top of page
  • Foto do escritorNashla Dahás

‘Pode uma colaboradora falar?’ Notas sobre um nó ético, político e historiográfico no Chile

Luz Arce e Marcia Alejandra Merino lideram um grupo de mulheres que ocuparam cargos diretivos em organizações de esquerda no Chile a partir de meados da década de 1960. Arce integrou o Partido Socialista (PS) e chegou a atuar como membro da segurança de Salvador Allende em determinado período do governo da Unidade Popular (1970-73); já Merino se tornou dirigente do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), organização conhecida pela adoção da estratégia política da luta armada desde sua origem. Ambas foram presas em 1974, cerca de um ano após o golpe que instaurou a ditadura de Augusto Pinochet. “Quebradas” no interior de centros de tortura, foram convertidas em colaboradoras: elas participaram pessoalmente da identificação de companheiros\as que viriam a ser torturados\as, assassinados\as ou desaparecidos\as. Após anos exercendo essa atividade, Arce e Merino foram integradas à repressão como agentes oficiais da Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), o principal órgão de informações e repressão da ditadura pinochetista.


La Epoca, 3 ago. 1993, p. 22. Archivo de Referencias Críticas / Colección General. Biblioteca Nacional Digital.

Um parêntese importante sobre a noção de “quebra”: a cientista política Pilar Calveiro, sequestrada pela ditadura argentina na década de 1970, reconstitui o termo – utilizado pelas esquerdas revolucionárias em todo o Cone Sul à época – enquanto uma estratégia intencional e recorrente desses regimes, associada à delação. Em suas palavras:


[...] se sequestrava um guerrilheiro ou uma pessoa periférica ligada à guerrilha. Ela era torturada de todas as maneiras possíveis até tornar-se uma colaboradora; sempre havia uma informação útil para entregar. Alcançando-se a chamada ‘quebra’ antes dos prazos que as organizações impunham para dar por detido algum integrante, se obtinha dados que ajudavam a obter novas detenções como a localização de casas e assentamentos guerrilheiros. Assim começou a prática do ‘dedo’. Alguns dos sequestrados patrulhavam com os militares as ruas das cidades apontando companheiros. Era quase impossível defender-se desse tipo de delação (CALVEIRO, 2013).

Em 1992, já em contexto democrático, durante o governo do presidente Patricio Aylwin e por ocasião da Comissão da Verdade e Reconciliação chilena, Marcia Merino, conhecida no MIR como La flaca Alejandra, convocou uma conferência de imprensa, pediu perdão publicamente e confessou todos os serviços prestados ao poder militar. No ano seguinte, Merino redigiu seu testemunho e publicou o livro Mi verdad: más allá del horror, yo acuso. Menos de um ano mais tarde, o documentário La Flaca Alejandra, Vidas y muertes de uma mujer chilena, dirigido por Carmen Castillo e Guy Guirard, trouxe à tona as questões do colaboracionismo, do perdão e da culpabilidade de mulheres como Merino. De forma não enunciada, o documentário também discute a importância da “quebra” das mulheres militantes via tortura para o êxito da repressão pinochetista.


Luz Arce foi detida e levada à DINA em 17 de março de 1974. Quebrada após sucessivas sessões de tortura, tornou-se colaboradora. Como no caso de Marcia Merino, Arce também passou a fazer o reconhecimento de militantes nas ruas, estratégia repressiva que contribuiu para a desarticulação das organizações revolucionárias no Chile. Quase vinte anos depois, em meio à Comissão da Verdade e Reconciliação chilena, ofereceu seu depoimento como forma de colaborar com publicização de crimes cometidos de 1973 a 1990. Também redigiu El infierno, relato pessoal sobre sua trajetória, cujo capítulo mais recente seria sua conversão ao catolicismo.


Reedição de 2017 pela Tajamar Editores. Original: El Infierno. Santiago, editorial Planeta, 1993.

Feitas essas brevíssimas apresentações de duas mulheres importantes na história da ditadura chilena iniciada em 1973, pretendemos identificar diferentes formas pelas quais suas biografias e mais especialmente o tema da colaboração vêm sendo tratados pela literatura histórica dedicada ao tema desde a década de 1990 – por questões de tempo e espaço, bem como da natureza de divulgação deste texto, selecionamos 2 artigos e 1 capítulo de livro como campos de observação. Com isso, esperamos encontrar percepções menos comuns do agenciamento histórico em experiências-limite, como foi o caso das ditaduras latino-americanas. Além disso, nos interessa compreender se e como as lentes de gênero vêm sendo mobilizadas nesses capítulos da história recente.


