História da ditadura nos “pacatos” rincões do país: alguns apontamentos preliminares
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  • Foto do escritorDarlise Gonçalves

História da ditadura nos “pacatos” rincões do país: alguns apontamentos preliminares

Atualizado: 14 de jun. de 2022

No campo acadêmico brasileiro, após a ditadura, os debates teóricos a respeito do período predominavam no âmbito da Ciência Política. Aos poucos, essas discussões foram sendo acrescidas de novas evidências empíricas, mudando substancialmente o perfil de produção sobre o tema. No entanto, até meados dos anos 2000, as iniciativas de sistematização desse passado partiam de alguns poucos programas de pós-graduação em História. Tendo como centro desses debates as experiências ocorridas principalmente na região Sudeste, sobretudo no eixo Rio de Janeiro - São Paulo. Nesse sentido, as regiões que não protagonizaram expressivas ações de resistências no âmbito da luta armada ainda não haviam ganhado a merecida atenção dos pesquisadores. Contudo, vale destacar que a efeméride dos quarenta anos do golpe (2004) suscitou outras questões, que até então continuavam em aberto, como, por exemplo, as disputas em torno do conceito de resistência e os debates que tratam do apoio da sociedade brasileira ao regime de exceção.


Já nos cinquenta anos do golpe (2014), o cenário mudou substancialmente. No meio acadêmico, diversos eventos foram realizados por todo o país e, também, no exterior, demonstrando um significativo crescimento no número de produções voltadas para esse período, bem como a ampliação do olhar dos pesquisadores para outras parcelas da sociedade que não estiveram diretamente vinculadas à resistência armada nos grandes centros urbanos. Nesse sentido, ampliaram-se o número de pesquisas que partem de uma perspectiva regional e/ou local, abrindo-se espaço para o debate das vivências do “cidadão comum”: interiorano, campesino, favelado, aldeado, fronteiriço etc. Tomando suas experiências não como casos isolados, mas como facetas de um todo que não se apresentou da mesma forma em todas as regiões do país. Dito de outro modo, as solidariedades, a repressão e as múltiplas formas de resistências tiveram particularidades espaciais, sociais e culturais dependendo do local onde ocorreram.


Seja como for, mesmo que as efemérides sejam importantes para se pensar determinados períodos históricos, como é o caso da ditadura militar, elas não as únicas responsáveis pelas guinadas de enfoque. Há por trás disso uma série de outros fatores que, direta ou indiretamente, contribuíram para o surgimento de novas inquietações e abordagens para velhos problemas. Destacarei aqui dois deles: a ampliação do acesso à documentação referente ao período e à política de expansão do ensino superior no Brasil a partir do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), ambos ocorridos durante os governos do Partido do Trabalhadores.

Em se tratando dos arquivos da ditadura, essa documentação passou por um longo processo para termos a possibilidade de acessar parte dela virtualmente por meio da base de dados do Arquivo Nacional. No ano de 2005, o Decreto 5.584 determinou que fossem recolhidos ao referido arquivo os documentos públicos produzidos e recebidos pelos extintos Conselho de Segurança Nacional (CSN), Comissão Geral de Investigações (CGI) e Serviço Nacional de Informações (SNI), que até então estavam sob a custódia da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Entretanto, junto a esse sopro de boas novas, ocorreram novos problemas relacionados à questão da privacidade dos indivíduos citados nesses documentos, o que levou o Arquivo Nacional e alguns arquivos estaduais a restringir o acesso a alguns deles. Esse impasse durou algum tempo e foi sanado pela Lei de Acesso às Informações Públicas (LAI).


Logo do Serviço Nacional de Informações (SNI)

Nesse sentido, talvez o ponto que mais nos interesse aqui é que, de acordo com o parágrafo 21 da LAI, “as informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticadas por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrições de acesso”. Da mesma forma, é importante ressaltarmos o parágrafo 4° do artigo 31: “a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada [...] em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”.


