O ensino da ditadura militar: entre celebrações e batalhas de memória
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  • Foto do escritorIsabella Villarinho

O ensino da ditadura militar: entre celebrações e batalhas de memória

A proposta desta coluna é realizar algumas reflexões sobre o ensino de História, com ênfase nos regimes autoritários do século XX e em temas sensíveis. Quais ferramentas podemos utilizar em sala de aula? Como compreender as batalhas de memória envolvendo passados presentes? Acredito que a sala de aula deva ser um espaço de troca constante entre alunos e professores, para que através do conhecimento possamos enfrentar os embates atuais em meio a polarizações, reducionismos e negacionismos.


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O presidente Jair Messias Bolsonaro não esconde seu apreço por certos eventos e personagens históricos. Desde sua carreira como deputado federal, Bolsonaro faz questão de elencar heróis e celebrar eventos de nossa história recente, como o golpe civil-militar de 1964. A internet se tornou uma plataforma eficiente para Bolsonaro e seus partidários disseminarem discursos negacionistas a respeito do golpe civil-militar e das violações aos Direitos Humanos praticadas pelo Estado durante o regime.


Em seu canal no Youtube, podemos encontrar diversos vídeos do então parlamentar celebrando o golpe de 1964, soltando rojões em frente ao Ministério da Defesa e posando ao lado de faixas com dizeres como “O Brasil não é Cuba. Parabéns aos militares 31/03/64” e “A Defesa saúda o 31/03/64”. Em sessão plenária de 27 de março de 2013, o então deputado pelo Partido Progressista defendeu que os militares foram estimulados pela imprensa, Igreja Católica, mulheres em passeatas nas ruas, empresários e ruralistas para que assumissem os rumos do país, evitando que o Brasil fosse “comunizado” e transformado numa grande Cuba. Para Bolsonaro, o 31 de março de 1964 deu início a um período de 21 anos em que o país teve pleno emprego, prosperidade, respeito à família e à liberdade.


Os vídeos relacionados ao tema se tornaram recorrentes a partir de 2011, quando Bolsonaro passou a atacar a instauração da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Em audiência pública no Seminário Direitos Humanos e Minorias – assim como em entrevistas –, o deputado relatou por diversas vezes sua oposição à CNV, acusando a instauração como parte de uma manobra do governo para disseminar mentiras – uma vez que os integrantes da comissão eram nomeados pela presidente Dilma Rousseff – e não apurar os crimes cometidos por “terroristas”: sequestro de autoridades, justiçamentos, roubos para financiar a luta armada e sequestro de aviões.


A postura de Bolsonaro sobre o período não mudou após a entrega do Relatório Final da CNV e nem mesmo no cargo de presidente da República. Em 2019, o presidente tentou retomar cerimônias de celebração ao golpe a partir da aprovação da leitura de uma ordem do dia em alusão à data. No entanto, foi impedido pela justiça de realizar tais ações. Nos dois últimos anos, as Ordens do Dia alusivas ao 31 de março de 1964 foram assinadas pelo antigo ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva (2019-2021), e apresentam consonância à retórica do presidente. Em 30 de março deste ano, o ministro da Defesa, Walter Souza Braga Netto, assinou a ordem do dia em alusão aos 57 anos do “movimento” de 31 de março.


Braga Netto faz referência à polarização política da Guerra Fria, comparando as ditaduras fascistas e nazistas com a ditadura stalinista, a eminência de um golpe comunista no Brasil pelo governo João Goulart, bem como a participação de setores da sociedade civil em manifestações pela intervenção militar. Diferentemente das ordens anteriores, Braga Netto finalizou o texto afirmando a importância do movimento de 1964 para a trajetória histórica do país, e a necessidade de assim compreendermos e celebrarmos os acontecimentos. Neste sentido, as Forças Armadas são colocadas em evidência, como defensoras da democracia que responderam ao clamor popular na missão de pacificar e desenvolver o “país do futuro”. No entanto, pela primeira vez se toca na questão de celebrar o golpe e a ditadura. Este ano, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região derrubou a decisão que impedia a celebração do golpe militar em abril do ano passado.


Para além das manifestações do Governo Federal e do Ministério da Defesa, discursos saudosistas e celebratórios circulam entre diversos setores de nossa sociedade, e são articulados por pessoas comuns – inclusive por jovens estudantes. Neste sentido, um dos grandes desafios impostos aos professores de História na atualidade é: como ensinar sobre a ditadura militar em tempos de celebrações e negacionismos? Ou ainda, como estabelecer a construção de um conhecimento crítico sobre a ditadura quando o negacionismo e a celebração fazem parte do repertório dos próprios alunos?


