Marighella: o protagonismo da ação e a incapacidade de digerir derrotas
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  • Foto do escritorWallace Andrioli

Marighella: o protagonismo da ação e a incapacidade de digerir derrotas

Todo filme histórico remete também ao seu próprio contexto de realização, mas alguns são mais escancarados nas aproximações entre passado e presente, incorporando-as à própria diegese. Isso pode se dar por meio de anacronismos propositais ou da metalinguagem, por exemplo. Marighella (2019), de Wagner Moura, adaptação da biografia escrita pelo jornalista Mário Magalhães, não chega a esses extremos, apesar de em dois momentos específicos apostar em recursos próprios do cinema antinaturalista de inspiração brechtiana, como a quebra da quarta parede pelos atores, que se comunicam diretamente com o espectador. Ainda assim, é um filme que olha para a década de 1960 com os pés fincados na segunda metade dos anos 2010. E essa é, ao mesmo tempo, a principal fonte de energia para uma narrativa de alta intensidade e sua maior fragilidade.


Cartaz do filme Marighella. Reprodução.

Marighella talvez seja o mais furioso filme de ficção sobre a ditadura militar brasileira desde Pra Frente, Brasil (1982), de Roberto Farias. E aqui, novamente, a análise contextual ajuda na compreensão dessa comparação. Farias buscou se aproveitar de um momento de abertura política para testar os limites do que poderia ser dito e mostrado, incluindo diversas referências a episódios e personagens conhecidos dos anos mais duros da ditadura, ao mesmo tempo em que criou escudos narrativos contra possíveis avanços censórios, como a atribuição da tortura a grupos paramilitares desvinculados do Estado. Incomodou e foi interditado, porque mesmo o que estava nas entrelinhas era visceral demais, cutucava, provocava o regime vigente.


Moura, por sua vez, trouxe para Marighella uma agressividade própria de um olhar do presente de indignação com a naturalização da barbárie dentro de marcos políticos democráticos e a retomada escancarada de códigos, linguagens e princípios daqueles anos autoritários. Seu filme é fruto direto do Brasil pós-2013, desses tempos de culto desavergonhado à imagem de um torturador da ditadura militar, de assassinatos políticos e de ascensão do bolsonarismo. Para o diretor, diante do horror desse passado presentificado, não é mais possível ser parcimonioso com a história brasileira. Não dá para filmar a ditadura e o enfrentamento a ela em meios tons.


Isso se manifesta muito claramente em como Marighella lida com a violência. Há crueza e urgência nessas cenas, nos termos de um cinema policial latino-americano contemporâneo, do qual Tropa de Elite (2007), de José Padilha, é um expoente incontornável. No entanto, Moura não abre espaço para a complacência com torturadores nem para inserções irônicas que de alguma forma amenizem a brutalidade do registro. O Delegado Lúcio, personagem inspirado em Sérgio Fleury, e seus subordinados proferem piadas durante a aterradora sequência da sevícia de Jorge, versão fílmica de Virgílio Gomes da Silva. Mas elas surgem integradas na diegese, e não numa voz over como a do Capitão Nascimento, que apela constantemente pela cumplicidade do espectador. Moura articula os elementos da narrativa de modo que não dê para rir com o delegado Lúcio sem ser um psicopata sádico.


O ator Bruno Gagliasso interpreta o delegado Lúcio. Reprodução.

Nesse sentido, Marighella funciona também como a conclusão de um processo de dissociação da imagem do ator-diretor de seu personagem mais conhecido e controverso. O protagonista de Tropa de Elite e Tropa de Elite 2 transformou Moura em ícone pop, vocalizador de bordões repetidos pelo público e de uma visão de mundo coincidente (ao menos no primeiro filme) com a da extrema-direita que emergiria nos anos seguintes. Mas o ator sempre foi de esquerda e seus posicionamentos públicos nesse sentido geraram a ira de muitos que cultuavam sua imagem travestida com a farda preta do Bope. A realização de uma cinebiografia raivosa de um comunista revolucionário considerado o inimigo número 1 da ditadura militar brasileira pode ser vista, portanto, como uma tentativa de Moura de exorcizar o Capitão Nascimento.


