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Foto do escritorEduardo Castro

50 anos sem Josué de Castro


Autor de Geografia da Fome. O senhor Josué de Castro está morto. O senhor Josué de Castro, antigo embaixador do Brasil para Organização das Nações Unidas em Genebra, faleceu em Paris nesta segunda-feira, 24 de setembro, aos 65 anos. Originário do Nordeste do Brasil denunciou a miséria das favelas (...). Mente bem preparada e coração generoso, Josué de Castro nos últimos anos viajou pelo mundo para defender suas ideias.

Le Monde, 25 de setembro de 1973.


Assim o periódico francês Le Monde noticiou, em 25 de setembro de 1973, há exatos 50 anos, que o mundo perdia um intelectual de “mente bem preparada e coração generoso”. Entre tantos adjetivos que poderíamos usar para complementar o jornal Le Monde, vou usar a frase de Darcy Ribeiro, que depois de vários elogios à importância de Josué de Castro, disse: “foi o homem que mais admirei, o homem mais inteligente e mais admirante que eu conheci”. Pensei nessa referência pelo tamanho de Darcy: educador, antropólogo, político, imortal). Na sequência da frase, o próprio Darcy Ribeiro pensa e complementa, “e olhe que conheci muita gente incrível”.


Este depoimento de Darcy Ribeiro sobre Josué de Castro se deu na cinebiografia “Josué de Castro - Cidadão do Mundo”, de Silvio Tendler (1994). O documentário foi exibido no I Seminário Nacional Josué de Castro e o Combate à Fome, promovido pelo Programa de Pós-graduação em História, pela graduação em História e pelo Instituto Humanitas da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), no último dia 31 de agosto. O Seminário teve por objetivo homenagear Josué de Castro no 50º aniversário de sua morte, que também é meu objetivo com este texto.


Josué Apolônio de Castro nasceu na cidade do Recife, em 5 de setembro de 1908, e faleceu em 1973, em Paris, durante o período em que esteve exilado após o golpe civil-militar de 1964, nesse hiato tornou-se “cidadão do mundo”, como sugeriu Silvio Tendler. “Nos anos 1950, havia cinco personalidades importantes da humanidade e Josué de Castro era uma delas”, nos lembra Darcy Ribeiro.


Capa do livro Josué de Castro, de Helder Remígio de Amorim

Para o historiador Helder Remigio Amorim (2022), pesquisador atento, que se debruçou sobre a trajetória de Josué de Castro e foi idealizador do Seminário mencionado, estudar a trajetória de Josué de Castro significa contribuir para uma melhor compreensão de sua produção intelectual. Esta, sem dúvida, marcada pelos acontecimentos da experiência democrática brasileira de outrora, mas que se faz presente nos anos 1990, início dos anos 2000 e também início dos anos 2020: a insegurança alimentar da população brasileira.


Olhar para Josué de Castro é também olhar para o sujeito contemporâneo descrito pelo filósofo italiano Giorgio Agamben. O filósofo nos diz que “o sujeito contemporâneo é aquele que sabe aderir ao seu tempo e também afastar-se dele [...]. Sabe ler as trevas e as luzes do seu tempo”. Josué de Castro entendeu a mazela de seu tempo: a fome. Apontou as causas e consequências da fome, que mantinha quem estava abaixo da linha da pobreza à margem da dignidade humana e, em especial, buscou alternativas para mudar este panorama.


Agamben, ainda sobre o sujeito contemporâneo, diz que é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo. Josué não cessou de interpelar a fome, desenvolveu ações para desnaturalizar a fome como resultado de intempéries da natureza, o que Amorim (2002) coloca como a dimensão política e social de seu pensamento.


Josué se forjou intelectualmente e profissionalmente em um mundo polarizado, este conflito o fazia pensar em futuros distintos, tempos distintos, espaços distintos, um capitalista e um comunista. Em meio a essa disputa por futuros, Josué afirmou que a mazela da fome não era problema de um ou de outro, mas daquele presente em que viviam todos, fruto de escolhas humanas do presente e do passado. Suas reflexões ganharam repercussão internacional, suas obras foram traduzidas para 25 idiomas, principalmente quando publicou Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951), livros que circularam com destaque tanto nos Estados Unidos da América como na União Soviética, em tempos de Guerra Fria. No início da década de 1960, estima-se que sua obra tenha vendido mais de 400.000 exemplares em todo o mundo.


