Latidos
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  • Foto do escritorCaio Fernandes Barbosa

Latidos

Abdelfattah Kilito, escritor de ficção marroquino e especialista em literatura clássica árabe, apresentou numa conferência sobre bilinguismo em Marrocos, em 1981, uma parábola sobre um beduíno que, em uma noite, se perdeu no deserto. Para se orientar, o beduíno teve a ideia de imitar latidos, na esperança de induzir cães nos acampamentos próximos a latirem em resposta. Assim, ele poderia seguir seus ecos até a habitação humana. O beduíno executou seu plano com sucesso e retornou à sociedade – tornou-se novamente humano.


Abdelfattah Kilito
Abdelfattah Kilito. Reprodução.

Porém, o mimetismo acabou custando um preço alto. Na parábola, ao retornar à “civilização”, o sobrevivente errante do deserto perdeu a linguagem humana e o latido se tornou sua única forma de comunicação. Como sua tribo reagiria se ele latisse em resposta às suas perguntas? O que sua comunidade deveria fazer se ele realmente adotasse hábitos caninos e começasse a perseguir o próprio rabo e a roer ossos? E se seus parentes o aceitassem, por mais estranho que ele fosse, e ele começasse a latir e gemer durante reuniões comunitárias onde assuntos sérios eram discutidos, ou durante cerimônias sagradas, onde os latidos dos cães eram mais impróprios? E os cães? Aceitariam-no como membro de sua alcateia?


A jornada incerta do beduíno de Kilito é uma provocação decolonial aos intelectuais árabes que escolheram escrever exclusivamente em francês. Ela coloca a seguinte questão: escrever na língua colonial do outro desfigura a identidade de alguém e a percepção de sua própria cultura e sociedade? Kilito nunca foi um defensor da uniformidade cultural ou linguística em nome de uma língua autêntica ou de uma tradição literária: o escritor é completamente bilíngue e bicultural, e abraça essa dupla posição. No entanto, ele nos leva a um intrigante mistério, cheio de riscos e possibilidades, jogando com a figura canina, através da jornada incerta do beduíno, para fazer uma crítica aos limites e à mediocridade literária do mimetismo.


Essa parábola também pode ser interpretada como a dificuldade de comunicação entre tradições intelectuais distintas, atravessadas por assimétricas relações de poder que, com frequência, podem deixar os sujeitos num não-lugar.


Em 2019, me tornei, para o bem e para o mal, um imigrante. A estadia nos EUA, que era, no princípio, de um ano, se tornou um caminho no qual ainda não consigo vislumbrar uma volta. Ao decidir me arriscar num mercado acadêmico incerto e desconhecido, sem nenhuma passagem ou treino nas universidades norte-americanas, com uma nebulosa esperança de ser publicado, e uma remota expectativa de ser contratado, me confrontei com o conselho de escrever história da ditadura brasileira em inglês para americano ler. “Se você quer uma vaga numa universidade aqui, precisa publicar em inglês”, me aconselhou um amigo e professor universitário, entre goles de vinhos, casa com carpete e lasanhas no forno. Diante de tanto conforto, achei o conselho razoável. “Ok, vamos lá escrever em inglês”, pensei. Mas quando me sentava para escrever, a história era outra...


Não. Definitivamente não é fácil fazer a opção de – ou ter que – parar de produzir academicamente em sua língua natal. Isso significa abandonar atalhos, recursos, efeitos conhecidos. Ter que deixar para traz tudo isso, em sua própria língua, para se comunicar em academiquês de uma outra língua, é uma tarefa das mais severas. Na minha primeira tentativa, passei uma tarde inteira escrevendo e apagando.


“Grammarly [aplicativo de escrita] ajuda”, me aconselhou um amigo brasileiro doutorando na Universidade da California San Diego. Adotei o tal programa e tive que lidar com certo incomodo com a formatação da minha escrita. O software deixa o texto sem personalidade. Como exercício para desafiá-lo, fui colocando trechos de historiadores consagrados e vendo o que o ele corrigia. Essa “brincadeira” me tomou (e ainda toma) horas. Mas desta forma também fui dosando seu uso na minha escrita em inglês.


