O que a casa nos permite dizer sobre a escrita da história?
top of page
  • Foto do escritorGabriel Pochapski

O que a casa nos permite dizer sobre a escrita da história?

Nos últimos meses, vivenciamos uma situação que permite recordar o conto “Casa tomada”, de Julio Cortázar. Fruto de um pesadelo ocorrido em 1946, o conto descreve como a habitação de dois irmãos foi invadida por algo misterioso, que passou a se apoderar de cada um dos cômodos. À medida que o emblemático ser se espalhava pela casa, tornou-se perceptível uma mudança nas relações dos protagonistas com o tempo, tanto pela busca de uma permanência da rotina, quando emergiram tempos de alastramento, de temores e de afazeres sobrepostos, como pela presença de um receio sobre o futuro, marcado pela incerteza sobre tudo o que ficou nos cômodos já tomados.

É justamente diante desses diferentes tempos que podemos perceber uma supressão dos espaços, pois a casa, outrora repleta de divisões, portas e paredes, passou a ter os seus limites dissipados até que restasse um único compartimento: o quarto. Embora este cômodo possa ser visto como uma última tentativa de manutenção da estabilidade cotidiana, Cortázar nos mostra que nenhum espaço pôde permanecer o mesmo, já que a casa foi inteiramente invadida. Para os dois irmãos restou a fuga, mas e a nós, o que resta?

Há meses que o exercício de escrita da história se encontra acompanhado pela presença constante do vírus, sempre articulado com uma proliferação de tempos que não nos permitem sair do lugar. Adentraram em nossas vidas temporalidades constituídas pelas taxas de contágio, pelo anseio da distribuição da vacina, pelo acúmulo de páginas abertas na internet ao final do dia e, de forma assombrosa, pelo horizonte de banalização das milhares de mortes em nosso país.

Muito se falou sobre como este “evento-mundo” rompeu fronteiras e ultrapassou os limites geográficos, mas é preciso observar que os diversos tempos que atravessamos também se inserem em uma tendência anterior de superação dos espaços, tal como assinalou Doreen Massey a partir dos fluxos da globalização, do desenvolvimento dos meios digitais e do avanço do neoliberalismo nas três últimas décadas. Todavia, o cenário de mudanças que ainda vivemos implicou em uma experiência específica para o campo historiográfico recente: o de ter a casa como a condição incontornável para a escrita da história. Não é novidade que as habitações tenham sido ou sejam a superfície na qual os historiadores e historiadoras produzem seus textos, pesquisas e análises. Ainda que nas décadas passadas os espaços residenciais fossem um ponto de interseção entre o expediente nas universidades, arquivos, escolas, bibliotecas e outros locais de investigação e ensino, é inegável que o domínio virtual produziu efeitos profundos nas relações entre as casas e os demais ambientes de trabalho. Contudo, se os aparatos digitais promoveram novos arranjos espaciais no âmbito profissional, não podemos ignorar que o contexto pandêmico impulsionou essa dinâmica ao transformar o lugar em que residimos na espacialidade que circunscreve a nossa prática.

Aprendemos com Michel de Certeau que a escrita da história se encontra ligada a um lugar social, a uma instituição que organiza e legitima as narrativas que produzimos sobre o passado. No entanto, quando afirmo que há uma questão especializante para a escrita da história, não me refiro apenas a esse lugar social abordado por Certeau, mas sim à dimensão propriamente política dos lugares em que se desenrola a nossa vida, dos lugares que estão ao nosso redor, com especificidades que demandam a nossa problematização.


Xavier Corberó's labyrinthine home near Barcelona. Reprodução.

Há décadas que a história da vida privada ou a história das relações de gênero chamam a atenção para a importância de desnaturalizarmos os objetos que estudamos e tudo aquilo que consideramos mais próximo de nós. Nesse sentido, os espaços estão longe de serem neutros ou homogêneos, já que as suas formas físicas e simbólicas retêm múltiplas temporalidades que nos permeiam, nos constituem e nos inquietam. Seja em uma mesa da sala ou da cozinha, em um cantinho do quarto, ou mesmo em um cômodo específico repleto de livros – cenário de lives para uns e espaço utópico para outros –, a habitação como lugar de produção do saber histórico atual necessita ser interrogada. Escrever a história no local em que residimos é compartilhar o mesmo espaço com companheiros(as), com crianças, com familiares doentes ou com aulas e atividades remotas. Mas vimos que estar em casa também nos colocou em contato com um número sufocante de informações, bem como intensificou as demandas do produtivismo acadêmico, quando a velocidade de trabalho e a realização simultânea de diferentes tarefas instauraram uma sensação constante de esgotamento. Apesar do panorama dos últimos meses sinalizar como a vida em casa ganhou um ritmo acelerado e frenético, devemos lembrar que os contornos dessa crise já haviam sido anunciados há algumas décadas.


