“Novo Ensino Médio”: perpetuação das desigualdades educacionais no Brasil?
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  • Foto do escritorCarolina Maciel

“Novo Ensino Médio”: perpetuação das desigualdades educacionais no Brasil?

Em 2017, sob o manto golpista do governo ilegítimo do presidente Michel Temer (2016-2018), o sistema educacional brasileiro passava por mais uma interferência que viria relembrar a nós, historiadoras e historiadores, os debates sobre a precarização e a descaracterização das Ciências Humanas e, em nosso caso especifico, do ensino de História. Com a Lei nº 13.415/2017, o Novo Ensino Médio (NEM) veio alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB nº 9.394/96) e, com isso, estabeleceu uma mudança na estrutura do Ensino Médio.


Estudantes secundaristas organizaram manifestações em todo o país pela revogação do Novo Ensino Médio. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil. Wikimedia Commons.

A Lei foi implementada em 2022 pelo governo de extrema-direita de Jair Messias Bolsonaro e uma das mudanças que trouxe foi ampliação do tempo mínimo do estudante na escola, que passou de 800 para 1.000 horas anuais (até 2022). Este aumento, porém, foi acompanhado pela proposta de uma nova organização curricular, o que nos afeta mais diretamente, já que a nova grade, mais flexível, diminui o tempo de matérias básicas, como História, por exemplo, priorizando os chamados itinerários formativos, que teriam o objetivo de direcionar os alunos para áreas de interesse em um futuro vestibular. Entre as críticas direcionadas à nova configuração do Ensino Médio, portanto, está a de que o aumento da carga horária das aulas de língua portuguesa e matemática, aliado à implementação dos itinerários formativos,[i]


Neste texto, não me limito a criticar a implementação do Novo Ensino Médio e o ataque às Ciências Humanas e ao ensino de História, em específico, mas proponho uma reflexão sobre como essas transformações, adaptações, exclusões e perseguições são parte de um projeto neoliberal de país que está diretamente relacionado à produção de um modelo de juventude que pense e critique menos e trabalhe cada vez mais.


A Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1971: Educação Moral e Cívica e o Ensino de História


Desde o final da década de 1980, o Ensino de História vem sendo tema de inúmeras análises, dentre as quais cabe destacar os trabalhos de Selva Guimarães Fonseca, Circe Bittencourt, Marcos Antônio Silva, Thomas Tadeu Silva, entre outros.[ii] Refletir e repensar a descaracterização das Ciências Humanas no Brasil ao longo do período ditatorial (1964-1985) pode, nesse sentido, iluminar o debate em relação ao Novo Ensino Médio, uma vez que a questão envolve mais do que o estudo dos currículos e abordagens voltados para o Ensino da História e das Humanidades em geral. Nesse período, buscou-se a construção de um ideal de juventude que, em muitos sentidos, vem sendo retomado no presente, como evidenciam a defesa, por parte de determinados segmentos da sociedade, do retorno da disciplina de Educação Moral e Cívica[iii] nas escolas ou a valorização dos colégios cívico-militares.[iv]


É importante lembrar, nesse sentido, que a Educação Moral e Cívica não foi uma exclusividade dos governos ditatoriais após 1964. Desde os primeiros projetos para construção do Brasil como nação, ainda no Império, podemos encontrar o princípio do que seria a base para o estabelecimento dessa disciplina, como afirma Wanessa Kern de Abreu (2008, p. 25):


Para os dirigentes imperiais importava: Ordenar, Civilizar e Instruir. A atitude de colocar ordem estava estreitamente vinculada à manutenção da mão-de-obra escrava, em defesa dos interesses da chamada boa sociedade. Seguindo o exemplo das nações europeias, ditas "civilizadas", o Império do Brasil deu importância particular à organização pública através da publicação de Leis. Esse fato é essencial para entendermos a formação da nação brasileira e sua relação com a escola e com as disciplinas escolares. 

Já na década de 1930, no governo de Getúlio Vargas, a disciplina foi excluída da grade curricular das escolas secundárias (FILGUEIRAS, 2006) e, em seu lugar, o Ensino Religioso passou a ser o principal instrumento destinado à formação moral dos estudantes, sob a tutela da doutrina católica.


