vargas, acompanhada de uma progressiva estatização do setor de geração elétrica como um todo. Durante esse período, a hidroeletricidade representou a maior parte da produção elétrica do país, chegando a constituir mais de 90% da geração total em alguns anos. Hoje ela representa 60%, segundo o Sistema de Informações de Geração da Agência Nacional de Energia Elétrica.
A ditadura militar teve um papel significativo na expansão elétrica do país. No total, foram construídas mais de sessenta grandes barragens hidrelétricas, que multiplicaram em mais de sete vezes a capacidade instalada, que passou de 4.894 MW em 1964 a 37.437 MW em 1985. Esse processo foi marcado por dois elementos novos em relações ao período anterior: o primeiro foi que as barragens hidrelétricas se tornaram maiores e se espalharam pelo país, com o início da construção de barragens na Amazônia e no extremo Sul do país; o segundo foi a consolidação da estatização do setor de geração elétrica no país, a partir de então totalmente coordenado e administrado pela Eletrobrás.
Como a hidroeletricidade era tida como elemento de estímulo ou até mesmo precondição para a industrialização, ela teve uma posição de destaque nos diferentes programas de desenvolvimento do regime militar. Diversos projetos emblemáticos datam desse período, como a usina de Sobradinho, no rio São Francisco, a usina binacional de Itaipu, na fronteira com o Paraguai, a usina de Tucuruí, na Amazônia, e a usina de Ilha Solteira, no rio Paraná. Porém, essa multiplicação de hidrelétricas no país só foi possível através de uma mobilização de recursos orçamentários, o que ampliou o endividamento público, sendo o setor elétrico responsável uma grande parte da dívida externa contraída pelo Brasil naquele período. A dívida do setor elétrico representava US$ 18,2 bilhões em 1985, dos quais 88% eram em moeda estrangeira.
A dívida externa não foi a única consequência desses enormes projetos. O aumento na geração de eletricidade, usado para estimular o crescimento industrial e o consumo urbano, ocorreu aos custos de enormes consequências sociais e ambientais desigualmente repartidos no território nacional. Se hoje essa questão aparece como central no debate sobre a construção de barragens, até os anos 1970 havia pouca preocupação com os impactos dessas infraestruturas, que eram geralmente consideradas positivas – mesmo pela opinião pública – enquanto vetores de desenvolvimento.
A emergência da questão ambiental e social na construção de barragens
Durante a década de 1970, contudo, essa percepção começou a mudar. Foi nesse período que a opinião pública brasileira começou a se preocupar com o aumento da poluição do ar, a questão da má gestão do lixo, da água contaminada e da agricultura predatória. Isso aconteceu ao mesmo tempo em que a questão dos impactos das atividades humanas sobre o meio ambiente tornou-se um problema discutido internacionalmente. Também nesse período surgiu preocupação maior com o destino da floresta Amazônica. Assim, projetos de barragens nessa região, como a de Tucuruí, no rio Tocantins, no Pará; a de Balbina, no rio Uatumã, no Amazonas; e o projeto do complexo hidrelétrico de Altamira (mais tarde rebatizado Belo Monte), no rio Xingu, foram alvos de muitas críticas.
As barragens começaram a ser criticadas na época principalmente por seus impactos sobre a fauna, mas também pelas áreas que inundam, as quais incluem paisagens e biomas importantes. Por isso, as empresas começaram a realizar estudos de impactos ambientais e a refletir sobre medidas de mitigação (ainda que tímidas), como o salvamento de animais da zona inundada para a construção de barragens.
A partir dos anos 1980, as barragens também foram condenadas por seus impactos sociais sobre as populações que eram deslocadas para a sua construção. Até então, a única medida tomada em relação à população afetada era a compensação financeira dos proprietários das terras inundadas. Ignorando as relações entre as pessoas e seus territórios, seus modos de vida e também o papel do tecido social para as comunidades, essa maneira de proceder teve efeitos desastrosos em muitos lugares. Além disso, com a expansão das barragens pelo território, o processo de indenização ganhou complexidade, pois em várias regiões, como no Norte e no Nordeste, as pessoas não possuíam títulos de terra.
