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  • Foto do escritorNathália Fernandes

Lugar de mulher: Discursos proibitivos sobre o futebol de mulheres

Atualizado: 3 de ago. de 2022


O leitor e a leitora que acompanham esta coluna já estão familiarizados com os questionamentos que cercam o assunto do futebol de mulheres no Brasil, como, por exemplo, a afirmação de que futebol não é esporte de mulher. Muitas dessas questões são recorrentes no discurso e no imaginário social e são alimentadas, muitas vezes, por uma memória que remonta ao tempo em que a prática da modalidade foi proibida no Brasil, em 1941. Na época, os argumentos médicos e jornalísticos apontavam a prática do futebol pelas mulheres como prejudicial à saúde feminina e ao papel social para elas reservado: a maternidade.


Esses discursos, recorrentes na imprensa esportiva e geral no período, fomentaram o debate e alimentaram as justificativas e as desculpas necessárias para que o governo do então presidente Getúlio Vargas pudesse promulgar, em abril de 1941, o Decreto-Lei 3.199. Tal determinação criou o Conselho Nacional de Desportos (CND) e deixou a cargo dele a decisão sobre os esportes que deveriam ser considerados compatíveis ou não com o corpo feminino.


Durante os quarenta anos de proibição, as mulheres seguiram praticando o esporte, seja usando de subterfúgios para burlá-la – como a justificativa dos jogos beneficentes ou a apresentação das partidas como shows –, seja efetivamente praticando o esporte nos gramados e desafiando as sanções do CND.


Na década de 1970, com a aceitação do esporte feminino em diversos países e havendo, inclusive, a realização de Copas do Mundo femininas – ainda que fora do escopo da FIFA –, a federação brasileira se viu pressionada a legalizar o esporte. É então que, em 1979, a determinação proibitiva é revogada, sendo o esporte regulamentado somente no ano de 1983.


Seleção feminina mexicana de futebol no estádio Azteca. Final do Campeonato Mundial de Futebol Feminino, em 1971. Fonte: Ludopédio.

Contudo, mesmo com a regulamentação e a liberação da prática, a memória sobre a incompatibilidade do futebol com os corpos femininos permanece e somam-se a ela novos discursos preconceituosos e estereotipados sobre esses corpos. A erotização e sexualização das mulheres – jogadoras e torcedoras – começou a se transformar em prática recorrente nos periódicos e revistas, buscando agradar ao público que efetivamente se considerava espectador do futebol: o masculino.


Os discursos nas décadas de 1980 e 1990


O senso comum de que à mulher não cabe o espaço esportivo se escancara em falas como a do ex-técnico da Seleção Brasileira de Futebol Masculino, João Saldanha, que comentando, já na década de 1980, sobre o que achava do futebol de mulheres, disse: “Imagine a cena. Meu filho me apresenta a namorada, eu pergunto o que ela faz e ela me diz que é zagueira do Bangu. Não dá”. Essa fala demonstra como era comum, inclusive para os indivíduos que participavam do universo futebolístico, a não associação desse campo com o feminino.


Ao longo da década de 1990, algumas capas da Placar, importante revista esportiva, expressava esse estereótipo de feminilidade esperado e reiterava a lógica de que o público apreciador do esporte era efetivamente o masculino. Em uma edição de 1997, a capa traz a foto de quatro mulheres, vestidas com biquínis ou roupas curtas, de cor amarela, em referência ao uniforme da Seleção Brasileira, com manchete intitulada “GOSTOSAS! Haja coração... Quem são as deusas do futebol feminino.” Assim como em outras edições da revista já apresentadas em artigos anteriores, a erotização dos corpos reitera que o público-alvo do periódico era o masculino, buscando, para isso, atrair esse público apresentando os corpos torneados e atraentes das atletas selecionadas para representar o perfil desejado de uma jogadora de futebol. Na capa, nenhuma das mulheres escolhidas para representar a “seleção feminina” fugia do padrão de beleza estabelecido: cabelos compridos e corpos sarados.


Em concordância com o exposto até aqui, em artigo sobre as publicações da Revista Placar na década de 1990, Leila Salvini e Wanderley Marchi Júnior (2013, p. 149) destacam também a criação de times de modelos, que enchiam as páginas da revista em uma exibição muito mais voltada para a apresentação dos corpos do que do futebol. Segundo Salvini e Marchi Júnior:


Embora o futebol feminino tenha evoluído dentro do limiar possível e permissível da realidade histórica brasileira, a preleção que envolve as adjetivações normativas de gênero impressas no corpo das futebolistas se manteve presente. Como forma de mascarar ou de vender outra imagem do futebol feminino, foram criados nos anos 1990 equipes de futebol feminino formadas por modelos. Podemos entender que segue a mesma lógica das ‘globetes’, ou seja, saem de cena as ‘globetes’ e entram as modelos que ‘desfilam’ futebol. Em se tratando de times de modelos era expressamente proibido que jogadoras federadas, embora esteticamente belas, fizessem parte das equipes, pois, o futebol era menos importante do que a espetacularização dos corpos.

No trecho destacado acima, os autores fazem referência as “globetes”, apelido dado ao time de futebol formado por atrizes da Rede Globo, na década de 1980. A escolha pela Placar não carrega um intuito de ataque à revista e menos ainda uma intenção de dizer que a publicação visava menosprezar os corpos femininos. Ao contrário, a revista apresentava um retrato da sociedade da época, que acreditava que uma maneira de agradar ao público masculino seria através da exibição de corpos femininos. Associando-os, muitas vezes, ao futebol por deduzir que o somatório dos dois interesses considerados do território masculino – mulher e futebol – agradaria ainda mais os leitores da revista.


