“Professora, aqui teve ditadura?”: a ditadura nos interiores e o ensino de História
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  • Foto do escritorDarlise Gonçalves

“Professora, aqui teve ditadura?”: a ditadura nos interiores e o ensino de História

Atualizado: 26 de jun. de 2022

O Brasil é um país de dimensões continentais, o que faz com que os anos da ditadura não tenham sido sentidos e vivenciados da mesma maneira do Oiapoque ao Chuí. Assim, em nem todos os cantos país, as Ligas Camponesas, os Grupos de Onze Companheiros, grupos de guerrilha rural, dentre outras formas de resistência, estiveram presentes. Isso não quer dizer que nesses espaços não existiu repressão, solidariedade, censura e tantos outros elementos intrínsecos àqueles vinte e um anos de regime (1964-1985).


Entretanto, a sociedade, em geral, ainda pauta suas visões em grandes mitos forjados no período: a ideia de dois polos opostos em enfrentamento – militares e luta armada – ainda é vigente, e “como consequência a História das ‘pessoas comuns’ é praticamente ignorada” (FICO, 2020, p. 33). Nessa leitura binária, cidades periféricas que não assistiram a expressivas ações da luta armada têm essa parcela de seu passado silenciado no âmbito das “narrativas hegemônicas”.


A falta desse conhecimento em nível local contribui para que haja certo distanciamento e até mesmo negação das novas gerações sobre essa temática ainda tão presente em nossa sociedade. Nesse cenário, a escola é uma importante aliada, que pode auxiliar na reversão desse panorama. Contudo, em alguns casos, quando há tempo para que seja abordado, o período ditatorial brasileiro é retratado como uma temática distante e completamente alheia à realidade prática dos educandos, sendo apresentado temporal e espacialmente afastado.


Propagada política da ditadura.

A partir dessa perspectiva, o passado recente brasileiro pode vir a ser encarado como um “problema que não é nosso” e que, logo, não nos diz respeito, pois se encerrou em 1985, segundo a cronologia mais aceita pelos historiadores. Aliás, o material didático é um relevante formador do imaginário histórico dos educandos. Nesse sentido, ao vincular em seus discursos elementos desse passado que dizem respeito majoritariamente à região Sudeste, acaba por restringir as percepções dos reflexos desse período a uma única localidade.


Seja como for, esse não é o único problema para o ensino do passado ditatorial local: questões como a falta de materiais de apoio e de acesso dos profissionais de educação às produções acadêmicas mais recentes são, sem dúvida, grandes obstáculos encontrados para essa mudança de enfoque na abordagem do tema. Acrescido a estes, outro elemento que deve ser levado em conta é o fato de que, em muitos casos, há significativa resistência dos professores em trabalhar “temáticas sensíveis”, sobretudo em tempos de fortes perseguições a docentes acusados de “doutrinadores”, e tantas outras “aberrações” apoiadas na forte onda de negacionismos que temos vivenciado nos últimos anos. Todavia, os chamados “temas sensíveis” devem sim adentrar nossas salas de aula, pois tais discussões contribuem significativamente para a construção de uma sociedade mais justa, tolerante e que respeite os Direitos Humanos.


Mas em linhas gerais: o que é um tema sensível? É sensível para quem?

No que diz respeito à primeira pergunta, essa definição não é algo encaixotado, porém alguns fatores podem ser elencados enquanto atributos de um tema sensível como, por exemplo: 1) a vivacidade da questão na sociedade; 2) as disputas de memória que o cercam; 3) seu recorrente aparecimento nas mídias e a falta de consenso que o tema gera na sociedade. Já quanto ao segundo questionamento, podemos afirmar que um tema sensível não toca a toda uma sociedade da mesma forma, pois podem estar atrelados à formação de identidades e pertencimentos, assim alguns são mais delicados para um grupo social que para outros.


Diante desses dois questionamentos a ditadura pode ser considerada um tema sensível? A própria complexidade das vivencias e das atitudes sociais naqueles longos 21 anos, podem fazer com que para muitas pessoas não seja algo sensível. Vamos observar o problema a partir da logica da “gente comum” que viveu “calmamente” sua vida cotidiana no interior, que nunca presenciou uma expropriação bancária para fins revolucionários; que ouviu falar da morte de algum “terrorista” que cometeu suicídio em alguma capital como algo distante; e que tinha a percepção de que a guerrilha urbana era coisa de cidade grande. Talvez, para essas pessoas, esse período não tenha sido “traumático”, dentro da lógica de que a ditadura foi um enfrentamento entre a oposição armada e a repressão. Seus problemas seguramente eram outros. É possível que nossos avós nos relatem as dificuldades para manter o orçamento doméstico diante do elevado custo de vida do final dos anos 1970, ou talvez, assim como o meu avô, eles falem que ser associado ao PTB ou ao “doutor Brizola” durante os anos 1960 te levava para o “xilindró”. O fato é que, na maioria dos casos, não existe a clara percepção de que esses problemas, temores e receios estão diretamente associados ao estado de exceção vivenciado. Assim, essa ideia é transmitida ao longo das gerações sem muita clareza a respeito de sua verdadeira raiz.


Cena de “A grande família”, série de televisão exibida nos anos 1970.