Grammarly

Escrever prioritariamente numa língua que não é nativa é uma velha problemática, no campo da literatura e das artes. A escritora francesa Simone Adolphine Weil, durante sua incursão pela religião católica no início dos anos 1940, alertou que “para qualquer homem uma mudança de religião é uma coisa tão perigosa como uma mudança de língua é para um escritor. Pode ser um sucesso, mas também pode ter consequências desastrosas.Para Vladimir Nabokov, num exemplo de exofonismo – que é o produto de traumas e deslocamentos históricos –, abandonar a “linguagem natural” foi uma “tragédia particular”. A família Nabokov fazia parte da elite czarista, e, com a Revolução Soviética de 1917, exilou-se. Para o autor, o “idioma natural” tem uma intima relação com o passado, as memórias e a identidade, que é construída na infância.


Abandonar a produção intelectual na língua materna é, assim, o abandono do passado. Tal sentimento era partilhado pelo escritor e filósofo romeno, radicado na França, Emil Cioran. “Quando mudei meu idioma, aniquilei meu passado. Mudei toda a minha vida”, disse ele em tons dramáticos e pessimistas, como lhe era característico. A escritora chinesa Yiyun Li, que adotou o inglês aos vinte anos de idade, comparou essa mudança com uma experiência que equivalia ao suicídio – que ela tentou por duas vezes enquanto vivia nos Estados Unidos.


Outros lidaram com a mudança de idioma como um exercício técnico – ainda que desconfortável. Normalmente, foram aqueles que fizeram essa opção mais por motivos estéticos do que por subsistência e, geralmente, trocando o inglês pelo francês ou pelo espanhol. Samuel Beckett, por exemplo, escolheu esse caminho. Ele gostava do efeito “enfraquecedor” de trabalhar numa língua estrangeira. Falante nativo do inglês, adotou o francês para ser “mal armé”, mal armado – num trocadilho com o poeta francês Mallarmé –, como parte de uma decisão de se livrar de seu estilo. “Na verdade, está se tornando cada vez mais difícil, até mesmo sem sentido, para mim escrever um inglês oficial”, escreveu ele numa carta em 1937. “Cada vez mais minha própria língua me parece um véu que deve ser rasgado para chegar às coisas (ou ao Nada) por trás disso. Gramática e Estilo. Para mim, parecem ter-se tornado tão irrelevantes como um traje de banho vitoriano ou a imperturbabilidade de um verdadeiro cavalheiro. Uma máscara."


Leonora Carrington
Leonora Carrington. Reprodução.

Quem também escolheu esse caminho foi a pintora e escritora surrealista Leonora Carrington. Muitos dos seus contos foram escritos em seu francês e espanhol rudimentares. Assim como Beckett, sua hesitação com as línguas novas era guiada pelo prazer transgressor e lúdico de sua voz e aguçava o sabor do conhecimento ingênuo que tanto fascinou os surrealistas. Assim, outras línguas pareciam proporcionar-lhe mais vida, mais vidas. Ela celebrava o sentir-se desajeitada e insegura. Longe de se sentir empobrecida por um vocabulário menor, ela se sentia libertada pela ausência dos domínios das regras linguísticas e estilísticas.


Parul Sehgal, editora do The New Yorker e crítica de livros do New York Times, tentou repetir o exercício de Carrington, em 2017. Primeiro, ela escreveu um parágrafo “devagar e com tristeza” em hindi – a língua que falou durante toda a vida, mas na qual raramente escrevia – e depois traduziu para o inglês. Num artigo para o New York Times, ela conta que foi “um exercício desagradável e embaraçoso, como ser vendada e empurrada para uma sala estranha. Cada direção que eu virava me levava a uma colisão violenta com meus limites.” Voltar a escrever na língua materna levou-a para esse lugar de vulnerabilidade. Ela notou: “quão insignificante é meu vocabulário em hindi, percebi, o quão confuso meu pensamento, quão equívoco e hesitante me torno; é como se algo de mim mesmo quando criança tivesse sido preservado ali. Voltar para o inglês foi um alívio.” Novamente, o sentimento de se sentir vulnerável, mesmo que como um recurso, era retomado.


Outro exemplo interessante é o da escritora indiana-britânica Jhumpa Lahiri. Ela escolheu o italiano como língua de escrita e leitura enquanto morava na Itália, na década de 2010. “Penso, vejo e sinto de forma diferente em italiano. Digo as coisas de forma mais simples, mas também mais direta. E tenho tendência a arriscar mais”, disse ela ao The New Yorker. “Dissecando a minha metamorfose linguística, percebo que estou tentando fugir de alguma coisa, libertar-me”. Para Lahiri, essa escolha lhe permitiu tornar-se “uma mulher mais dura e livre.” Embora considere que o italiano tenha um efeito simplificador em seu pensamento ao escrever, ela se satisfaz com o resultado.


