Entrevista com o historiador Robert Wilcox
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Entrevista com o historiador Robert Wilcox


A coluna Brasil por Brazil, editada por Lucas Koutsoukos-Chalhoub e Luiz Paulo Ferraz, busca aumentar as oportunidades para o público brasileiro conhecer pesquisas e obras sobre o Brasil produzidas fora do país entrevistando pesquisadores brasileiros e estrangeiros atuantes no exterior.


Robert Wilcox é professor de história na Northern Kentucky University. Nesta entrevista, conversamos sobre seu livro Cattle in the Backlands: Mato Grosso and the Evolution of Ranching in the Brazilian Tropics (Gado no Interior: O Mato Grosso e a Evolução da Pecuária nos Trópicos Brasileiros, em tradução livre) publicado pela University of Texas Press em 2017.


Qual o tema do livro e como surgiu a ideia de escrevê-lo?


O livro é sobre a história do desenvolvimento da pecuária no território do atual estado de Mato Grosso do Sul a partir de cerca de 1870 a aproximadamente 1950. Quando estava buscando um tema para minha tese de doutorado, fiquei fascinado com a onipresença do gado no interior brasileiro – principalmente o zebu, que parecia dominar a paisagem. Ao mesmo tempo, a destruição ecológica e social na Amazônia estava (e continua) nas manchetes regularmente, e a pecuária foi (e é) geralmente apontada como uma das principais culpadas. Com o incansável incentivo de Warren Dean, meu orientador e renomado “brasilianista”, ao explorar as possibilidades de escrever sobre pecuária, rapidamente percebi que havia pouca produção sobre a pecuária brasileira fora do estado do Rio Grande do Sul e da região Nordeste, especialmente em inglês. Também logo percebi que o Mato Grosso do Sul era uma região particularmente importante para tal estudo, pois possuía um grande rebanho bovino e uma longa história de pecuária. Historicamente, o estado foi o principal local para a pecuária nos trópicos brasileiros até anos recentes. Ao mesmo tempo, o setor agrícola da região teve alguns dos desenvolvimentos comerciais e científicos mais inovadores e controversos após os anos 1870 e foi um exemplo clássico de fronteira até o século XX. Além disso, muitos dos insumos e impactos ecológicos, interações sociais e conflitos com povos indígenas e contatos de longa data com as nações fronteiriças do Paraguai e da Bolívia se manifestaram em na região.


Também fiquei impressionado com a variedade de ambientes em um espaço relativamente pequeno: o Pantanal, o Cerrado e o chamado Campo Limpo. Senti a necessidade de escrever sobre essa diversidade, já que a maioria de nós assume que a pecuária ocorria apenas em “pradarias” – ou, mais recentemente, na floresta tropical.


Como você enxerga a contribuição do seu livro para a historiografia?


No início, eu pretendia escrever uma história de fronteira. Entretanto, conforme continuei minha pesquisa, me convenci de que, embora esta fosse uma “fronteira” em muitos aspectos, no início do século XX também era um laboratório de inovação versus “tradição” na expansão da pecuária brasileira. De certa forma, isso reflete a abordagem recente das “fronteiras de commodities”, embora eu não tenha mencionado isso explicitamente em meu trabalho. Minha intenção era traçar um quadro de como surgiram alguns desses desenvolvimentos e alguns dos impactos na região – especialmente os econômicos, sociais e ambientais, de baixo para cima. Assim que comecei minha pesquisa, aprendi que a maioria das histórias da pecuária nas Américas se concentrava em zonas temperadas, como os Estados Unidos, o Canadá, a Argentina e o Rio Grande do Sul. Também há várias referências curtas e alguns exames mais detalhados do que poderia ser chamado de “pecuária tropical” no México, na América Central, na Venezuela e na Colômbia, mas a maioria focava em aspectos econômicos ou políticos, não explorando explicitamente os elementos sociais e ecológicos. Isso está começando a mudar, mas, nos anos anteriores à sua publicação, minha pesquisa estava entre as poucas que abordavam esses aspectos em maiores detalhes. Ao mesmo tempo, senti a necessidade de explorar a história da pecuária do Mato Grosso do Sul, tão importante para a identidade do estado e mais influente na história do Brasil do que normalmente se reconhece.