Assim, a abertura desses arquivos foi, e é, de suma importância para a pesquisa histórica acerca do período, tendo contribuído para imprimir uma nova dinâmica na produção dos últimos anos, indicando novos caminhos a serem explorados. Esses acervos, portanto, ajudam na superação de alguns mitos e equívocos, como, por exemplo, a ideia de uma ditabranda ou da não existência de repressão nas cidades interioranas.


Ainda que muitos desses fundos tenham sido “perdidos” pelo caminho, a possibilidade de consulta, inclusive virtualmente, em um sistema de busca por palavras-chaves através do Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN), é algo que deve ser destacado. Essa ferramenta possibilita que pesquisadores de todos os cantos do Brasil, e até mesmo do exterior, possam acessar parte desse material sem os custos de um deslocamento até o Rio de Janeiro ou Brasília.


Outro elemento que pode ser apontado como um potencializador da pluralidade de enfoques nas pesquisas voltadas pera a temática das ditaduras é a política de ampliação de acesso ao ensino superior possibilitada pelo Reuni. Este programa possibilitou que a universidade federal chegasse ao interior, alargando, assim, o leque de pesquisas sobre a ditadura. Essa nova realidade contribuiu para o surgimento de uma produção de conhecimento mais aprimorada acerca do tema, já que muitos pesquisadores do interior do país passaram a olhar para a história de seu entorno. Tal movimento deve ser destacado, sobretudo em um período de constantes ataques à educação e à universidade pública como o que estamos vivendo.


Nesse sentido, para exemplificar esse argumento, vamos nos ater ao caso do estado do Rio Grande do Sul, onde boa parte dos historiadores especializados em regimes ditatoriais vem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), situada em Porto Alegre. Embora seus temas de pesquisa sejam os mais diversos, pouquíssimos olham para o interior do estado. Agora, conforme a universidades se afastam da capital, elas passam a produzir sobre seu entorno. Um exemplo disso é o curso de História da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) do campus Jaguarão, cria do Reuni, que, desde a primeira turma (2010-2014) até hoje, vem realizando estudos voltados para o passado da região, contestando a velha história oficial contada por coronéis e latifundiários herdeiros de uma elite charqueadora. Não que essa universidade não produza estudos que se debrucem sobre outras espacialidades: eles existem e são igualmente importantes. Entretanto, vale destacar que todos os trabalhos de conclusão de curso que se debruçam sobre a temática da ditadura fizeram-no a partir do viés local.



Alguns desses pesquisadores deram continuidade às suas investigações no Programa de Pós-Graduação da universidade da cidade vizinha (UFPel), sendo esta a única universidade na região austral do Rio Grande do Sul a oferecer os cursos de mestrado acadêmico e doutorado em História, aprovados, respectivamente, em 2009 e 2018, na esteira do Reuni. Desta forma, a Universidade Federal de Pelotas vem realizando significativa produção sobre Pelotas e seus arredores nos tempos da ditadura.


Juntas, Unipampa e UFPel vêm fomentando os estudos históricos na região. Vale destacar que ambas possuem uma singularidade notável: suas linhas de investigação se voltam para questões de fronteira, que é uma característica da espacialidade em que se inserem. Tal elemento geográfico/político/cultural é fundamental para compreensão do Rio Grande do Sul em diferentes períodos históricos. E durante a ditadura, dentro da logica repressiva vigente, não poderia ser diferente, conforme veremos nos próximos textos da coluna.


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Em síntese, foi pensando nessas questões que nasceu esta coluna. Acredito que para avançar no estudo da ditadura, é preciso que sejam deixadas de lado explicações generalistas sobre o período, destinando especial atenção à diversidade de tipos sociais que o vivenciaram das mais variadas formas, visto que a repressão atingiu brutalmente o meio rural, as pequenas cidades, as periferias e as favelas. Portanto, destacaremos neste espaço as vivências de outros atores sociais, esmiuçando outras formas de resistência para além da armada e levando em conta as especificidades dos diferentes setores da sociedade brasileira a partir de um recorte regional, pelos “pacatos” rincões do Brasil.