Nos anos 1970, após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), sancionada em 11 de agosto de 1971, disciplinas como História e Geografia foram bastante afetadas, pois passaram por uma fusão que gerou a disciplina de Estudos Sociais. Com a inserção da Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB), o ensino de História, Geografia, Sociologia e Filosofia, disciplinas formadoras das Ciências Humanas, foram amplamente prejudicadas, tendo suas cargas horárias reduzidas em favor das disciplinas ligadas às Ciências Exatas e Tecnologias, o que repercute na perda da autonomia e individualidade na construção de um pensamento crítico, que tende a ser suprimido e esvaziado. A resolução nº 8 do CFE, de 1 de dezembro de 1971, diminuiu a atuação de disciplinas das Ciências Humanas, incorporando nos currículos de 1º e 2º graus as matérias de Comunicação e Expressão (língua nacional), Estudos Sociais (Geografia, História e OSPB) e Ciências (Matemática e as Ciências Físicas e Biológicas)[v], prejudicando a fomentação de uma crítica mais reflexiva sobre a sociedade no ambiente escolar.



A fusão das disciplinas de Humanidades – em especial as de História e Geografia em Estudos Sociais – não foi uma originalidade do período militar, pois “a ideia de incluir os Estudos Sociais no currículo escolar surgiu no Brasil no final da década de 1920, no bojo do movimento conhecido por Escola Nova”(SANTOS, 2011, p. 5). Essa junção visava não só à formação de futuros cidadãos dóceis e compartícipes dos valores da ditadura, mas também à desqualificação dos docentes. Tal desqualificação era agravada pela criação dos cursos de curta duração que formavam superficialmente os profissionais, usando como justificativa a falta de professores para o ensino de Estudos Sociais.


Quando analisamos o processo de formulação e implementação do NEM, podemos encontrar diversas semelhanças com a reforma que culminou com a implementação da LDB de 1971, como o entendimento do objetivo que esses três anos finais da formação escolar têm por concretizar. Para a legislação dos anos 1970, o ensino do 2º grau deveria favorecer, além de uma base educacional comum, uma formação especial profissionalizante. Ou seja, a fase final da caminhada estudantil do jovem deveria focar numa educação técnica, com a qual o sujeito já obteria uma habilitação para o trabalho. Ellen Cristine dos Santos Ribeiro, Thiago Chaves Sabino, José Deribaldo Gomes dos Santos e Betânea Moreira Moraes (2020, p. 1035) analisaram esse tipo de ensino voltado ao abastecimento do mercado de trabalho, promovido atualmente, nas escolas profissionalizantes do Ceará. Os autores destacam que elas têm como objetivo a profissionalização do trabalhador-estudante que recebe, cada vez mais cedo, uma “[...] ‘habilitação’ para exercer uma função precária atrelada à necessidade material de batalhar pelo sustento do dia a dia.”


E o que o Novo Ensino Médio tem a ver com isso?


Para compreendermos as críticas que estão sendo elaboradas ao NEM, é importante entender do que se trata a proposta, fazendo um paralelo com o formato anterior. O NEM, como dito acima, estipula o aumento da carga horária de oitocentas para mil horas anuais, de modo que, ao final dos três anos do Ensino Médio, o aluno deve ter cursado três mil horas entre disciplinas da base comum, eletivas e itinerários formativos. Esse aumento de carga horária que, se implementado, corresponderá a um dia letivo de 7 horas/aula para além das novas disciplinas e da permanência em tempo integral, visa a formação técnica do aluno. O formato de educação em tempo integral pode parecer a resposta para problemas como o da alimentação – já que os estudantes fariam as três refeições diárias na escola – ou o da segurança, uma vez que se supõe que dentro da escola os jovens estariam distantes da violência cotidiana. Porém, não podemos esquecer que no Brasil existe um grande quantitativo de estudantes trabalhadores. Com a proposta de que todas as escolas funcionem em tempo integral, esses sujeitos não poderiam conciliar os estudos com o trabalho. Assim, a ideia de combate à evasão escolar cai por terra.


No Novo Ensino Médio, as disciplinas, que antes eram individuais e trabalhadas em sua autonomia, são agrupadas nas áreas de conhecimento integradas: Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (História, Geografia, Filosofia e Sociologia), Linguagens e suas Tecnologias (Artes, Educação Física, Língua Inglesa e Língua Portuguesa), Ciências da Natureza e suas Tecnologias (Biologia, Física e Química) e, por fim, a área da Matemática e suas Tecnologias (Matemática).