Primeiramente, devemos levar em consideração que a construção do conhecimento histórico não se dá apenas em sala de aula e que a história ensinada na escola é apenas uma das formas de contato dos alunos com a disciplina. Verena Alberti destaca os diferentes níveis de registro da história que oferecem conteúdos distintos e que, muitas vezes, entram em conflito: o livro didático, a história cotidiana presente nas memórias coletivas e a história acadêmica. Além disso, a história produzida pela indústria do entretenimento incide diretamente sobre a história cotidiana. Neste sentido, os discentes já possuem um repertório próprio construído ao longo de suas relações sociais, seja através de uma memória coletiva elaborada pela sociedade, por meio de seu ambiente familiar ou até mesmo de filmes, livros e vídeos que chegam a eles através de diversas plataformas.


Photo by Sam Balye on Unsplash.

A história acadêmica apresentada no ambiente escolar muitas vezes difere do conhecimento construído pelos discentes e até mesmo da memória coletiva. Ademais, esse embate também está diretamente ligado ao contexto político do momento. Assim como afirma Cristiani Bareta, a história escolar é uma construção social produzida por elaborações e reelaborações constantes de conhecimentos que são produzidos a partir das relações e interações entre as culturas escolar, política e histórica. Neste sentido, a escola também é um espaço onde as sociedades disputam as memórias possíveis sobre si mesmas, e, neste sentido, é representante das batalhas de memória sobre determinados eventos históricos sensíveis e traumáticos.


Conforme aponta a historiadora Caroline Silveira Bauer, a memória da ditadura se constitui em objeto de constante disputa, uma vez que a memória sofre mudanças dependendo do presente que está articulada, interagindo com os interesses políticos e preocupações do momento de sua enunciação. Para Bauer, o controle militar e de seus partidários civis sobre o processo de redemocratização e a Lei de Anistia contribuiu para a construção de memórias e imposição do esquecimento sobre o terror e a atuação das Forças Armadas durante o regime. Na visão da autora, as Forças Armadas podem ser identificadas como uma “comunidade de memórias” na construção e difusão de relatos sobre o passado ditatorial.


Nesse embate, vale ressaltar a tentativa do ex-ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, em publicar entre 1985 e 1988 o projeto Orvil – As tentativas de tomada do poder, em oposição as denúncias relatadas no livro “Brasil: Nunca Mais”. A obra “Rompendo o silêncio”, publicado em 1987 por Carlos Alberto Brilhante Ustra – ex-comandante do Doi-Codi de São Paulo e coronel do Exército – também representa uma tentativa do Exército em combater o crescimento da narrativa sobre os grupos de resistência e os crimes da ditadura em um contexto de redemocratização e fim da censura.


A instituição possui uma retórica própria que sofreu poucas alterações desde a redemocratização, apostando em distorções e idealismos para justificar as violações aos Direitos Humanos cometidas, utilizando-se da teoria dos dois demônios ao equiparar a violência estatal à violência revolucionária da esquerda. Quando afirmam a existência da repressão e tortura, justificam-nas como excessos ou como respostas à ação da esquerda armada e de seus atos de terrorismo. No entanto, a violência estatal não atingiu apenas a esquerda armada, fazendo parte do cotidiano de grupos os mais diversos de nossa sociedade.


A Comissão Nacional da Verdade e as pesquisas acadêmicas dos últimos anos representam importante papel no sentido de demonstrar como a repressão também foi dirigida a setores mais amplos da sociedade – indígenas, trabalhadores do campo, membros do clero, população LGBTQIA+, movimento favelado, movimento negro e organizações femininas – e alterou até mesmo a vida cotidiana das pessoas comuns. A relevância e necessidade de se compreender melhor a diversidade do perfil dos atingidos pela repressão é inegável, ainda mais levando em consideração as atuais batalhas pela memória sobre o período, em que grupos conservadores tendem a negar ou minimizar o papel do Estado na tortura e repressão.