Além disso, meu trabalho se insere nos campos crescentes e dinâmicos da História Agrícola e da História Ambiental, da qual a pecuária é parte importante. Como mencionado, tem se chamado atenção para o papel da pecuária na destruição da Floresta Amazônica nas últimas décadas, estimulando vários estudos sobre este processo. No entanto, a destruição ecológica pelo gado também ocorreu no Cerrado e tem uma longa história. Com algumas exceções, pouco se escreveu sobre esse aspecto da “modernização” atual. Embora o livro aborde isso até certo ponto, espero que haja mais investigações no futuro.


Como seu livro dialoga com a historiografia brasileira, e que obras e autores do Brasil te ajudaram a pensar o tema?


Esta foi uma jornada fascinante. Para começar, tive uma compreensão mais ampla da historiografia brasileira através da orientação de Warren Dean e de seus muitos contatos no Brasil. Juntos, eles me colocaram no caminho para conhecer mais de perto a historiografia geral do país. Claro que os clássicos – como Sérgio Buarque de Holanda, Cassiano Ricardo, Caio Prado Júnior e tantos outros – foram minhas primeiras referências, assim como alguns estudos do Brasil colonial e independente por autores de fora do Brasil. São muitos para mencionar aqui, é claro, mas eu precisava entender os estudos anteriores sobre o interior brasileiro antes de embarcar na pesquisa. Como eu disse, isso começou com uma abordagem de estudos de fronteira, que muitas vezes é examinada em relação à historiografia da fronteira dos Estados Unidos. Porém, como sabemos, essa é uma abordagem que tem sido enganosa, pois as condições dos Estados Unidos e as do Brasil não eram as mesmas, apesar das semelhanças superficiais. Logo procurei aprender mais sobre as especificidades técnicas e ecológicas da pecuária, já que isso estava em grande parte ausente nas pesquisas anteriores. À medida que me aprofundava na pecuária como atividade diária, busquei comparações com a prática em outras regiões, incluindo o Rio Grande do Sul, o Uruguai, a Argentina e os Estados Unidos. A literatura sobre pecuária no Brasil é dispersa, mas Sandra Pesavento foi muito útil, assim como o Stephen Bell, ambos no Rio Grande do Sul.


Ao tentar compreender os elementos ambientais dessas especificidades, a História Ambiental tornou-se a metodologia que dominou meu pensamento. Encontrei poucos estudos que abordavam isso explicitamente, mas pude contar com estudos da História Ambiental brasileira de historiadores como José Augusto Pádua, Lise Sedrez e Regina Horta Duarte – sem falar no trabalho de Warren Dean e outros –, e passei a entender as complicações das fontes anteriores a este respeito.


Eventualmente, encontrei o que estava faltando: vozes da região, que incluíam alguns historiadores menos conhecidos especificamente para o campo da história ambiental, como Virgílio Corrêa Filho e Nelson Werneck Sodré. Estes não eram explicitamente estudiosos de História Ambiental, mas lidavam com aspectos da pecuária que eu não havia encontrado em estudos de outras regiões. No processo, também me beneficiei das publicações de historiadores regionais atuais que ainda não foram tão reconhecidos pela corrente principal da profissão histórica brasileira como deveriam. Entre eles, agradeço especialmente o apoio e os trabalhos de Valmir Batista Corrêa, Lúcia Salsa Corrêa, Paulo Cimó, Gilmar Arruda e Sandro Dutra e Silva.


Ao final, os diversos autores, lugares e perspectivas se combinaram para criar uma espécie de “mistura” de influências historiográficas que, com exceção da História Ambiental, dificultam a identificação de diálogos historiográficos específicos.[1]


Quais foram as principais fontes utilizadas em sua pesquisa e como você chegou até elas?