Alguns escritores embora admitam esse lugar vulnerável, se sentem empoderados pelos novos lugares que a língua estrangeira pode levar. A japonesa Yuko Otomo comparou sua experiencia de escrever em inglês com “transplantar uma árvore para um solo diferente: se a árvore for jovem, ela vai se adaptar melhor. No meu caso, a árvore já estava crescida. Não foi nada fácil.” Porém, ela deleita-se com “o fato do inglês não ter elementos hierárquicos que pesam muito mais forte sobre o japonês.” Por exemplo, a possibilidade de se dirigir, em inglês, a um professor e a um cachorro com o mesmo pronome, “you” [você]. Para alguns escritores, isso permite uma grande transformação.


Ter que escrever numa língua é substancialmente diferente de escolher escrever em idioma estrangeiro, muito embora haja desafio em ambas. Tragédia, abolição do passado, se colocar num lugar vulnerável e atingir novos lugares no outro idiomaTodas essas tentativas de definição das sensações no processo de escrita de uma língua não-nativa vêm acompanhadas da ideia da transmutação – ideia que também se faz presente na parábola de Kilito.


Ter que escrever e publicar em inglês é, de alguma forma, ter que obrigatoriamente me transmutar em algo que não sei – e nem sei se a mudança será bem-sucedida. O beduíno de Kilito não teve tanta sorte. Teria eu um melhor destino diante de uma série de incertezas?


Capa do livro As origens trágicas da erudição: pequeno tratado sobre a nota de rodapé

Embora historiadores sejam escritores e a História, uma “mistura confusa” de ciência e arte, como definiu o historiador Anthony Grafton (1998), os peer reviewers que analisam nossos artigos têm muita pouca paciência para estripulias estilísticas. Por isso, a mudança de idioma pode ser ainda mais dramática para quem está escrevendo para revistas acadêmicas. Afinal, se é verdade que a História é um campo de batalha, como gostam de apregoar vários historiadores, por que alguém escolheria entrar nessa área de gladiadores sem as armaduras e armas de sua própria língua, fragilizado e vulnerável, na língua do outro?


Para quem não é acadêmico, é importante ter em mente que, após a submissão, um artigo passa por uma árdua jornada. Entre o aceite pelos editores da revista, o encaminhamento para os pareceristas – para que seja examinado anonimamente –, e a publicação, pode haver anos, considerando uma série de idas e vindas de envios e correções. Em todas as fases desta jornada, erros e deficiências podem ser encontrados pelos editores, revisores e pela equipe técnica. Em qualquer etapa do processo, pode ser alegado que o artigo não sustenta o escrutínio rigoroso e ser rejeitado. Pesquisadores que estudam os índices de rejeição de periódicos acadêmicos mencionam uma taxa de 80% a 90% de rejeição como perfeitamente normal. Parte considerável dessas rejeições está relacionada a problemas de linguagem.[1]


Certa vez, fui flagrado por um parecerista de uma revista estrangeira. “Não é falante do inglês”, deduziu acertadamente com base em minha escrita truncada, metáforas turvas e erros de pontuação. Embora tenha recomendado correção e ressubmissão, o parecerista captou a minha dificuldade de “soar como nativo.” Fui flagrado, e o flagrante não deixou de ser interessante e um aprendizado.


Posso contar ainda um outro caso pessoal que pode ilustrar o problema. Em outubro de 2023, recebi um e-mail de uma amiga, falante nativa do inglês. O e-mail tinha comentários sobre um artigo que eu havia escrito em inglês. “Os dois primeiros parágrafos são muito intercalados com discurso relatado, o que torna o texto bastante nervoso,” escreveu ela. Longe disso, eu estava tentando apenas ser irônico ou quem sabe até engraçado. Sua percepção do meu texto me intrigou porque evidenciava diferenças entre o estilo de escrita acadêmica em humanidades em português e inglês. “Como regra geral, ao longo do artigo, eu só citaria algo literalmente se a citação tiver uma nuance linguística específica que seja importante transmitir, ou caso você esteja citando a teoria de alguém, onde parafrasear implicaria perder significado ou um sentido importante”, recomendou ela. “Seguir esta regra permitirá que sua voz seja transmitida com mais autoridade no texto e mostre que você está elaborando uma narrativa e dialogando com outros autores e teóricos, em vez de apenas montar um coro de vozes de outras pessoas”, concluiu. Sua recomendação é interessante porque exibe uma centralidade no autor, enquanto minha abordagem inicial enfatizava as fontes, justamente essas outras vozes.


