Os gritos das Fúrias: quando o passado ditatorial é irrevogável
top of page
  • Foto do escritorTasso Brito

Os gritos das Fúrias: quando o passado ditatorial é irrevogável

Na mitologia romana, as Fúrias, também conhecidas como Erínias entre os gregos, eram os seres responsáveis por punir quem cometia crimes de sangue. Uma das formas de castigar aqueles que haviam cometido estes crimes consistia em perseguir o culpado berrando ao seu ouvido o nome da vítima. Elas não são entidades da vingança, Nêmesis é a divindade responsável por vingar. Porém, elas não são entidades da justiça, que seria a deusa Têmis. As Fúrias são seres de difícil definição, mas podemos pensá-las como divindades da denúncia e da punição. No nosso mundo, muito menos mítico, mas nem um pouco menos trágico, os familiares de mortos e desaparecidos políticos da Ditadura brasileira transformaram-se em verdadeiras Fúrias que gritam ao Estado brasileiro seus crimes.

Em meados da década de 1970, a questão dos mortos e desaparecidos políticos passou a ganhar visibilidade no debate público brasileiro. O que até então era um assunto privado, restrito ao âmbito familiar, passou a ter ressonância em espaços como a Comissão de Justiça e Paz (CJP), o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) ou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Com o fim da ditadura, no entanto, esta questão continuaria sem respostas: não havia corpos para os ritos fúnebres, não havia narrativas, não havia luto.


Fúrias. Autor: Tasso Brito.

A ditadura passou a ser alvo dos gritos das Fúrias: grupos que não conseguiam esquecer os mortos, esganiçavam suas vozes em direção ao Estado. Familiares e amigos dos desaparecidos políticos passavam a gritar os nomes de seus entes queridos no ouvido daqueles que detinham poderes estatais. Em muitos casos, essas Fúrias se contentariam apenas em saber o paradeiro dos corpos, receber uma certidão de óbito, viver o luto e continuar a vida.


Os familiares, em especial as mulheres – mães, irmãs e esposas –, transformaram a dor da perda em ação política. Como nos alerta o filósofo e psicanalista Vladmir Safatle, apenas os desamparados, os que não esperam benesses messiânicas ou soluções transcendentais, conseguem se apresentar ao fazer político. Neste sentido, os familiares se constituíram como um grupo de pressão política, atuando desde a distensão da ditadura até os dias hoje, ainda que, às vezes, esta atuação os tenha jogado em labirintos kafkianos, sem entradas ou saídas.


A literatura produzida por Bernado Kucinski é exemplar deste processo. Em K relatos de uma busca, o autor cria uma mistura de relato de memória, ficção e ensaio historiográfico para narrar a trajetória de um pai em busca da filha “desaparecida” pelos órgãos de repressão ditatorial. O romance é claramente inspirado no desaparecimento de sua irmã, Ana Kucinski, e nele acompanhamos o pai em sua busca inglória pela filha: cada pista e cada encontro são labirintos em que ele não pediu para entrar e dos quais é impossível sair, assim como acontece aos personagens kafkianos em O Castelo ou em O Processo.


Lápide no Cemitério de São Sapé- RS, feita pela família de Clion Cunha Brum. Clion é um dos desparecidos da Guerrilha do Araguaia.

O desamparo, a impossibilidade de cumprir os rituais funerários e a interdição ao luto geraram uma forma de experienciar o passado de forma irrevogável: trata-se de um passado que não passa, uma vez que é impossível esquecer. Por isso, os familiares se constituíram como verdadeiras Fúrias, esganiçando nos ouvidos da Nova República os nomes dos desaparecidos. Para eles, não há acordos e pactuações possíveis.


Assim, as famílias dos desaparecidos começaram a se organizar politicamente. Na década de 1990, por exemplo, muitas delas atuaram junto à Prefeitura de São Paulo ajudando a organizar os trabalhos na recém-descoberta Vala de Perus. Uma vala clandestina, localizada no cemitério Dom Bosco, no bairro do Perus, zona oeste de São Paulo, onde foram encontrados os restos mortais de prováveis “desaparecidos”, ainda não inteiramente contabilizados, mas somando-se cerca de mil sacos de ossadas. A descoberta impulsionou a criação de uma Comissão Parlamentar Externa na Câmara de Deputados, com a qual os familiares mantinham diálogo direto. Na campanha presidencial de 1994, as famílias dos desaparecidos conseguiram a atenção dos presidenciáveis para assinarem um documento se comprometendo com a causa. Fernando Henrique Cardoso foi eleito. Em março de 1995, sofria críticas de organizações internacionais como a Human Rights Watch e constantes queixas dos familiares. Segundo o próprio FHC, em seus Diários da Presidência, um texto publicado na revista Veja, escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado desaparecido Rubens Paiva, causou-lhe desconforto, ao ponto de não querer ler a matéria.


