Reforma do Ensino Médio: uma crítica necessária.
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  • Foto do escritorGraciella Fabricio da Silva

Reforma do Ensino Médio: uma crítica necessária.

Atualizado: 13 de abr. de 2022

No dia 16 de fevereiro de 2017, o presidente Michel Temer sancionou a Medida Provisória (MP) 746, também conhecida como Reforma do Ensino Médio. Desde o anúncio da reforma, em setembro de 2016, a medida suscitou críticas e reações de diversos setores da sociedade civil, principalmente entre aqueles que serão diretamente afetados – negativamente – com o novo modelo de ensino médio, ou seja, professoras, professores e estudantes.


A reforma foi rejeitada em sua totalidade pelos movimentos sociais ligados à educação que julgavam – corretamente – que, uma vez aplicada, ela promoverá a queda da qualidade do ensino, principalmente nas escolas públicas. A possibilidade de contratação de professores com “notório saber”, o fim da obrigatoriedade do ensino de Educação Física, Filosofia, Sociologia e Artes, a criação dos chamados “itinerários formativos” – a serem escolhidos pelos estudantes – e a ampliação da carga horária foram duramente criticadas. Uma das principais expressões de toda essa reação negativa frente à reforma foi a onda de ocupações de universidades e de mais de mil escolas em diversos estados do país. Segundo o movimento estudantil, a retirada dessas disciplinas do currículo representa um ataque ao pensamento crítico, uma vez que tais disciplinas promovem a reflexão crítica sobre a realidade social.[1]

A mobilização estudantil, somada às críticas feitas por instituições de pesquisa e de profissionais daquelas áreas, em sites, jornais e nas redes sociais, teve o efeito de reverter a não obrigatoriedade do ensino daquelas disciplinas. Na versão sancionada no dia 16 de fevereiro de 2017, afirma-se que “A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia.”[2] Entretanto, apesar dessas alterações na versão aprovada e sancionada, o teor da reforma permanece inalterado e as consequências de sua aplicação podem ser graves.

Segundo a propaganda do governo, a reforma trará benefícios às jovens e aos jovens de todo o país que alcançarem essa etapa de ensino. Ainda de acordo com a retórica governista, com a implantação do projeto, os estudantes terão mais autonomia, uma vez que poderão usufruir da oportunidade de montar o próprio currículo, de acordo com seus interesses. Porém, um olhar atento e crítico acerca de nossa realidade social e histórica permite levantar dúvidas sobre a eficácia prática do projeto do governo.

Em primeiro lugar, a própria possibilidade de escolha do itinerário formativo pelo corpo discente é enganosa. Pelo novo texto, é aberta aos sistemas de ensino a possibilidade de compor os seus currículos com um ou mais itinerários formativos. Ficando a critério dos sistemas de ensino a oferta dos componentes curriculares, não será possível afirmar que os jovens serão, de fato, os protagonistas nessa escolha, pois, uma interpretação ao pé da letra da lei não permite nem ao menos antever a participação estudantil na formulação das propostas curriculares. A decisão sobre o currículo já foi feita e não foi a juventude quem a fez. A situação tende a se tornar ainda mais grave nas escolas públicas. Diante do lamentável quadro histórico de sucateamento evidente da educação pública, é difícil supor que será ofertado ao aluno mais de um itinerário formativo. Sendo assim, o estudante não necessariamente irá fazer aquilo que lhe agrada, pois deverá, por uma limitação imposta pelos governos, seguir o itinerário escolhido pelos respectivos sistemas de ensino.

Também não há garantia de que as disciplinas, cujas presenças enquanto componente curricular obrigatório estavam ameaçadas e que retornaram à grade curricular – ou seja, Filosofia, Sociologia, Artes e Educação Física – serão ministradas em todas as três séries do Ensino Médio. Apenas Português e Matemática constam como disciplinas obrigatórias em todas as séries desta etapa da educação básica. Todas as demais (incluindo História, Geografia, Biologia, Química e Física) não serão mais obrigatórias no currículo desse nível de ensino. Elas poderão entrar como componente curricular dentro dos chamados “itinerários formativos”, agrupados dentro de grandes áreas generalizantes: linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissionalizante. Ainda assim, a permanência do estudo da História – bem como o de Geografia, Biologia, Física, Química, Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia – no currículo do Ensino Médio, mesmo que de forma não obrigatória, não é assegurada, uma vez que os componentes curriculares de cada uma dessas áreas generalizantes será definido de acordo com a Base Nacional Comum Curricular, um documento que ainda não está pronto e do qual, portanto, não sabemos o teor. Há um extenso debate sobre a BNCC ainda em curso, que abarca não somente questões relacionadas ao conteúdo das disciplinas que constarão da composição curricular (também ainda indefinida), mas também o sentido da elaboração mesma da base.