Graças à ajuda de colegas da região, consultei muitos estudos sobre a pecuária de historiadores locais e de pesquisadores e cientistas que não consideraríamos historiadores, mas cujos trabalhos se encaixam perfeitamente em um exame da história da pecuária no interior brasileiro. Abordei o processo tentando explorar publicações sobre a pecuária do passado e do presente que me instruíssem sobre os detalhes da criação de gado nos trópicos. Como resultado, meu estudo parte da Geografia e da Ecologia – elementos essenciais para a compreensão do uso da terra – para depois passar para as especificidades históricas. Alguns escritores que influenciaram profundamente meu trabalho são Orlando Valverde, Fernando Ruffier e Rodolfo Endlich. Nenhum deles era historiador, nem escreveu em perspectiva histórica.


Busquei também informações técnicas para entender as especificidades da pecuária e de seu impacto sobre a terra nos dias de hoje. Trabalhos sobre o gado zebu no Brasil e um estudo abrangente sobre gado e uso da terra de Ana Primavesi foram muito úteis, assim como muitos exames geográficos e ecológicos de vários pesquisadores, incluindo alguns da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).


É claro que os arquivos forneceram muitas informações, com destaque para o Arquivo Público de Mato Grosso e o Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR) da Universidade Federal de Mato Grosso, ambos em Cuiabá, além de outros acervos regionais em Campo Grande, o Arquivo Nacional no Rio e alguns arquivos nos Estados Unidos. Tanto o IBGE quanto a Embrapa abrigam documentos e informações importantes – esta última em sua maioria contemporânea. Devo também mencionar as entrevistas e discussões que pude ter com alguns pecuaristas no Mato Grosso do Sul. A maioria foi muito receptiva comigo como um jovem pesquisador gringo e me forneceu informações que duvido que teria encontrado de outra forma (além de alguns preconceitos ou distorções, o que é sempre um perigo para os entrevistadores).


Como outros pesquisadores já indicaram, caracterizo a pesquisa histórica no interior do Brasil como uma forma de “garimpo”. Isso significa que o pesquisador não só deve cavar fundo – ocasionalmente em arquivos mal organizados, embora isso esteja mudando drasticamente – e, às vezes, contra a corrente, mas também seguir as “veias” de informações que levam a outros documentos, publicações e locais. Ao mesmo tempo, há limites ao tempo e à resistência de um pesquisador. Portanto, somos forçados a restringir quanto e até onde podemos coletar material. Este foi um dilema persistente.


Qual a história mais interessante que você se deparou ao longo da pesquisa para o livro ou a que mais te surpreendeu?


Para mim, os aspectos mais interessantes da minha pesquisa foram a expansão do gado zebu nos trópicos, já que o Brasil estava na vanguarda dessa tecnologia nas Américas, bem como a proliferação natural e deliberada de gramíneas africanas em todo o continente. Essas influências “estrangeiras” não se originaram na Europa ou nos Estados Unidos, nem foram necessariamente incentivadas por influências técnicas do Atlântico Norte, mas passaram a dominar a pecuária na maior parte da América Latina tropical. Para ser claro, isso se deve principalmente a atores locais e a fazendeiros e cientistas nacionais. Esses fatores foram retomados recentemente por outros pesquisadores para o resto da América Latina e agora também para a África.


De forma mais ampla, acho que me impressionaram mais particularmente dois aspectos. Primeiro, o contraponto entre “tradição” e inovação na abordagem do negócio da pecuária, que incluiu o desprezo pelo “tradicional” por “especialistas” do setor político-econômico brasileiro e estrangeiro. Porém, tal desprezo foi atenuado pela eventual percepção de alguns de que talvez os fazendeiros do interior conhecessem seu meio melhor do que aqueles que tinham experiência em outros lugares. Parte disso era a suposição incorreta de que a pecuária de clima temperado poderia ser facilmente transferida para os trópicos. O resultado no Mato Grosso do Sul e em outros lugares muitas vezes foi uma continuação do “tradicional” apesar das críticas, embora isso tenha mudado drasticamente a partir da década de 1960.