Emília Viotti da Costa, na epígrafe da versão americana de Brasil Império: Mitos e histórias (1985), pensou nas dificuldades de escrever para uma audiência estrangeira como um problema genuinamente de “etiqueta” da linguagem. As diferentes tradições acadêmicas e historiográficas se manifestam em diferentes etiquetas: o que pode ser sinônimo de um recurso narrativo complexo numa tradição acadêmica pode ser sinal de pobreza em outra. Mas ela vai além, ao afirmar que o desafio maior nesses casos era converter a prosa brasileira, “mais sugestiva do que precisa, cheia de frases longas, muitas vezes escritas na voz passiva (a voz dos oprimidos que nunca sentem que estão fazendo história),” em frases curtas e assertivas, típicas do estilo americano.


São esses problemas que os imigrados brasileiros que produzem textos, seja na forma de canções ou de artigos historiográficos, precisam lidar. As tradições acadêmicas dão forma ao que consideramos digno de estudo, às questões que fazemos em nossas pesquisas e aos métodos que escolhemos, assim como aos mitos de nossas sociedades e ao público a que nos dirigimos. Quando escrevemos dentro de nossa própria tradição, produzimos textos para um interlocutor com quem partilhamos mais ou menos os mesmos pressupostos, códigos, ansiedades e perplexidades. Um público capaz de atribuir significado e completar os pontos silenciosos que permeia todos os textos.


Para Viotti, quando nos mudamos para outro país, “temos que fazer muito mais do que traduzir palavras ou imitar a forma estrangeira: temos que traduzir a nossa experiência.” Abdelfattah Kilito certamente estaria de acordo.


Latidos e vulnerabilidade. Uma combinação imagética antiga para mim. Popó, um poodle gigante que criávamos, certa vez rosnou para mim, uma criança de quatro anos. Foi a gota d’água para minha mãe. Ela acabou dando o animal para Alex, o rapaz que ajudava a transportar as compras da feira aos domingos. Antes disso, em uma tarde em que parte da família estava reunida no quintal de uma das muitas casas que morei na infância, o mesmo cachorro escapou da coleira e avançou sobre as visitas. Um primo que partia em retirada apavorado colidiu-se comigo. Como resultado, ganhei aos quatro anos uma longa cicatriz na cabeça, que tem se tornado cada vez mais visível diante do avanço da calvície. Quatro anos mais tarde, um outro primo me ensinaria um truque para evitar os cães. Para evitar que eles farejassem o medo que emitimos, bastava fechar os punhos. Adotei a tática. A cada latido ameaçador, cerrava os punhos e torcia para que me ignorassem. Nos Estados Unidos, diante das vulnerabilidades próprias do ser imigrante em um país que não gosta de imigrantes, passei a fazer o mesmo gesto.


 

Nota:

[1] CAMPOS, Luiz Augusto; CANDIDO, Marcia Rangel. Transparência em DADOS: submissões, pareceristas e diversidade no fluxo editorial dos últimos anos (EDITORIAL). Dados rev. ciênc. sociais 65 (1), 2022.


Referências:

CAMPOS, Luiz Augusto; CANDIDO, Marcia Rangel. Transparência em DADOS: submissões, pareceristas e diversidade no fluxo editorial dos últimos anos (EDITORIAL). Dados rev. ciênc. sociais 65 (1), 2022.

COSTA, Emilia Viotti da. The Brazilian Empire: Myths and Histories. Revised edition. Durham, N.C.: University of North Carolina Press, 2000.

 GRAFTON, Anthony. As origens trágicas da erudição: pequeno tratado sobre a nota de rodapé. Campinas: Ed. Papirus, 1998.

 KILITO, Abdelfattah. Dog Words. In: BAMMER, Angelika (Org.). Displacements: Cultural Identities in Question. Bloomington: Indiana University Press, 1994.


Como citar este artigo:  

BARBOSA, Caio Fernandes. Latidos. História da Ditadura, 5 fev. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/latidos. Acesso em: [inserir data].

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