No entanto, mais que sensibilizar os discentes acerca da sistemática violação aos Direitos Humanos – apresentando como eram organizados os órgãos de vigilância e repressão ou como funcionava a tortura e o desparecimento forçado de pessoas –, se faz necessário trazer para o centro do debate como os discursos negacionistas são estruturados, quem e porque os transmitem e de que maneira a verdade foi distorcida neles. A utilização de fontes históricas neste sentido é essencial, e o material produzido pela Comissão Nacional da Verdade pode auxiliar os professores na elaboração das aulas sobre o período. No canal do Youtube da CNV, existem diversos depoimentos gravados em vídeo que apresentam relatos não apenas das vítimas, como também de agentes dos órgãos da repressão durante o regime, como Carlos Alberto Brilhante Ustra.


Para além de incorporarmos as novas pesquisas para o centro do debate em sala de aula e denunciar os crimes cometidos pela ditadura, outros pontos devem ser igualmente considerados. Concordo com Verena Alberti quando afirma que um dos maiores perigos enfrentados pelos professores de História e seus alunos está na possibilidade de ficarem imobilizados diante do horror de acontecimentos traumáticos como o Holocausto. A função da denúncia é fundamental, mas ela não deve ser a única ferramenta em sala de aula: é preciso refletir criticamente e demonstrar a necessidade de problematizar como foi possível uma ditadura se manter no poder durante 21 anos. Para além da repressão e isolamento dos grupos de oposição armada, devemos compreender que o regime contou como uma base de apoio social não só no momento do golpe, mas ao longo dos governos militares.


Desta forma, também precisamos enfrentar que a permanência de discursos negacionistas sobre violações aos Direitos Humanos não está restrita ao presidente da República e seus partidários em posições de destaque no governo. Pelo contrário, o silêncio e o esquecimento sobre a repressão e as diversas formas de apoio ao golpe e à ditadura fazem parte de uma memória social compartilhada por amplos setores da sociedade. Para o historiador Daniel Aarão Reis, parte da sociedade brasileira, a partir da redemocratização, encontrou um caminho seguro e apaziguador para lembrar do passado ditatorial: a ótica da sociedade resistente. Com a promulgação da Lei de Anistia e a ausência de investigação, julgamento e condenação dos ditadores e agentes da repressão, foram valorizadas versões memorialísticas acerca da resistência e defesa de valores democráticos por parte das esquerdas e instituições da sociedade civil. Foi elaborado um pacto democrático para a conciliação nacional com o passado, no qual predominou a versão de que “a sociedade brasileira apenas suportara a ditadura, como alguém que tolera condições ruins que se tornaram de algum modo inevitáveis, mas que, cedo ou tarde serão superadas”.


Manifestantes na Marcha da Família com Deus pela Liberdade (1964). Correio da Manhã. Arquivo Nacional. Wikimedia Commons.

De acordo com Caroline Silveira Bauer, a promulgação da Lei de Anistia fez parte de um conjunto de iniciativas empreendidas pelo Estado para suprimir as evidências da ditadura e da repressão. Através da divulgação de informações falsas ou versões diversionistas, do controle e censura sobre os meios de comunicação, da Lei de Anistia e da excrecência de decretos-reservados que não eram publicados no Diário Oficial, a ditadura tentava controlar a informação, contribuindo para a conformação de determinada memória social. Para a autora, essas medidas levaram a imposição do esquecimento e silenciamento por parte do Estado, gerando a ausência do reconhecimento social das experiências dos ex-presos e perseguidos políticos e dos familiares de mortos e desaparecidos políticos. A Lei de Anistia, baseada no estigma da cordialidade, apontava para o silenciamento das vítimas, e a reconciliação com o passado ditatorial para construir o novo tempo democrático.


Portanto, ao final da ditadura, ganhou destaque não somente o mito da sociedade resistente, como também o mito da sociedade como vítima dos acontecimentos. Para Bruno Groppo, o mito da vítima inocente consiste em apresentar a sociedade como “uma vítima impotente de eventos e forças sobre os quais ela não tinha nenhum controle e, portanto, pelos quais ela não tem nenhuma responsabilidade”. Desta forma, construiu-se no período da redemocratização uma memória que nega qualquer relação estabelecida entre a sociedade e a ditadura, ou seja, a sociedade não teve participação alguma tanto no golpe, como durante os 21 anos de ditadura civil-militar.