O diretor faz uma breve participação quase no final de Marighella, como um militar que ouve de Lúcio o relatório falacioso da morte de Carlos Marighella. Mas só a voz de Moura está em cena, sua imagem permanece sempre no contracampo. Voz prontamente reconhecível, já que associada à narração em over de Tropa de Elite. Nessa intertextualidade discreta, mas possível de ser traçada na fluidez cronológica que atravessa Marighella, é como se, com uma pequena cena, o diretor localizasse o Capitão Nascimento no aparato de repressão da ditadura militar, demarcando o lugar que, no seu entender, o personagem ocupa no espectro político-ideológico e na história do Brasil.


Cena das gravações do filme Marighella. Reprodução.

A intensidade da narrativa de Marighella é construída não só na abordagem de temáticas políticas do passado que alcançam o presente, mas principalmente nas escolhas estilísticas de Moura. Não importa somente o que se filma, mas também como se filma. O diretor se esmera bastante na criação de sequências de ação envolventes, que abrem no filme uma dimensão de imprevisibilidade talvez inesperada numa cinebiografia histórica de um personagem bastante conhecido. Nesses momentos, não há um burocratismo comum a outros filmes brasileiros sobre o período da ditadura, que tendem a tratar de forma quase protocolar as aparições públicas das organizações revolucionárias (assaltos, sequestros etc.), em detrimento do conteúdo político-dramático.


Carlos Marighella reagiu à paralisia do Partido Comunista Brasileiro (PCB) diante do golpe de 1964 e da instalação da ditadura militar criando uma organização guerrilheira radical, horizontalizada e pautada pela ação direta. A melhor forma de concretizar isso em filme é justamente privilegiar essa dimensão, dar protagonismo aos atos que eram centrais para a Ação Libertadora Nacional (ALN) na luta contra o regime. Moura aposta na câmera na mão e em planos-sequências que energizam os acontecimentos registrados, unindo a temática política ao estilo urgente próprio de um cinema de grande apelo popular.


Marighella só perde força em seus momentos finais e justamente pelo mau uso do mesmo olhar presentificado para o passado que ajudou a munir o filme de uma energia contagiante. Após a morte do protagonista, Moura e o corroteirista Felipe Braga se recusam a encerrar a narrativa num tom melancólico, de derrota, e buscam uma solução na inclusão de três cenas bastante problemáticas. Na primeira, o guerrilheiro Branco, inspirado em Joaquim Câmara Ferreira, aparece recebendo a notícia do assassinato de Marighella preso a um pau de arara e responde com a afirmação de que os torturadores são os verdadeiros perdedores naquela situação; corta para Bella, outra revolucionária, empunhando uma metralhadora enquanto olha diretamente para a câmera, anúncio da continuidade da luta. Por fim, já durante os créditos de encerramento, os atores que interpretam o núcleo da ALN mais próximo de Marighella aparecem cantando o hino nacional, numa performance que se quer catártica.


A questão é que as mortes de Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Virgílio Gomes da Silva e tantos outros representaram sim uma derrota terrível para as esquerdas brasileiras. A ditadura destroçou a luta armada nos anos seguintes e, mesmo enfraquecida no final dos anos 1970 e início da década de 1980, conseguiu impor uma transição pactuada para a democracia, que poupou torturadores de punições. Hoje os militares sustentam no poder um verme portador dos mesmos valores de Fleury, Ustra et caterva. Toda a fúria anterior de Marighella se dilui na promessa abstrata de uma vitória futura e o filme termina como um grito inócuo de “não passarão!”, enquanto os inimigos passam e passam e passam.


Créditos da imagem destacada: Seu Jorge. Reprodução.


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