A exclusão dessas disciplinas do currículo se insere em um contexto de reestruturação das relações de trabalho no capitalismo contemporâneo, marcado pela retirada de direitos trabalhistas, tais como previstos na proposta de reforma da Previdência também pretendida pelo atual governo brasileiro. Assim, o quadro que se desenha à nossa frente é o de formação de uma massa de mão de obra com baixa qualificação, em função da deficiência imposta à sua formação escolar e com poucos direitos trabalhistas.

Além de tudo isso, é indispensável pensar na interdependência entre a reforma do Ensino Médio e a BNCC, embora muitas vezes o debate sobre ambas esteja sendo colocado de forma separada. Como o próprio texto da MP 746 (que agora adquiriu o formato de lei, após a sanção presidencial) indica, há uma estreita conexão entre as duas. Além do tema da composição curricular a ser trabalhada nas escolas e os seus conteúdos – por si só objetos de polêmicas –, a interligação entre ambas extrapola o campo pedagógico. Por trás dessas questões, há a pressão de interesses econômicos, expressos na participação de grupos ligados a grandes corporações empresariais, nacionais e internacionais, como o grupo Itaú-Unibanco, a Fundação Roberto Marinho, Bradesco, Fundação Lehmann, Todos pela Educação e Natura. Como demonstra Luiz Carlos Freitas, esses “reformadores empresariais”[3] agem junto a diferentes governos com o intuito de convencê-los de que a melhor solução para os problemas educacionais é a privatização do sistema público de ensino. Freitas ainda mostra que a aplicação desse receituário, marcadamente de orientação neoliberal,[4] não foi capaz de sanar os problemas educacionais, nem para frear o sucateamento das escolas da rede pública. Pelo contrário, tais políticas serviram para manter, ou até mesmo acelerar, esse processo e fazer avançar a privatização da educação pública. Tal foi o resultado de sua aplicação em países como Estados Unidos e Chile.

Experiências similares, aplicadas em âmbito nacional, nas esferas estaduais, também não demonstraram resultados satisfatórios. Cito, como exemplo, o estado do Rio de Janeiro. A partir de 2011, na gestão do então governador Sérgio Cabral Filho, foi implementado no âmbito da Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC) o chamado “Planejamento Estratégico”. O programa era composto por um conjunto de ações que incluíam: pagamento de remuneração variável aos profissionais da rede, bonificações em dinheiro pagas de acordo com o cumprimento das metas estabelecidas pela Secretaria de Educação; criação de um “currículo mínimo” a ser ensinado ao corpo discente da rede; avaliação bimestral do aprendizado dos alunos através do Saerjinho, integrante do Sistema de Avaliação do Estado do Rio de Janeiro; reforma das unidades de ensino e construção de outras novas. Aqui, tal como em outras realidades onde o modelo neoliberal foi aplicado, o resultado foi negativo para o ensino público. Apesar de ter havido, de fato, a construção de novas unidades, houve um encolhimento significativo da rede pública. Turmas, turnos e até mesmo escolas inteiras foram fechadas (“otimização” era o termo utilizado pelo governo). Segundo o professor Nicholas Davies,[5] entre 2006 e 2012, houve um queda de 34,7% no número de matrículas na rede pública estadual; por outro lado, verificou-se, nesse mesmo período, um aumento da rede privada na faixa de 22,5%. Os dados do Censo Escolar de 2016, recentemente divulgados, demonstram a manutenção dessa tendência de ampliação da rede privada de ensino: em nível nacional, o número de escolas de educação básica da rede privada aumentou 5,1% nos últimos oito anos. “A rede privada tem uma participação de 18,4% no total de matrículas na educação básica. Em 2008, era de 13,3%, um aumento de 5,1 p.p. no período.” (BRASIL, 2017, p. 10). A partir desse quadro, é possível inferir que essa redução da rede pública resultou na saída de diversos alunos dos bancos escolares, transformando-os, assim, em um exército de mão de obra barata e de formação precária. É importante frisar que esse aumento da rede privada de ensino não é obra do acaso, mas produto de uma política educacional elaborada sob forte influência dos setores empresariais com vistas a promover a expansão da rede em questão às custas da precarização da educação pública em todos os níveis de ensino, afetando, principalmente, a juventude pobre.