Apenas 3 anos depois da publicação das autobiografias de Luz Arce e Marcia Merino, a escritora Diamela Eltit escreveu Cuerpos nómadas (1996), em que analisou detidamente aqueles testemunhos, proferiu dura reflexão sobre a memória histórica das violações cometidas durante a ditadura e teceu comentários singulares sobre gênero e história. Diamela se tornaria uma das grandes referências da literatura chilena preocupada em compreender a experiência vivida e herdada do período de exceção.


Para Eltit, o silêncio com que foram recebidas as autobiografias pela sociedade chilena seria um efeito da política neoliberal, de sua forte propaganda do individualismo, no interior do qual foram caladas as contradições éticas do passado recente. De forma acrítica, os corpos pós-ditadura iriam se adaptando às novas violências da economia de mercado e do seu “eterno presente”. A autora se pergunta o que fazer diante da confirmação pública da delação sob situação de tortura? Outras de suas perguntas se conformam em problemas historiográficos ainda hoje:


Desde que lugar poderia eu julgar a situação de mulheres violadas, torturadas, encarceradas em um meio feroz que eu, desde outro lugar, também havia habitado? Acaso a leitura intelectual do discurso emocional de duas mulheres não quebra o necessário compromisso de gênero de uma com a outra? Por que não esquecer esses discursos impuros, fazendo como se não existissem? De certo modo, não parece leviano que uma escritora que nunca militou em partido político se converta em leitora da crise feroz de duas mulheres militantes? (Eltit, 1996)

A decisão, contudo, reside em empreender a leitura também como um ato político, um gesto político outro, uma “espécie de militância em favor dos sentidos” a partir da relação entre poder, corpo, gênero feminino e ideologia que, segundo Diamela Eltit, estariam conectados com os poderes que então emergiam ligados à democracia chilena. A seguir, Diamela retoma trechos das autobiografias de Marcio Merino e Luz Arce na chave de um esforço radical de ambas a fim de constituírem-se como sujeitos em espectros políticos distintos, mas igualmente tomados pelo masculino como categoria cultural e dominante. O problema dos dois livros giraria, assim, em torno do dilema corpo-identidade. Resumidamente, entre os anos 70-73, as duas jovens teriam colocado seus corpos a serviço da emergência de uma guerra possível, quebrando seu histórico estatuto cultural de inferioridade física em nome de um porvir coletivo igualitário. A partir da captura, porém, no espaço ambíguo da clandestinidade, sem possibilidades de prestígio social e político, longe de todos os seus antigos chefes e companheiros, é a figura dominante do oficial dos serviços de inteligência que começaria a ganhar destaque em seus horizontes possíveis, a partir dos quais os corpos daquelas mulheres poderiam novamente adquirir uma dramática pulsão de vida.

No contexto da redemocratização, os testemunhos são enquadrados por Diamela Eltit como protegidos pela Lei de Anistia de 1978, data a partir da qual nenhuma das duas relata acontecimentos significativos, passíveis de penalização. Por trás da coragem denotada pela exposição pública da colaboração, a escritora sugere, por fim, uma “assombrosa vocação para habitar os espaços de poder”. A título de inspiração à leitura, vale dizer que Diamela Eltit envereda ainda pelos caminhos sensíveis de significar a experiência de tortura e quebra, além de dialogar com vertentes do discurso teórico feminista da época a respeito da noção de traição.


Capa de Jamais o fogo nunca (2017), livro mais recente de Diamela Eltit e objeto de análise da coluna multimídia O que disse Eurídice, publicada no História da Ditadura.

Quase uma década depois, a teórica cultural chilena Nelly Richard refletiu sobre os relatos autobiográficos de Luz Arce e Marcia Merino em “Tormentos e obscenidades”, capítulo de seu Crítica da Memória (2010). Tratava-se então de um momento latino-americano marcado pela recolocação do testemunho como problemática, após anos de um enquadramento que Richard classifica como neoliberal e em prejuízo do coletivo mediante a espetacularização do íntimo. Na ocasião, a escritora reafirmou o silêncio dos meios de comunicação chilenos a respeito da publicação dos relatos das duas colaboradoras, acusando a grande imprensa de tecer manobras de encobrimento dos militares implicados em casos criminais. Na verdade, os meios de comunicação teriam desqualificado ambos os livros ora os identificando com a compulsão verbal de mulheres que não sabem se calar, ora como obras que mereceram o silêncio em razão de seus conteúdos. Para a escritora, no entanto, as autobiografias cruzam diferentes linhas de conflitos ideológicos, morais, políticos, sexuais e éticos em torno de corpos e de nomes cuja centralidade, no momento da publicação, produzia um segundo ato desde a sua sinistra extorsão em condição de tortura: corpos desaparecidos que deveriam sair da violência do anonimato; executores anônimos cujos nomes e apelidos deveriam ser descobertos.