Nesse ano, em 2023, os estudantes passaram a poder escolher seu próprio percurso no Ensino Médio com os itinerários formativos, que, em tese, permitem que eles privilegiem áreas pelas quais tenham um maior interesse profissional. Digo em tese pois as escolas – em especial as públicas – podem não ter uma infraestrutura que suporte o “cardápio” dos itinerários formativos. Imaginemos, por exemplo, que, ao invés de uma turma inteira assistir à mesma aula de Geografia das 7h às 7h50, ela será dividida em turmas menores que deverão estar em aulas diferentes no mesmo horário, exigindo que a escola tenha mais salas e mais profissionais para comportar as escolhas dos estudantes. Em escolas menores, com menos recursos, o tal do “cardápio” não será tão variado como é pintado. Dessa forma, a formação desses jovens não estará em pé de igualdade com a fornecida aos estudantes das escolas privadas como se arroga a proposta do NEM. Assim, perpetua-se a desigualdade educacional no país.


Outra crítica contundente ao NEM diz respeito à falta de formação específica dos profissionais da educação para dar conta desses itinerários. E aqui uso da minha experiência em sala para dar um exemplo. Neste ano, para completar minha carga horária na escola, eu, que sou historiadora, estou com dois itinerários formativos: um de Ciências Humanas e Linguagens e outro de Ciências Humanas e Ciências da Natureza. No primeiro, dou aula sobre os gêneros textuais e as formas de comunicação; no segundo, a proposta é trabalhar a legislação ambiental – ou seja, são conteúdos que não estão no meu escopo de formação. Por mais que nós, historiadores, trabalhemos com os gêneros textuais em nosso ofício e que possamos entender sobre legislação ambiental, uma aula pensada e executada por um profissional com a formação específica terá um maior aproveitamento. Para além desses problemas, que por si só já são graves, não podemos esquecer da diminuição da carga horária das disciplinas da base comum. Temos relatos de que, em algumas escolas, essas disciplinas foram completamente excluídas do currículo.


Por esses e outros pontos elencados neste texto, no dia 15 de março, em várias cidades do país, milhares de estudantes foram às ruas pedir a revogação do NEM. O protesto organizado pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), de acordo com reportagem da Carta Capital, mobilizou cerca de 150 mil estudantes que, com palavras de ordem, firmaram-se contrários ao modelo do NEM.


Junto aos protestos de estudantes e educadores, nas redes sociais surgiram vários abaixo-assinados em prol da revogação do NEM. Uma dessas campanhas, a #RevogaNovoEnsinoMédio, encabeçada pelos deputados e deputadas federais Glauber Braga (PSOL-RJ), Sâmia Bonfim (PSOL-SP), Fernanda Melchionna (PSOL-RS) e outros membros da bancada da Educação do PSOL, já conta com mais de 169 mil assinaturas. Nas palavras da deputada Sâmia Bonfim, “o ‘novo ensino médio’ não tem nada de novo. É a mesma precarização que tentam nos empurrar faz anos. É impossível melhorar a educação brasileira oferecendo condições precárias de trabalho aos educadores e diminuindo carga horária de disciplinas que formam o pensamento crítico.”


Mas nem só de críticas vive o NEM. Alguns especialistas, como aponta uma reportagem do portal G1, publicada em fevereiro deste ano, afirmam que o projeto “[...] aponta para a direção correta, com organização curricular por área do conhecimento e busca da interdisciplinaridade, mas defende a necessidade de ajustes.” Outra novidade do novo modelo educacional é a utilização de metodologias ativas, com a produção de projetos, oficinas e atividades práticas, que seriam mais atrativas aos jovens frente às aulas expositivas. Um exemplo dessas metodologias são as disciplinas de Projeto de Vida e Formação para a Cidadania, que pretende traçar e desenvolver – em conjunto com os discentes – planos e metas para o futuro profissional, assim como refletir sobre sua própria personalidade e seu lugar no mundo.


O projeto de vida traz a possibilidade de arquitetar, conceber e plasmar o que está por vir. O ser humano tanto pode idealizar uma bomba, quanto a cura para uma doença. As escolhas dos estudantes decorrem de influências intrínsecas e/ou extrínsecas e, no que tange ao apoio da escola, do compromisso de seus atores com a ética, a ciência tanto pode atender aos interesses mercadológicos, estando a serviço do consumo desenfreado, da competitividade e das guerras, quanto do coletivo, visando a paz, a lucidez e o bem comum.