Diante das críticas, o governo federal propôs o Projeto de Lei nº 869/95, que daria origem a Lei nº 9.140, ela ficaria conhecida como Lei dos Mortos e Desaparecidos Políticos. O projeto foi negociado com a ala militar que compunha o governo de FHC, tendo como um dos principais interlocutores o general Zenildo Zorastra Lucena, ministro do Exército de Itamar Franco e do próprio Fernando Henrique Cardoso.


Na Câmara de Deputados, dois partidos protagonizaram o debate em torno do projeto de lei: o Partido dos Trabalhadores (PT), que apresentou seis das nove emendas, e o Partido Progressista Reformador (PPR), que apresentou as outras três. As propostas do PT visavam expandir a abrangência da lei para que as mortes como a de Carlos Lamarca e de Carlos Marighella entrassem no escopo do projeto, uma vez que o PL só reconhecia como vítimas da ditadura aqueles que foram mortos sob a tutela do Estado em instituições estatais ou assemelhadas. Propunha-se ainda atribuir capacidade de investigação aos familiares, que deveriam fornecer provas dos desaparecimentos, uma vez que os documentos da repressão estavam sob sigilo. Os deputados do PPR, por sua vez, e entre eles o atual presidente Jair Bolsonaro, propuseram emendas no sentido de reparar os familiares de quem foi morto por movimentos de oposição armada, como policiais, soldados e guardas de bancos, por exemplo. Assim, os defensores da ditadura ganhariam seus mártires para pleitear direitos.


O projeto de lei também criava uma comissão especial para atribuir indenizações financeiras aos familiares dos mortos e desaparecidos políticos. Os representantes destas famílias, assim como os das Forças Armadas, teriam cadeiras reservadas nesta comissão. Caso a proposta de Bolsonaro tivesse sido aceita, haveria a possibilidade destas cadeiras serem ocupadas por um possível defensor da ditadura.


Os familiares de mortos e desaparecidos, que continuaram na luta pela verdade e pela justiça, foram muito eficazes em inscrever os nomes de seus entes queridos na memória do período. Outras vítimas, no entanto, foram relegadas ao esquecimento na memória pública brasileira, caso comum entre os camponeses, que quando lembrados são apenas cifras no relatório da Comissão Nacional da Verdade.


Desse modo, há, na proposta de Bolsonaro, uma arquitetura da construção simbólica da vítima, pautada na concepção dos “dois demônios”. O termo “dois demônios” apareceu na Argentina da década de 1980, junto aos primeiros esforços de lidar com o passado ditatorial. Os dois demônios seriam dois lados dos conflitos, cada lado seria a fonte e a justificação da violência do outro, no meio desse fogo cruzado estaria a população. Na Argentina, essa concepção justifica o terrorismo do estado pelos movimentos de guerrilhas. Nessa mesma linha, o terrorismo do estado brasileiro seria justificado pelo terror do comunismo e da luta da guerrilha. Esta adaptação da teoria dos dois demônios esconde o terrorismo estatal como uma política ditatorial. A violência é um instrumento constitutivo da governabilidade ditatorial. Trata-se de uma memória comum no meio castrense, segundo a qual o período ditatorial foi marcado por uma guerra contra inimigos internos que queriam instalar o comunismo no Brasil. Nessa concepção, os militares apenas reagiram à escalada de violência promovida pelo outro lado, apresentando-se salvadores do Brasil. Recentemente essa concepção ganhou força e visibilidade, graças ao fortalecimento do bolsonarismo, que sustenta muitos de seus discursos através dessa memória.


O deputado Jair Bolsonaro não se opôs ao projeto de lei, apesar da distorção de sua proposta. Assim como para os familiares de mortos e desaparecidos políticos, o passado ditatorial é irrevogável para as forças conservadoras e protofascistas que assumiram o poder nas últimas eleições presidenciais. No momento em que vivemos, parece-me que a ditadura é um passado irrevogável para todos.


É por este motivo que coluna Depois das Ditaduras será um espaço para discutir as heranças, as memórias e os enfrentamentos ao passado ditatorial, que permanece insepulto nas disputas do nosso tempo e, por se tratar de uma batalha circunscrita em “um tempo que é o nosso próprio”, que se torna irrevogável para este que assina a coluna.


 

Referências


BEVERNAGE, Berbe. História, memória e violência de estado: tempo e justiça. Serra: Ed. Milfontes, 2018.

CARDOSO, Fernando Henrique. Diários da Presidência. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

CRENZEL, Emilio. La historia política del Nunca Más: la memoria de las desapariciones en la Argentina. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008.

GALLO, Carlos Artur. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça: Um estudo sobre o trabalho da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.

KUCINSKI, Bernardo. K, relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos, corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.


Crédito da imagem destacada: O remorso de Orestes - William Adolphe Bouguereau, 1862 Chrysler Collection, Norfolk.


403 visualizações
bottom of page