Por um lado, durante o regime militar esses projetos foram implantados de forma autoritária e sem discussão com a população, que muitas vezes só era informada dos projetos quando os processos de expulsão começavam. Um exemplo emblemático é o da barragem de Sobradinho, iniciada em 1973 e inaugurada em 1979 pela Chesf, no rio São Francisco, nas proximidades da cidade de Juazeiro, no estado da Bahia. A criação de seu reservatório deslocou mais de setenta mil pessoas, inundou quatro cidades e vinte e seis aldeias, e submergiu terras muito férteis em uma região marcada pela seca. Foi uma das primeiras vezes que um processo de relocalização das pessoas atingidas foi levado a cabo no país, com cerca de sessenta e cinco mil pessoas realocadas pela Chesf. Apesar de pioneiro, esse reassentamento teve custos sociais imensos, que incluem a migração forçada para áreas urbanas, a transformação radical dos modos de vida da população e a acentuação dos conflitos sobre acesso a terra e água nos entornos do lago criado. Por outro lado, a conduta autoritária do governo, combinada ao clima político dos anos 1980, levou à multiplicação e à consolidação de movimentos coletivos organizados no âmbito de projetos hidrelétricos, embora não fosse a primeira vez que populações resistiam a esse tipo de projeto.
O exemplo da barragem de Itaipu, no rio Paraná, na fronteira com o Paraguai, construída entre 1975 e 1982, é um dos mais emblemáticos, tanto pela escala quanto pela cobertura mediática. Os agricultores afetados por esse megaprojeto, que inundou 1.350 km2, começaram a se mobilizar em 1978, com a ajuda da igreja local. A empresa responsável pela construção da barragem, a Itaipu Binacional, se recusou inicialmente a negociar. Porém os atingidos – agricultores e povos indígenas – se organizaram e buscaram outros aliados, como sindicatos rurais, políticos de oposição, ambientalistas e a população em geral. Um dos temas que mobilizou a opinião pública foi o desaparecimento das famosas cachoeiras Sete Quedas pelo reservatório da barragem. Essa luta, permeada por reuniões, manifestações e acampamentos, teve grande repercussão nacional e foi um dos embriões do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Olhando para o passado para pensar o futuro energético do país
A construção de barragens durante a ditadura alterou radicalmente paisagens, mudou estruturas produtivas, destruiu habitats, deslocou milhares de pessoas e lançou um processo de degradação ambiental que continua a assombrar a sociedade brasileira. Mas também suscitou a organização de novos movimentos sociais e o desenvolvimento de medidas de gestão ambiental, que seriam mais tarde institucionalizadas com a Constituição de 1988.
O olhar histórico sobre esse período pode nos ajudar a entender melhor como chegamos aonde chegamos em termos de matriz elétrica, para pensar sobre como resolver o problema espinhoso que é a questão energética em um contexto de mudanças climáticas.
A pressão para a descarbonização da produção energética pode impulsionar a construção de novas barragens no Brasil. A energia hidrelétrica terá certamente um papel importante na solução dessa crise, pois ela continua sendo uma das tecnologias mais eficientes para a geração de eletricidade. Contudo, seus numerosos impactos não podem ser ignorados. Além disso, as consequências das mudanças climáticas e do desmatamento da Amazônia no regime pluviométrico do país podem comprometer os possíveis benefícios desse tipo de energia. Um exemplo prático se encontra na crise hídrica atual – a pior registrada nos últimos noventa e um anos – que causou níveis baixos de reservatórios e uma baixa produção de energia. Enquanto setores industriais e comerciais e os moradores urbanos se beneficiam desta produção de energia, os efeitos negativos das barragens pesam geralmente sobre comunidades camponesas, ribeirinhas e indígenas. Por isso, é fundamental pensar como incluir adequadamente a população afetada nessas decisões, deixando para trás o legado do regime militar no setor elétrico. Para encontrarmos soluções para a crise energética é indispensável refletir sobre escolhas como problemas políticos, que devem ser discutidos na arena pública. Se essas infraestruturas são financiadas (total ou parcialmente) por fundos públicos, elas devem ser tratadas como serviço público, com exigência de transparência para com a sociedade.
O acordo não foi assinado pelos Estados Unidos, China e nem pelo Brasil.
A primeira companhia de geração elétrica estatal foi a Comissão Estadual de Energia Elétrica (CEEE), criada em 1943 pelo governo do Rio Grande do Sul, seguida da Empresa Fluminense de Energia Elétrica (EFE), em 1945, no Rio de Janeiro e da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) sob responsabilidade federal, em 1948. A lei que permitiu a criação da Eletrobrás só foi promulgada em 25 de abril de 1961, durante o governo de Jânio Quadros.
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