Diferente das perguntas colocadas por Diamela Eltit a respeito do tratamento mais adequado que, como leitora, deveria dedicar aos relatos, para Nelly Richard, parte das dificuldades residia também na natureza do testemunho proferido naquelas circunstâncias específicas:


Podemos confiar definitivamente em que esta verdade publicada é toda a verdade, se elas mesmas reconhecem haver confessado muitas vezes apenas “meias verdades” para salvaguardar terceiros implicados? Que relação com os terceiros implicados mantém ou ocultam essas confissões ao delatá-los, se é que, fazendo-o, violam o princípio segundo o qual a clandestinidade dos nomes dos culpáveis requer ser protegida com manobras de ocultamento que se disfarçam de prudência judicial? Podemos nos assegurar de que as versões autobiográficas que reclamam o perdão desde a confissão do engano não nos distraem do peso da verdade de outras traições menos visibilizadas que estas, e quiçá mais coletivas, mais vergonhosamente nacionais? (Richard, 2010, p. 103-04). 

Nelly Richard oferece uma leitura das obras de Luz Arce e Marcia Merino a partir dos signos do engano e da traição que se estenderiam por todo o Chile da transição como uma espécie de pacto oculto que liga certos nomes do novo contexto aos segredos das violações de direitos humanos – termo não utilizado por Eltit, vale mencionar – resguardados pelo anonimato. Esta seria uma das obscenidades daquele momento: Arce e Merino representavam a sombra da dúvida sobre os reclamos de transparência da máquina de comunicação da transição.


Ao denunciar as astúcias teóricas do gênero autobiográfico, como a superposição entre começo e final, Nelly Richard se ocupa da “conversão moralizante” que enxerga nas narrativas de Luz Arce e Marcia Merino. Tratar-se-ia de uma reprogramação familiar e íntima da condição feminina, estratégia voluntária ou não de reinserção no Chile da transição em meio ao protagonismo da Igreja e do tradicionalismo católico. Depois de tortuoso caminho, ambas estariam de volta ao dogma da fé e às convenções de gênero, pagamento-expiação ideológico e sexual.


Panfleto de convocação para manifestação pública e artística pela memória, contra o esquecimento e o perdão das violências e crimes de gênero cometidos na edificação “Venda Sexy”, em Santiago, durante a ditadura pinochetista.

Diante da escassez de publicações por autores\as chilenos\as diretamente relacionadas às autobiografias ou trajetórias de Marcia Merino e Luz Arce, entre outras mulheres militantes de organizações socialistas e\ou revolucionárias nos anos de 1970, especialmente a partir de 2010, selecionamos o artigo de Samya Dahech, vinculada à Universidade de Tours, intitulado “Memória ficcional de mulheres colaboracionistas. Rumo a uma reabilitação”, publicado em 2018, na revista América, através da plataforma OpenEdition Journals. Ainda assim, o artigo não analisa os relatos de Merino e Arce, mas parte do silêncio chileno sobre os livros de ambas. Segundo informa Dahech, as obras seriam impossíveis de se encontrar fisicamente no Chile, onde Marcia Merino e Luz Arce continuariam condenadas à exclusão e ao exílio. A pesquisadora aponta, contudo, um contexto aberto desde os anos 2000, no qual emergiram diversas práticas artísticas no Chile em torno da colaboração feminina, entre as quais enquadra os romances Carne de perra (2009) de Fátima Sime, e La vida doble (2010) de Arturo Fontaine. Samya Dahech explora essas representações para tentar compreender se a revisão literária desses eventos pode constituir um caminho de problematização da relação vítima-carrasco.

De acordo com a autora, o circuito de produção artística que toma os depoimentos de Merino e Arce como base, e que também inclui as peças Medusa (2010) de Ximena Carrera e Mina antipersonal (2013) de Claudia Di Girolamo, alcançaram êxito incomparável à recepção dos relatos em 1993, tornando-se espaços de sensibilização e de mediatização. Longe de se apresentar como neutras, essas produções encarnariam a tendência à patrimonialização que vigorou no Chile a partir da década de 2010, cujo exemplo mais emblemático seria a construção do Museu da Memória e dos Direitos Humanos naquele ano, com o propósito oficial de “dignificar as vítimas e suas famílias e estimular a reflexão e o debate sobre a importância do respeito e da tolerância, para que aqueles fatos nunca mais se repitam”.