Colocando em uma balança, as críticas contra o Novo Ensino Médio superam, com larga margem, os benefícios que seus entusiastas defendem que ele possui. A necessidade de mudança na estrutura do Ensino Médio é urgente, assim como urge a convocação dos setores que são a base da educação do Brasil para um diálogo franco e aberto sobre que rumos devemos tomar. Não será nenhuma imposição advinda de setores privados, aprovada por um governante golpista e implementada sob o manto da extrema-direita, que não leva em consideração o chão da escola e seus sujeitos, que irá resolver o problema do sistema educacional nacional. Não podemos pensar uma ressignificação do Ensino Médio sem refletir que nação queremos construir no futuro próximo.


 

Notas: [i] De acordo com o site do MEC, os itinerários formativos são “[...] o conjunto de disciplinas, projetos, oficinas, núcleos de estudo, entre outras situações de trabalho, que os estudantes poderão escolher no ensino médio.” resultou na diminuição ou mesmo supressão de disciplinas básicas, em especial as da área de Humanidades.

[ii] SILVA, M. A.; FONSECA, S. G. Ensino de História hoje: errâncias, conquistas e perdas. Revista Brasileira de História (Impresso), v. 60, p. 13-33, 2010. SILVA, M. A. Experiência do Ensino de História Em São Paulo. História: questões e debates, v. 4, n. 7, p. 231-242, 1983. FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história ensinada. Campinas: Papirus, 1993. Bittencourt, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2008. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. [iii] Conforme Antonio Carlos Will Ludwig, em texto publicado no jornal Folha de S. Paulo em 2019, “desde 2017, são elaboradas em redes escolares propostas relativas a ensino e à aprendizagem de moral e civismo”. No ano de 2020, o deputado Paulo Trabalho (PSL-GO) protocolou o projeto nº 7858/19, que propõe a inclusão das disciplinas de Educação Moral e Cívica nos currículos das redes públicas e privadas de ensino de Goiás. [iv] Durante o governo de Jair Bolsonaro, o Governo Federal, em parceria com os estados e municípios, começou a implementar o Programa Nacional das Escola Cívico-Militares. As críticas a essa forma de gerir a educação são de ordem constitucional, já que fere a gestão democrática garantida pela Constituição de 1988 e legitimada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

[v] BRASIL. Resolução nº 8/71, de 1º de dezembro de 1971, do CFE. Fixa o núcleo-comum para os currículos do ensino de 1º e 2º graus, definindo-lhe os objetivos e a amplitude. In: Documenta 133, Rio de Janeiro, dez, 1971.


Referências:

ABREU, Vanessa Kern de. A educação moral e cívica: disciplina escolar e doutrina disciplinar - Minas Gerais (1969-1993). 2008. 160 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Uberlândia/UFU, Uberlândia/MG, 2008.

BASILIO, Ana Luiza. Deputados pedem a revogação do cronograma do Novo Ensino Médio. Carta Capital, 17 mar. 2023.

FILGUEIRAS, Juliana Miranda. A educação moral e cívica e sua produção didática: 1969-1993. 2006. 222 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.

FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história ensinada. Campinas: Papirus, 1993.

LUDWIG, Antonio Carlos Will. Como recuperar a educação moral e cívica sem lesar a democracia. Folha de S. Paulo. 14 abr. 2019.

RIBEIRO, Ellen Cristine dos Santos, SABINO, Thiago Chaves, SANTOS, José Deribaldo Gomes dos, MORAES, Betânea Moreira. A educação profissional no Ceará sob a crítica marxista: história, política e especificidades. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 1017-1039, abr./jun. 2020.

SANTOS, Emily; CALGARO, Fernanda; TENENTE, Luiza. Novo Ensino Médio: ajustar ou revogar? Entenda em 7 pontos o debate que envolve alunos e MEC. G1, 16 fev. 2023.


Como citar este artigo:

MACIEL, Carolina. “Novo Ensino Médio”: perpetuação das desigualdades educacionais no Brasil?. História da Ditadura, 15 mai. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/novo-ensino-medio-perpetuacao-das-desigualdades-educacionais-no-brasil. Acesso em: [inserir data].

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