Como o sociólogo Herbert de Souza – o Betinho –, outro entrevistado da cinebiografia, apontou, “Josué de Castro deu à fome estatuto político e científico”, mostrou as causas e deu soluções possíveis. Não são apenas desastres naturais, guerras ou condições geográficas desfavoráveis que definem quem irá passar fome ou não. São, especialmente, fatores políticos, como, por exemplo, estratégias de produção e distribuição de alimentos, sistemas de preços, repartições geográficas nas cidades e na zona rural, desigualdade social, política salarial, tradições culturais, sistemas de saúde, condições de moradia, meios de difusão ideológica etc.


Ao desenvolver ações para tirar a fome do rol de atributos dos pobres e fruto de catástrofes naturais, Josué dá a ela um estatuto político, e, para fazer isso, utilizou de métodos científicos ignorados até aquele momento. Josué de Castro se apropriou de um método geográfico, o mapeamento. O professor Ignacy Sachs, outro entrevistado da cinebiografia, nos lembra que Josué de Castro viveu um período em que, na ciência, reinavam a estatística, os cálculos e as medianas. Para Sachs, “as médias encobrem as verdades, só através dos mapas que a gente descobre onde estão as vítimas de uma situação, onde estão as concentrações”. Josué, sujeito contemporâneo, procurou dentro da ciência a forma que melhor desse luz à escuridão de seu tempo. O mapeamento permitiu localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos naturais e culturais com a fome.


Capa do livro Geografia da fome, de Josué de Castro

Em 2022, a editora Todavia reeditou o Geografia da Fome, com apresentação do geógrafo Milton Santos e prefácio do filósofo Silvio Almeida. Para este, Geografia da Fome não é

apenas uma descrição da fome como fenômeno social do seu tempo, mas revela aquilo que Milton Santos, referindo-se a Josué de Castro, chamou de “clarividência”. Ao mostrar que a fome é um fenômeno histórico, o livro é uma análise complexa e bastante atual da organização socioeconômica contemporânea.


Silvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, foi um dos convidados do I Seminário Nacional Josué de Castro e o Combate à Fome ocorrido na Unicap, realizando a conferência de encerramento. Em sua exposição, Silvio Almeida deu uma aula sobre o pensamento social brasileiro, inserindo as reflexões e lutas de Josué de Castro na ordem das contribuições que ainda se fazem presentes e necessárias para um futuro justo. De acordo com o ministro, “não há democracia em um país com fome”.


Segundo dados da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no Brasil. As últimas pesquisas da Rede Penssan mostram que a fome no Brasil voltou para patamares de 2004. Não por acaso, desde o período da redemocratização, na década de 1980, os debates em torno das políticas de distribuição de renda, justiça social e cidadania se fazem necessários. O movimento Ação da Cidadania Contra a Fome, realizado na década de 1990 e idealizado por Betinho; o programa Fome Zero, criado durante o primeiro governo Lula, em 2003, e o recém-lançado programa Brasil Sem Fome no atual governo Lula são casos exemplares de programas sociais.


No mesmo dia em que ocorria no Recife o I Seminário Nacional Josué de Castro e o Combate à Fome, com discursos de Helder Remigio Amorim e Sílvio Almeida, em Teresina, o presidente Lula assinava o decreto que criou o programa Brasil Sem Fome. O programa, que visa combater a insegurança alimentar e tirar o país mais uma vez do mapa da fome, pode ser considerado mais uma retomada das reflexões de Josué de Castro. Para Helder Remigio Amorim, a produção de Josué esteve aliada aos cargos públicos que ocupou como médico, professor universitário, presidente do Conselho Consultivo da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, com sede em Roma), deputado federal, embaixador, e presidente do Centro Internacional de Desenvolvimento, em Paris (CID).


Nos anos 1950, Josué de Castro foi eleito duas vezes deputado federal duas vezes pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em sua atuação parlamentar, defendeu a criação de uma reserva de alimentos no Brasil para os momentos de crise, a desapropriação de terras de interesse social, além de um plano nacional de alimentação e de merenda escolar. Destaca-se ainda sua preocupação com a reforma agrária e a aproximação com os movimentos de trabalhadores rurais, especialmente com as Ligas Camponesas. Josué de Castro participou dos debates que criaram a Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e combateu enfaticamente o modelo de desenvolvimento adotado pelo governo de Juscelino Kubitschek.


Em 1962, renunciou ao mandato de deputado federal por ter sido nomeado, pelo então presidente João Goulart, embaixador do Brasil para assuntos ligados à Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, porém, foi destituído do cargo após o golpe civil-militar de 1964. Como muitos intelectuais e políticos, Josué teve seus direitos políticos suspensos. Naquela ocasião, vários países lhe ofereceram asilo político, mas a França foi o país escolhido por ele para viver (Amorim, 2022).