Rodrigo Turin, por exemplo, aponta que o estudo encomendado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 1997, apresentou um entrelaçamento do ensino e da produção do conhecimento com a formação de um indivíduo definido pela flexibilidade e pela aceleração dos fluxos de mercado. O autor entende que a adoção acadêmica e educacional de parâmetros neoliberais, pautados na orientação concorrencial, na necessidade de adaptação ininterrupta e no signo da inovação eficiente estão diretamente ligados aos ataques contra disciplinas como a história, tida como dissonante de um processo que se afirma como “inevitável”.

A intensificação desses modelos não se encontra afastada do espaço em que habitamos e a partir do qual estabelecemos as condições do trabalho historiográfico. Afinal, a casa e todas vivências que nela ocorrem foram alvos de um investimento significativo dos discursos que moldaram a racionalidade neoliberal, como indicou Michel Foucault ao analisar os argumentos desenvolvidos por economistas como Wilhelm Röpke, Friedrich Hayek ou Gary Becker, na metade do século XX. Afirmar que as superfícies residenciais são um refúgio de tais impactos é desconsiderar como a lógica do rendimento e do empresariamento de si não somente incidem na constituição subjetiva, como também difundem tempos cíclicos e a-espaciais. Um resultado disso é a ideia de que todos os instantes devem ser utilizados para agregar valor ao indivíduo em detrimento de seus pares, tidos como concorrentes. Do mesmo modo, se estabelece uma gradual anulação das espacialidades, tendo em vista o rompimento das fronteiras que historicamente separavam as esferas do trabalho, do repouso ou da convivência.


Assim como os personagens de Cortázar, poderíamos facilmente dizer que a casa está tomada, como se todos sentíssemos os mesmos efeitos, sem levar em conta os marcadores raciais, econômicos e de gênero que delineiam os espaços em que estamos inseridos. Ora, a própria superfície em que muitos de nós, historiadores homens e brancos, estamos no momento em que lemos este texto pode ser tornar o ponto de partida para problematizarmos as condições históricas dos lugares que ocupamos e os posicionamentos que permanecem configurando o nosso ofício.


Júlio Cortázar. Divulgação.

Em tempos demarcados pela elaboração de condutas neoliberais, Margareth Rago, Maurício Pelegrini e outros autores apresentam aberturas que inserem a dimensão histórica na crítica desse presente, sobretudo ao ressaltarem que a racionalidade neoliberal não só promove uma sobrecarga no trabalho feminino, mas também constitui modos de sujeição e subjetivação que se apoiam em uma suposta valorização da liberdade e da autonomia. Essas nuances de gênero ganharam contornos ainda mais acentuados com as mudanças percebidas no contexto de confinamento social, quando a escrita da história passou a ocorrer em um momento no qual os limites entre o trabalho acadêmico e doméstico foram dissolvidos.

Semanas após o início da onda pandêmica no Brasil, entre abril e maio de 2020, o espaço habitacional foi o ponto-chave do estudo realizado pelo projeto Parent in Science, que se utilizou de informações fornecidas por 3.345 acadêmicos(as) de diversas áreas em todo o país. Alguns dos resultados indicaram que apenas 4,1% das pesquisadoras afirmou conseguir realizar o trabalho acadêmico em casa sem sobrecarga, o que não pode ser considerado como uma novidade decorrente do confinamento, mas sim como reforço de um quadro historicamente predominante no campo científico. Os dados também são enfáticos na percepção de que gênero, raça e presença paterna relacionam o espaço residencial com as desigualdades estruturais na academia, localizando as pesquisadoras negras como as mais afetadas em suas áreas de atuação. Mesmo que este estudo sinalize as nuances de um arranjo racista e misógino que não é recente, ou que não está restrito às atividades científicas e educacionais, tais informações são importantes porque ressaltam como a vida privada se articula com os fatores que sustentam os ideários produtivistas e a distribuição da carga de trabalho.