Neste sentido, as contradições do processo de redemocratização e promulgação da Lei de Anistia contribuíram para a elaboração de memórias difusas e esquecimentos sobre a ditadura militar, o terrorismo de Estado e as formas de apoio social ao regime. Desde os anos 1980, foram diversas as etapas do processo de construção da memória sobre o período. No atual processo de memória sobre a ditadura, é possível identificar uma narrativa que rompe com o mito da sociedade como vítima inocente ou resistente, e reivindica não apenas o retorno dos militares ao poder, mas o combate à esquerda no campo político, associada à corrupção e crise econômica.


No entanto, este discurso veiculado por parte da sociedade civil não deve ser visto apenas como resultado da inflexão política iniciada em 2010 com a eleição da presidente Dilma Rousseff e ascensão de Bolsonaro ao poder. Pelo contrário, a construção de uma tardia Comissão Nacional da Verdade, mais de 20 anos após o fim do regime, assim como a ausência de julgamento e punição de seus perpetradores também deve ser considerada na análise sobre o crescimento de narrativas negacionistas e tendenciosas que reduzem a ditadura à um período de crescimento econômico e esforço do governo no combate aos “grupos terroristas de esquerda”.


Como compreender o crescimento dessas narrativas negacionistas e saudosistas? Primeiramente, devemos levar em consideração na análise sobre a ditadura militar a participação de amplos setores da sociedade civil, identificando as diversas bases de apoio social que possibilitaram a permanência dos militares no poder, deixando de lado explicações simplistas que reduzem os indivíduos a meros espectadores impotentes ou vítimas manipuladas e cegas aos acontecimentos. Setores da elite intelectual também construíram relações heterogêneas e não lineares com o regime. Instituições como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), embora sejam identificadas na memória coletiva como fortalezas no embate contra o regime militar e pela reconstrução da democracia, apresentam ambivalências em suas trajetórias.


De acordo com Denise Rollemberg, tanto a OAB e CNBB apoiaram o golpe civil-militar em 1964, enquanto a ABI, embora não tenha apoiado formalmente o golpe, demonstra em sua trajetória contradições e embates internos na sua relação com o regime: por um lado, defendia a luta corporativa em defesa da liberdade de imprensa; ao mesmo tempo, prestava homenagens a lideranças do governo e se omitia na denúncia de assuntos específicos. Além de jornalistas, diretores, vice-reitores e professores universitários também desempenharam papéis diversos, resistindo, aderindo ou se acomodando diante da política de modernização autoritária implementada pelo regime. A pesquisa do historiador Rodrigo Patto Sá Motta demonstrou como as atitudes da comunidade universitária em relação ao Estado ditatorial não eram simples e lineares, e que o combate aos focos de subversão e a instituição de uma pauta repressora poderiam ser, para este grupo, a oportunidade de se livrarem de adversários e concorrentes nas universidades.


Somado a isto, projetos ligados à perspectiva da História Pública e voltados à divulgação científica sobre o regime também podem auxiliar os professores de História. Assim como o História da Ditadura, sites como Brasil Nunca Mais Digital, Memórias Reveladas (Arquivo Nacional), Memórias da Ditadura, Acervo Vladimir Herzog, Aparecidas – Centro de Referência em Mulheres na Ditadura Civil-Militar (UFRGS), Vozes da Ditadura (UFRGS) e o Ditamapa – Lugares de memória da ditadura de 1964 apresentam ferramentas incríveis, com documentos, vídeos, e diversas fontes que podem ser utilizadas durante as aulas, contribuindo para a democratização do conhecimento e a conscientização sobre um passado que não passa.


Neste sentido, estabelecer um debate amplo e crítico com os alunos é fundamental para combater os discursos negacionistas sobre o regime militar. A reflexão sobre a construção da ambivalente e heterogênea base de apoio de setores da sociedade à ditadura – bem como sobre as maneiras como o cotidiano da sociedade foi impactado pela repressão e vigilância – pode ser uma ferramenta interessante para compreendermos não apenas a permanência de discursos saudosistas e celebratórios, como também a continuidade das violações aos Direitos Humanos por parte do Estado e os silêncios e esquecimentos por parte da sociedade sobre a ditadura civil-militar.


Créditos da imagem destacada: Jair Bolsonaro, então deputado, comemora o golpe de 1964. Reprodução YouTube.


 
  1. Cf: Rubens Valente (2017), Leonilde Medeiros (2018), Paulo Cesar Gomes (2013), James Green e Renan Quinalha (2014), Rafael Gonçalves e Mauro Amoroso (2014), Joana Pedro e Cristina Wolff (2010), Isabella Villarinho Pereyra (2020)

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