Diante disso, como trabalhar essas cicatrizes? Que lugar os traumas nacionais ocupam na sala de aula?


Todo professor sabe (ou deveria saber) que não existem receitas para o trabalho em uma sala de aula. De todo modo, ao pensarmos a ditadura a partir de uma perspectiva local, alguns pontos de partida podem ser considerados, como o tema do “Milagre Econômico”, por exemplo. Sua repercussão na época fez com que seus projetos e recursos chegassem a várias partes do Brasil; mesmo que, na prática, tenha beneficiado apenas uma parcela muito pequena da população nacional, gerou empreendimentos que existem até hoje e que foram bem capitalizados em forma de propaganda do governo naquele período. Assim, apoiada na retórica de um “Brasil Grande”, a ditadura se fez sentir nos mais remotos rincões do país. Essas são questões que podem aparecer em uma aula de História voltada para o âmbito local, onde em uma volta pela cidade em que se vive seja possível mapear prédios e monumentos que surgiram durante o “Milagre”, fazendo com que a aula de História ganhe um significado mais concreto. Além disso, dependendo do lugar em que se vive, outros elementos, como os nomes das ruas, podem vir a aparecer durante esse “tour histórico” e desencadear outras discussões.


Outra estratégia de abordagem que podemos sugerir é a apresentação de fontes jornalísticas que tragam nuances de como a ditadura era retratada na imprensa local. Sabe-se que a imprensa é uma forte formadora de opinião, logo tem significativa parcela de colaboração na “versão oficial” que foi difundida e reproduzida ao longo dos anos de ditadura. De acordo com Selbach e Brum, uma leitura atenta da fonte jornalística, em contraste com fontes de outras naturezas, permite desvelar o “processo de doutrinação simbólica que se constrói através de pressupostos impostos como óbvios e inevitáveis, não de forma arbitrária, mas tornados reconhecidos de forma natural” (2017, p.15). Portanto, é importante entendermos o jornal como um forte formador da opinião local, bem como da memória que se fixou do período, em um contexto de reduzidos meios de obtenção de outras informações que exercessem contraponto àquelas apresentadas nas páginas da imprensa local. Isso faz com que os jornais sejam uma fonte riquíssima para a discussão de vários temas que perpassaram os 21 anos de ditadura no país (como o Milagre, o AI-5, o custo de vida nos anos 1970, entre outros).


Outra boa aliada para a investigação da vida cotidiana nos “pacatos” interiores é a História Oral. Dentre as múltiplas possibilidades que essa metodologia nos permite desvelar tomaremos como exemplo o processo de abertura política em cada região, a partir da formação local dos partidos ao longo da década de 1980. Nesse caso, os próprios educandos podem realizar entrevistas, indagando familiares sobre a primeira eleição em que tiveram oportunidade de votar, os elementos daquele processo, os primeiros comícios, dentre tantas outras questões. Também se pode contar com a memória daqueles que estiveram diretamente envolvidos nesses episódios (vereadores, prefeitos, cabos eleitorais etc.), convidando-os a realizar uma fala na aula de História.


É muito importante estimular o educando a participar do processo de aprendizagem, pois isso aguça a criatividade e a curiosidade, além de construir pontes entre passado e presente, melhorando a aprendizagem histórica. Por fim, gostaríamos de destacar que essas são apenas algumas sugestões dentre o universo de possibilidades que pode ser explorado pelos educadores para tratar do passado que ocorreu no “quintal de casa”. A escola é um dos espaços mais propícios para o debate e a reflexão crítica de tantas outras temáticas “sensíveis”, sendo uma bela porta de entrada para o processo de reversão do panorama de negações, relativizações e distorções desse passado que temos vivenciado.


 

Notas:

1. A questão do acesso a novas pesquisas acadêmicas e da busca de materiais para além do livro didática é algo que, devido a sua complexidade, merece uma reflexão a parte desta. Mas antes que o leitor caia na armadilha de justificar essa falta como desinteresse por parte dos docentes, gostaríamos de colocar o argumento da sobrecarga de trabalho a qual estão expostos muitos profissionais da educação pública e o engessamento dos programas de ensino na educação privada que reduzem as possibilidades de novos horizontes para alguns debates. Entretanto esses dois elementos não resolvem por completo essa equação, são apenas uma das muitas pontas desse emaranhado de fios.


2. Nem todas as cidades possuem acervos que salvaguardam materiais oriundos da imprensa local. Assim, diante da inexistência desse tipo de fonte, recomendamos a utilização da Hemeroteca Digital, da Biblioteca Nacional.


Referências:

FICO, Carlos. Ditadura militar: prefácios, palestras e posts. Ebook Amazon, 2020.

SELBACH, Jeferson Francisco; BRUN, Rosimary Fritsch. Ruralização e Viver em Fronteira: Jaguarão/RS. Porto Alegre: Editora Animal, 2017.

Como citar este artigo:

GONÇALVES, Darlise. “Professora, aqui teve ditadura?”: a ditadura nos interiores e o ensino de História. História da Ditadura, 23 jun. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/professoraaquiteveditaduraaditaduranosinterioreseoensinodehistoria . Acesso em: [inserir data].




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