Na França, Josué de Castro teve destacada atuação intelectual como professor da Universidade de Vincennes e presidente de um organismo que pretendia criar alternativas de desenvolvimento para os países mais pobres, o CID. Mesmo seguindo a vida intelectual com fervor contemporâneo, visto que foi na Universidade de Vincennes que aproximou a geografia da ecologia humana (momento em que a ecologia era um campo de saber novo), Josué de Castro seguiu se preocupando com a fome, com o Brasil e com a vontade de voltar. A ditadura civil-militar brasileira não só exilou o Josué de Castro, mas também proibiu a menção ao seu nome no país e determinou que seu passaporte fosse, sistematicamente, negado.


Telegrama expedido pelo Itamaraty para a Embaixada brasileira em Paris com pedido de informações sobre o Centro Internacional para o Desenvolvimento cujo diretor era Josué de Castro. Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores.
Telegrama expedido pelo Itamaraty para a Embaixada brasileira em Paris com pedido de informações sobre o Centro Internacional para o Desenvolvimento cujo diretor era Josué de Castro. Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores.

Josué de Castro morreu no exílio, triste por não poder voltar ao Brasil. Um débito eterno na conta da ditadura civil-militar. Devemos falar de Josué de Castro, não podemos esquecer seu legado. Como disse o historiador estadunidense David Lowenthal, “a condição para lembrar é esquecer!” Somente o esquecimento nos possibilita classificar e estabelecer ordem no caos. No caos que é o passado, há muitos acontecimentos, muitos eventos, extraordinários e ordinários, muitos personagens singulares para lembrarmos, esquecer é da nossa natureza, esquecemos para poder lembrar. A ditadura civil-militar teve como aliada a nossa memória, que precisa deixar a memória escapar. Fizeram-nos esquecer Josué de Castro e, de certo modo, conseguiram.


Chico Science, outro entrevistado da cinebiografia, confessa: “eu nunca soube nada de Josué de Castro, eu não aprendi nada na escola. É uma pena isso”. Josué foi tachado de notório comunista pela ditadura civil-militar. Chega a ser estarrecedor como a preocupação com o social, a atenção para aqueles que passam fome, o olhar para além da caridade do Natal, a preocupação em acabar com a fome, são tachados de comunistas. Enquanto Josué de Castro era traduzido e lido nos Estados Unidos da América, país líder do bloco capitalista na Guerra Fria, no Brasil suas obras foram proibidas de serem reeditadas após o AI-5, em 1968.


Um dos entrevistados do documentário de Silvio Tendler é o abade Pierre, padre católico conhecido por renunciar à riqueza para defender os pobres, fundador do Movimento Emaús, e um dos homens mais admirados da França. Em um trecho de sua fala, ele diz acreditar que, “se Josué estivesse vivo hoje, teria a mesma energia e a mesma lucidez para guiar a juventude de hoje sobre os novos problemas”. No que concerne à lucidez e ao espírito de liderança que Josué de Castro cumpriria hoje, não há dúvida. A reflexão do abade Pierre nos provoca a pensar que, além dos novos problemas, em setembro de 2023 a insegurança alimentar ainda se faz presente no Brasil e no mundo.


As questões que Helder Remigio Amorim propõe no final de seu livro são fundamentais: por que, em um mundo onde a produção agrícola bate recordes, onde a tecnologia e a ciência rompem fronteiras, a fome ainda atinge 800 milhões de seres humanos? O capitalismo precisa de fome para existir? Não podemos deixar Josué de Castro morrer de novo. Josué precisa ser lembrado, homenageado, debatido nas escolas, nas universidades, nas bienais de livros, na televisão. Josué precisa ser colocado no debate público. Que a efeméride de sua morte seja um excelente pretexto para que o combate à fome seja retomado no Brasil, para que possamos usar todo o legado deixado por Josué de Castro, o sujeito contemporâneo, de mente bem preparada e coração generoso.


 

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

AMORIM, Helder Remigio de. Josué de Castro: um pequeno pedaço do incomensurável. Jundiaí: Paco, 2022.

CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. São Paulo: Todavia, 2022.

CASTRO, Josué de. Geopolítica da Fome. São Paulo: Brasiliense, 1961.

TENDLER, Silvio. Josué de Castro - Cidadão do Mundo (1994). YouTube, 3 e out. 2014.

LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Projeto História, v. 17, jul./dez., 1998.


Como citar este artigo:

CASTRO, Eduardo. 50 anos sem Josué de Castro. História da Ditadura, 25 set. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/50-anos-sem-josu%C3%A9-de-castro. Acesso em: [inserir data].

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