Ao se levar em consideração esses fatores de natureza política, econômica e ideológica, observamos, então, uma forte orientação de classe na elaboração do teor da reforma sancionada por Temer. Assim, no lugar de uma educação que permita o pleno desenvolvimento humano, com base em valores de igualdade e solidariedade, e que sirva como ferramenta à superação das mazelas sociais que atingem nossa sociedade, vemos aprovado um projeto educacional que apenas perpetua o atual quadro de exclusão, desigualdade e competitividade que atinge jovens e adultos da classe trabalhadora. A julgar pelo histórico supracitado da aplicação de políticas educacionais com orientação semelhante, os danos poderão ser maiores do que os benefícios.

Outros pontos também podem ser questionados. A reforma também prevê a modificação da carga horária dessa etapa da educação básica, com o aumento das atuais 800 para 1.400 horas anuais. Em pleno século XXI, as escolas públicas do país ainda sofrem com a precariedade da infraestrutura mínima para oferecer um ensino de qualidade. Isto ocorre em função de anos de sucateamento, imposto por décadas de redução de investimentos na área. Os estudantes que integraram o movimento de ocupação das escolas da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro em 2016 denunciaram a falta de laboratórios de informática e de ciências na maioria das escolas, assim como o fizeram estudantes das redes estaduais de São Paulo, Goiás, Ceará, Paraná e Rio Grande do Sul. A análise dos dados fornecidos pelo próprio governo federal no Censo Escolar de 2016[6] ajuda a reforçar essa denúncia: 17,3% das escolas ainda não possuem laboratório de informática, sendo a disponibilidade de computadores para uso administrativo superior à quantidade de computadores disponíveis para uso dos alunos; há ausência de laboratório de ciências em 48,7%; dos 77% das escolas que possuem quadra de esportes, 42,1% não possuem quadra coberta (outros 33% sequer possui quadra de esportes); 11,7% não possui biblioteca ou sala de leitura; 70,4% não possui auditório. A má gestão dos recursos que deveriam, em tese, ser destinados à educação (como o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica, o FUNDEB) e a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 55 (PEC 55), que prevê o congelamento dos investimentos de recursos públicos nos serviços para a população por 20 anos, agravam ainda mais esta situação. Além disso, a ampliação da carga horária afetará negativamente, mais uma vez, os alunos das escolas públicas, onde é comum a realidade de jovens que trabalham e estudam. O aumento da carga horária, sem levar em consideração essa realidade, expulsará da escola esse público que divide sua jornada de forma a conciliar trabalho e estudos. Isso possivelmente contribuirá para agravar um quadro já preocupante em relação a esse nível de ensino, que é a evasão escolar.

Há que se mencionar, ainda, a possibilidade de contratação de profissionais com “notório saber” para lecionar. As consequências diretas da admissão de profissionais sem formação específica nas áreas de atuação serão o rebaixamento da qualidade do ensino oferecido e o agravamento da desvalorização salarial do magistério. Outra situação alarmante que advirá desta reforma é o desemprego de milhares de jovens graduandos ou já graduados nas disciplinas excluídas do currículo. Diante do descaso histórico com a educação pública no Brasil, não é difícil imaginar que, uma vez implantada a reforma, dificilmente todos esses profissionais conseguirão se alocar no mercado de trabalho de suas respectivas áreas.

Um outro agravante é o fato de que algumas redes de ensino, como a estadual do Rio de Janeiro, estão encerrando gradativamente a oferta de outros níveis de ensino, como o ensino fundamental, de modo a se responsabilizar apenas pela oferta do ensino médio. Qual será o futuro de milhares de profissionais das disciplinas cuja oferta não será mais obrigatória em redes como a do estado do Rio de Janeiro? Há mais lacunas do que soluções na reforma do governo.