A casa, portanto, está localizada nesses atravessamentos que dizem respeito ao ofício, à vida e à sociedade em que se situam os historiadores e as historiadoras. Se uma das características do neoliberalismo é o apagamento da dimensão histórica, a interrogação dos espaços onde escrevemos e moramos pode se tornar um suporte para não esquecermos que estamos envolvidos por uma rica complexidade temporal. De Michelle Perrot a Cheikh Anta Diop, de François Béguin a Sérgio Buarque de Holanda, de Beatriz Colomina a Peter Gay, as moradias foram superfícies privilegiadas enquanto objetos de estudos, bem como aberturas imaginativas potentes para o saber histórico em diferentes temas e lugares.

Como resposta ao empobrecimento temporal vigente, a casa nos suscita aberturas ao constatarmos que as nossas ações coabitam com uma variedade de fluxos, rupturas, continuidades e descontinuidades. Peter Pál Pelbart afirma que dificilmente somos co-presentes ao nosso presente, pois os espaços agregam tempos muito distintos entre si. Residimos em cômodos cujas peças e mobílias inventadas há séculos compartilham o lugar com aparelhos fabricados nos últimos meses. Consumimos alimentos de origem milenar armazenando-os na geladeira, criada em 1913. Manifestamos sentimentos definidos como privados no passado e, no mesmo instante, acompanhamos a espetacularização da vida íntima compartilhada nas redes sociais.

Da mesma maneira, é importante enfatizar como as habitações se conectam com muitos tempos que não passam, com permanências que dizem respeito a problemas como a desigualdade social, a violência sexual e de gênero, a questão agrária e a falta de moradias dignas em nosso país. Como um encontro de durações breves ou longas, a casa foi o palco de enunciados sobre as aglomerações, sobre os cuidados com a saúde ou sobre os eventos e projetos acadêmicos remotos, iniciativas estas que se espalharam pelo país. A centralidade política da casa nos coloca a pensar naqueles que a deixaram, tanto nos indivíduos que precisaram sair em busca da sobrevivência diária, apesar do risco eminente, ou, em contrapartida, naqueles que lotaram as ruas exaltando torturadores e proferindo negacionismos históricos, como ocorreu na Avenida Paulista em maio de 2020.

Inserir a temporalidade no próprio espaço em que escrevemos a história é uma operação difícil, pois produz sensações que nos afetam, que se relacionam com os locais que percorremos e com aquilo que é o mais indissociável de nós: o nosso corpo. O lugar onde estamos e o momento incerto em que vivemos nos lembram que os acontecimentos são sempre inseparáveis da presença corpórea. É nesse direcionamento que Durval Muniz de Albuquerque Júnior descreve a necessidade de elaborarmos narrativas que olhem para os sofrimentos, para os afetos e para as sensibilidades como manifestações dos corpos no tempo.

Não tenho dúvidas de que a casa abriga os nossos corpos, mas ela igualmente nos faz recordar que habitamos o mundo. Levar em conta essa grande espacialidade da história não significa adentrarmos em universalismos, e sim percebermos que nunca estivemos sós, já que compartilhamos os tempos com outros seres vivos, vegetações, climas, rios e mares. Diferentemente dos irmãos descritos por Cortázar, a casa é parte do nosso universo, não o nosso todo. Para além de um ato arbitrário, refletir sobre os espaços em que estamos e a partir dos quais realizamos a nossa prática se torna mais do que um tarefa alternativa, trata-se de um empenho fundamental.

  1. CORTÁZAR, Julio. Bestiário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 131-133.

  2. MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 118-148.

  3. POTTS, John. The New Time and Space. London: Palgrave Macmillan, 2015. p. 51-74.

  4. CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. p. 66.

  5. TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Zazie Edições: pequena biblioteca de ensaios (online), 2019. p. 21-35. Disponível aqui.

  6. FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 203.

  7. RAGO, Margareth; PELEGRINI, Mauricio (Org.). Neoliberalismo, feminismos e contracondutas: perspectivas foucaultianas. São Paulo: Intermeios, 2019.

  8. STANISCUASKI, Fernanda, et al. Gender, race and parenthood impact academic productivity during the COVID-19 pandemic : from survey to action. bioRxiv, 2020. (Versão preprint). Disponível aqui.

  9. PELBART, Peter Pál. Rizoma temporal. São Paulo: Ecidade, 2020.

  10. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da história. São Paulo: Intermeios, 2019. p. 39-56.



951 visualizações

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page