Em segundo lugar, como eu e outros argumentamos, nem toda pecuária é automaticamente danosa ao meio ambiente e poderia até ser ecologicamente sustentável – circunstância muitas vezes ofuscada pelas situações terríveis da Amazônia e do Cerrado. Este tem sido um argumento mais difícil de se fazer em certos setores, mas, à medida que os pesquisadores se aprofundam nos processos históricos da pecuária, tem ganhado mais adeptos. Tenho afirmado em vários lugares que, embora esteja confiante de que este é o caso, eventualmente depende da intensidade da pecuária: quanto mais comercial a atividade, com rebanhos maiores, mercados expandidos e com a deficiência da supervisão governamental, pode-se esperar mais pressão sobre o meio ambiente.


Que perguntas o seu livro deixa em aberto, ou que novos caminhos você espera que sejam explorados em pesquisas futuras sobre o tema?


Como todas as histórias, meu livro é “incompleto”, pois o processo de publicação restringiu uma exploração mais expandida. Eu gostaria de ter entrado em mais detalhes sobre os diversos impactos e influências ecológicas nos muitos ambientes que compõem o Mato Grosso do Sul. Por exemplo, embora aborde os solos com alguns detalhes, não os discuti de maneira significativa, visto que são importantes em todos os empreendimentos agrícolas, incluindo a pecuária. O mesmo pode ser dito para o papel-chave dos insetos, seja como parasitas, seja como atores ecológicos cruciais para saúde do meio ambiente. Outras espécies também mereciam mais atenção.


E embora o papel da ciência veterinária seja óbvio, ele precisa de mais atenção do que eu poderia dar. Isso está começando a ser explorado com mais detalhes através da História da Ciência, então espero ver mais pesquisas sobre o Brasil e o resto da América Latina.


Outro elemento que eu gostaria de ter incorporado mais é o papel dos povos indígenas na pecuária. Há uma história de interações entre indígenas e fazendeiros que remonta ao período colonial, mas só consegui abordar superficialmente essas relações. Estudos mais aprofundados são necessários à medida que entendemos melhor a importância da raça e da etnia nas economias rurais.


Além disso, não explorei suficientemente as questões complicadas e entrelaçadas da posse da terra, do uso da terra, da influência fiscal e do uso de recursos locais na pecuária do Mato Grosso do Sul. Embora eu tenha abordado isso até certo ponto, mais detalhes são necessários para completar o quadro.


Meu livro não aborda o processamento de carne com detalhes suficientes, especialmente porque a produção de gado, que antes servia à produção de charque, agora se destina aos frigoríficos. Os papéis dos mercados locais e nacionais de carne e do consumo de alimentos merecem mais atenção do que a maioria dos estudos lhes atribui, incluindo o meu. Felizmente, mais recentemente os historiadores começaram a examinar estes aspectos em certas regiões. Um livro recente que aborda o tema com detalhe é Rio de Janeiro in the Global Meat Market, c. 1850 to c. 1930: How Fresh and Salted Meat Arrived at the Carioca Table (2021) de Maria-Aparecida Lopes.


Por fim, intencionalmente não examinei os muitos temas decorrentes dos Estudos Animais. Não sinto que algumas das discussões nesse crescente campo acadêmico sejam necessariamente apropriadas ao estudo da pecuária em si, mas o ramo oferece muitas perspectivas interessantes sobre nossa abordagem ao estudo das atividades humanas que dependem de animais. Certamente, todo pesquisador que estuda a pecuária deve estar atento a esses debates. Aguardo um estudo da pecuária nesta perspectiva, seja no Brasil ou em outras regiões da América Latina. Mais uma vez, espero que outros considerem o livro como um estímulo suficiente para desenvolver pesquisas mais aprofundadas sobre esses e outros temas.

 

Nota:


[1] SOLURI, John; LEAL, Claudia; PÁDUA, José Augusto (Orgs.). A Living Past: Environmental Histories of Modern Latin America. New York: Berghahn Books, 2018. Em espanhol, o título é: Un Pasado Vivo. Dos Siglos de Historia Ambiental Latinoamericana.


Esta entrevista ocorreu por escrito e foi traduzida e editada antes da publicação.

Contate a coluna em brasilporbrazil@gmail.com

Lucas Koutsoukos-Chalhoub

Luiz Paulo Ferraz

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