Créditos da imagem destacada: Presidente deposto João Goulart no exílio. Arquivo Nacional, BR RJANRIO, XX D7.0.EXI, FOT.5.


 
  1. Optei pelo Rio Grande do Sul pela minha familiaridade com a produção historiográfica local. Outros exemplos da importância e os impactos da ampliação do ensino superior na regionalização dos estudos sobre a ditadura em outras partes do país podem ser conferidos no livro Diálogos sobre a ditadura.

  2. O Centro de Referência em Pesquisa sobre a Ditadura Civil-Militar no Rio Grande do Sul (UFRGS) possui a Plataforma Antares, que apresenta um levantamento, ainda em desenvolvimento, da produção sobre a ditadura militar no estado, incluindo alguns dos trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses defendidos até 2019.

  3. Cito aqui aqueles pesquisadores que trataram diretamente da ditadura na cidade: VIEIRA (2014), TAVARES (2016), DOURADO (2017) e GONÇALVES (2018), destaco também a existência de outros estudos que abordaram temáticas diversas mas que dialogam com alguns aspectos do viver em fronteira naqueles anos.

  4. VIERIA (2018) e Gonçalves com pesquisa em andamento.

  5. Para citar somente alguns: SILVEIRA (2010; 2014), FRIDERICHS (2013), FERREIRA (2017)

Referências:

DOURADO, Raniere de Oliveira Santos. A ditadura civil-militar e o movimento estudantil em Jaguarão. 2017. 69f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em História) – Curso de História, Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA.

FERREIRA, Vânia Farias. A Universidade Federal de Pelotas à época da ditadura civil-militar: memórias divergentes de uma trajetória. 2017. 125f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.

FICO, Carlos. História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o caso brasileiro. Varia História. Belo Horizonte, vol. 28, n. 47, p. 43-59, jan/jun. 2012.

FRIDERICHS, Lidianie Elizabete. Saindo dos trilhos: os ferroviários riograndinos durante a ditadura civil-militar (1960-1970). 2013. 188f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas.

GONÇALVES, Darlise Gonçalves de. Travessia: O protagonismo da fronteiriça Jaguarão na rota dos passageiros da liberdade durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1973). 2018. 62f. Trabalho de conclusão de curso - (Licenciatura em História) – Curso de História, Universidade Federal do Pampa -UNIPAMPA.

SILVEIRA, Marília Brandão Amaro Da. A resistência ao golpe e ditadura militar em Pelotas. Trabalho de conclusão do curso Universidade Federal De Pelotas Instituto de Ciências Humanas Departamento de História e Antropologia Faculdade de Licenciatura em História. Pelotas, 2010.

_________. Ditadura civil militar na região sul gaúcha: Militâncias e rotas de exílio. Dissertação, Universidade Federal De Pelotas- Instituto De Ciências Humanas Programa De Pós- Graduação Em História. Pelotas, 2014.

TAVARES, Renata de Paiva. “Aí Vem Estes Verdinhos Incomodar!”: A censura no Jornal A Fôlha de Jaguarão no período da ditadura civil-militar brasileira. 2016. 37f. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em História) – Curso de História, Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA.

VIEIRA, Elena Teixeira Porto. Em busca das fontes perdidas: um estudo sobre a ditadura civil-militar em Jaguarão- RS a partir das atas da Câmara De Vereadores e do Jornal “A Folha” (1964). 2014. 63f. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em História) – Curso de História, Universidade Federal do Pampa -UNIPAMPA.

_________. O golpe de 64 silenciado: a memória e o esquecimento do período da ditadura no município de Jaguarão-RS. 2018. 113 f. Dissertação de Mestrado (Mestrado em História). Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal de Pelotas. UFPel.


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