Revista Placar. Reprodução.

Esse retrato social, inclusive, não é exclusividade nacional. Jane Caudwell nos fala sobre a marca inglesa de material esportivo Footie Chick, fundada em 2002. Segundo a própria autora, a empresa hoje não mantém mais sua apresentação e pretensões originais. Contudo, a marca, que pretendia vestir as mulheres para jogar, assistir ou sentir o esporte, acabava por atender a uma lógica sexista de mercado que entendia os corpos femininos como objeto de exposição de uma feminilidade que se entendia como desejável e padrão. Segundo a Caudwell (2011, p. 337, tradução livre),




Os corpos de mulheres e meninas tornaram-se locais de atração potencial para o adorno de trajes de futebol e, concomitantemente, a exibição da feminilidade. Desta forma, o corpo Footie Chick é uma emergente incorporação da feminilidade. A feminilidade da Footie Chick é delicadamente misturada com um novo tipo de sexualidade e sugere uma heterossexualização da cultura do futebol de mulheres.

Os anos passam, os discursos ficam...


Mais de vinte anos depois, especialmente após a Copa do Mundo Feminina FIFA de 2019, a percepção dos gramados como não mais um espaço de exclusividade masculina vem crescendo. Contudo, é possível citar uma série de fatores que ainda se apresentam como barreiras para as mulheres que pertencem a este universo, como a dificuldade da sequência em uma divisão de base em diversas instâncias nacionais do futebol de mulheres, o que faz com que as meninas tenham uma grande defasagem ao chegarem no futebol profissional. O primeiro campeonato feminino de base no Brasil surgiu em 2017, organizado pela Federação Paulista de Futebol. Em nível nacional, foi somente neste ano, em 2022, que a CBF organizou as categorias de base e criou campeonatos sub-17 e sub-20 em substituição aos sub-16 e sub-18, ampliando a faixa etária de participação das jovens em campeonatos oficiais.


Futebol de base feminino abre novas portas e promete revelar talentos para o esporte. Fonte: trivela.com.br

Além disso, os estereótipos de que as mulheres não pertencem ao futebol algumas vezes ainda se renovam em ofensas e xingamentos, como no caso sofrido pela jogadora do time sub-13 do Botafogo de Futebol e Regatas. Giovanna, uma meia-atacante, é a única menina inscrita no campeonato metropolitano sub-13, que é misto. Segundo reportagem do Globo Esporte, a atleta afirmou sofrer diversos ataques verbais, além de faltas duras no decorrer da partida. Giovanna também afirmou à reportagem que a maioria dos gritos vem das mães dos garotos, sobretudo quando ela leva a melhor em uma disputa.

Tal afirmação destaca o medo de que as barreiras de gênero sejam nubladas diante da superioridade feminina em relação aos homens no que diz respeito ao mundo da bola. Esse medo se faz presente desde o século passado, adotando diversas roupagens: a ofensa ao corpo feminino musculoso, a erotização e, agora também, as ofensas à habilidade ou à qualidade técnica. De acordo com Silvana Goellner (2005, p. 145), as mulheres foram historicamente alijadas dos esportes considerados masculinos porque “seu sucesso nessas práticas poderia infringir as leis da natureza pois, ao mostrarem-se mais fortes do que se supunha, seria fissurado o discurso das diferenças naturais cuja base estava assentada na sobrepujança física de um sexo sobre o outro”.


Chegando até aqui, o leitor e a leitora já perceberam que a temática dos preconceitos e estereótipos envolvendo o futebol de mulheres parece não ter fim e se ramifica em diferentes épocas e categorias. Novamente, encerro este texto com um pedido e um chamamento: vamos fazer nossa parte para que o preconceito no universo do futebol – seja contra quem torce ou contra quem pratica – se torne apenas história.


 
  1. Importante mencionar que, em 1965, o CND publicou a Deliberação número 7, que reiterou a proibição da prática de uma série de esportes pelas mulheres, mencionando, entre eles, o futebol em suas modalidades de campo, quadra e areia. Cf. Página 33 da Seção 1 do Diário Oficial da União (DOU) de 2 de setembro de 1965.

  2. KFOURI, Juca. “João Saldanha foi um brasileiro raro, destemido e carismático”. Revista Movimento, 3 jul. 2019. Disponível em: https://movimentorevista.com.br/2019/07/joao-saldanha-foi-um-brasileiro-raro-destemido-e-carismatico /. Acesso em: 04 de julho de 2022.

  3. Revista Placar, São Paulo, março de 1997.

REFERÊNCIAS:


CAUDWELL, Jayne. Gender, feminism and football studies. Soccer and Society. v. 12, n. 3, p. 330-344, maio 2011.

GOELLNER, Silvana. Mulheres e futebol no Brasil: entra sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física. São Paulo, v.19, n.2, p.143-51, abr./jun. 2005

SALVINI, Leila; MARCHI JÚNIOR, Wanderley. Notoriedade mundial e visibilidade local: o futebol feminino na Revista Placar na década de 1990. Revista Sociologias Plurais (Paraná), v.1, n. 1, p. 144-159, 2013.


Créditos da imagem destacada: Revista Placar. Reprodução.


Como citar este artigo:

PESSANHA, Nathália F. “Lugar de Mulher”: discursos proibitivos sobre o futebol de mulheres. História da Ditadura, 26 jul. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/lugardemulher-discursosproibitivossobreofuteboldemulheres. Acesso em: [inserir data].


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