Antes de encerrar, é preciso atentar para a ausência de debate na forma como o projeto foi conduzido. A questão da reforma está sendo colocada de forma fragmentária, como se fosse possível elaborar uma política séria para o Ensino Médio separando o debate sobre currículo, das discussões sobre infraestrutura e financiamento. Essa fragmentação é nociva, pois limita a possibilidade de uma maior participação dos diversos setores que compõem a nossa sociedade, tornando-o unilateral. A partir do momento em que se chega a este ponto, o debate cede espaço à imposição e ao favorecimento de determinados grupos. Em uma sociedade organizada sob bases capitalistas como a brasileira, quem tende a ser favorecido com essa limitação é a classe dominante, formada pelos proprietários das grandes corporações dos ramos das finanças, das indústrias, de comunicação e do agronegócio, em detrimento da classe explorada e já desfavorecida, a dos trabalhadores.

Todos os grupos ligados à educação, que vivem o dia a dia desse setor, foram surpreendidos com a proposta e com o fato de que a participação dos atores diretamente afetados pela modificação do atual modelo de ensino foi mínima – se é que houve alguma. As vozes de estudantes e profissionais da educação que participaram direta ou indiretamente das ocupações das escolas e universidades (através da doação de aulas, alimentos e atividades culturais, por exemplo) foram ignoradas. Embora o governo tenha retrocedido no que tange à obrigatoriedade das disciplinas acima listadas, não houve diálogo e o resultado foi uma proposta de ensino de má qualidade. Isso revela o autoritarismo do modo de agir do atual governo. Mais uma vez, quem perde é a população, principalmente a mais pobre, que será mais uma vez prejudicada pela retirada de seus direitos mais básicos.

Em suma, o modelo de ensino médio elaborado pelo governo federal se alinha aos interesses da elite econômica e limita as possibilidades de conhecimento da juventude que tem, a partir de agora, suas escolhas, inclusive profissionais, limitadas por uma escolha já feita, não pelos estudantes e profissionais da educação, mas por poderosos grupos econômicos. Na prática, o que veremos é, no mínimo, a perpetuação de um quadro que já conhecemos: escolas nas quais faltam materiais básicos ao desenvolvimento do ensino e da aprendizagem, infraestrutura deficitária, profissionais mal remunerados e evasão escolar.

Graciella Fabrício da Silva é historiadora e professora de História.

Notas: 

[1] MELLO, Daniel. Estudantes protestam contra reforma do ensino médio, no centro de São Paulo. EBC, Agência Brasil. São Paulo, 18 out. 2016. Disponível em: Agência Brasil

[2] BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/1996). Seção IV, Artigo 35-A, parágrado 2º. Disponível em: Palácio do Planalto.

[3] FREITAS, Luiz Carlos de. “Reformadores empresariais da educação: Da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação.” Educação & Sociedade. Vol. 33, n. 119. Abril-Junho de 2012. Pp. 379-404. Outra referência importante sobre os impactos do neoliberalismo na educação é GENTILLI, Pablo (organizador). Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. 10ª edição. Petrópolis: Vozes, 2002.

[4] A característica central do neoliberalismo é a defesa do chamado “Estado mínimo”. Segundo o pensamento neoliberal, o Estado é um entrava ao pleno desenvolvimento econômico a atuação da esfera estatal deve ser reduzida ao mínimo para que a economia possa funcionar livremente. Na prática, essa linha teórica se traduz em políticas destinadas a reduzir os “gastos” com os serviços públicos mantidos pelo Estado e transferir a responsabilidade dos mesmos para a iniciativa privada. Desse modo, o papel do Estado é redefinido: ele deixa de ser o responsável pela garantia dos serviços essenciais à população (educação, saúde, moradia, transporte, etc.) e se torna mero gestor dos interesses privados, agindo no sentido de favorecer a expansão mercadológica da oferta daqueles serviços.

[5] SEPE-RJ. (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro). “Nicholas Davies denuncia: Educação básica estadual foi a que mais diminuiu no Brasil.” Disponível em: Seperj

[6] BRASIL. Ministério da Educação. “Notas estatísticas do Censo Escolar da Educação Básica 2016”. Disponível em: INEP

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