Em geral romantizadas, segundo Samya Dahec, as releituras das autobiografias das duas militantes convertidas em colaboradoras durante a ditadura exploram de modo bastante simplificado as violências de gênero, reproduzindo uma atmosfera de pura dominação masculina psicológica e física, alcançada por meio do estupro, da tortura e da submissão. Nesse sentido, um elemento-chave dos dois romances apontado pela pesquisadora como inexistente dos depoimentos de 1993 diz respeito à “síndrome de Estocolmo” e se dá através da ênfase em uma relação romântica e sexual entre a vítima e seu algoz como explicação para a colaboração. Em grande medida, o sucesso de crítica dos romances é atribuído por Dahech a esses deslocamentos das questões políticas para um espaço psicológico a-histórico que reforça identidades de gênero tradicionais.


Incorporação mexicana do movimento chileno Un violador en tu camino iniciado em Valparaíso, no Chile, em novembro de 2019. Wikimedia Commons.

Em novembro de 2019, a canção Un violador en tu camino foi entoada por um coletivo de mulheres em Valparaíso, no Chile, contra os estupros realizados por policiais e relatados por mulheres desde os protestos antineoliberais iniciados no mês anterior. Estavam por vir três anos de revolta social em que se reivindicaria desde a liberdade de presos políticos até a exigência de uma nova Constituição, livre da era Pinochet. Nesse ínterim, diversos órgãos de imprensa noticiaram a brutalidade da repressão policial, que deixou grande número de manifestantes com lesões oculares permanentes. Em 4 de julho de 2021, Elisa Loncon Antileo, professora de linguística e ativista da comunidade mapuche, foi eleita presidente da Assembleia Constituinte, encarregada de redigir a nova Carta chilena. Durante os trabalhos da Constituinte ficou definida a paridade entre mulheres e homens entre os\as constituintes, além da efetiva participação de minorias e povos indígenas, entre mapuches, aymara, rapa nui, quechua, atacameño, diaguita, colla, kawashkar, yagán e chango. Em 4 de setembro do ano seguinte, um plebiscito rejeitou a nova Constituição com um resultado de 61,87% pela reprovação ('Rechazo') e 38,13% pela aprovação ('Apruebo').

No país em que capítulos decisivos da história das esquerdas latino-americanas vêm se realizando desde a ascensão e derrubada de Salvador Allende na década de 1970, as violências de gênero ainda são parte fundamental das estratégias de repressão às revoltas sociais, além de um nó ético, político e historiográfico.


 
  1. Título faz um trocadilho usando a pergunta que nomeia a obra de referência dos estudos pós-coloniais, Pode o subalterno falar?, de Gayatri Chakravorty Spivak (2010).



REFERÊNCIAS:



CALVEIRO, Pilar. Política y/o violencia. Una aproximación a la guerrilla de los años setenta, Buenos Aires, Siglo XXI Ed., 2013.


CASTILLO, Carmen. La Flaca Alejandra. Vidas y muertes de uma mujer chilena. Chile, França, 1994. Documentário em /60'.



ELTIT, Diamela. Cuerpos nómadas. Hispamerica, 25(75), 3-16, 1996.

GUZMÁN, Nancy. Ingrid Olderock: La mujer de los perros. Santiago: Ceibo Ediciones, 2014.


LAZZARA Michael J. Chile in Transition. The Poetics and Politics of Memory. Gainesville: University Press of Florida, 2006.


______. Luz Arce: después del infierno. Editorial Cuarto Próprio, 2008.


LEWIN, Miriam; WORNAT, Olga. Putas y guerrilleras. 1a ed. Ciudad Autónoma de. Buenos Aires: Planeta, 2014.


NAVARRETE, Sandra. Testimonio, Género y Memoria: Apuntes para un debate actual21 por Barría. Dossier Chile - A la sombra de la catástrofe. Nuevas miradas sobre el testimonio chileno, n. 21 – 05/2019.



RICHARD, Nelly. La problemática del feminismo en los años de la transición en Chile. Estudios Latinoamericanos sobre cultura y transformaciones sociales en tiempos deglobalización. Buenos Aires. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales Editorial/Editor. 2001.


ROJAS, Carolina. Chile rejeita nova Constituição. Piauí, 2 set. 2022.


WEINSTEIN, Eugenia; LIRA, Elizabeth. Trauma, duelo y reparación. Una experiencia de trabajo psicosocial en Chile. Santiago: Fasic/Editorial interamericana, 1987.


Como citar este artigo:

DAHÁS, Nashla. ‘Pode uma colaboradora falar?’ Notas sobre um nó ético, político e historiográfico no Chile. História da Ditadura, 21 dez. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/pode-uma-colaboradora-falar-notas-sobre-um-no-etico-politico-e-historiografico-nochile. Acesso em: [inserir data].


298 visualizações

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page