Trajetórias negras no pós-abolição: a construção de uma cidadania
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  • Foto do escritorRamom Moreira

Trajetórias negras no pós-abolição: a construção de uma cidadania

Este texto propõe uma breve reflexão sobre a luta por construção de uma cidadania negra no Brasil ao longo do século XX. Neste aspecto, busco pontuar a importância dos movimentos negros para a efetivação de projetos de cidadania que incluíssem a população afro-brasileira, tendo em vista que, no pós-abolição, esta não foi efetivamente inserida em um projeto nacional.


As ações empreendidas por militantes negros no pós-abolição foram um importante aglutinador de forças, influenciando diretamente a elaboração de um posicionamento político que, em grande medida, pode ser analisado a partir do viés classe/raça. Com isso, foi possível observar um rompimento com o pensamento hegemônico predominante até então.


A historiografia brasileira sobre o período escravista e o pós-abolição evidencia que as trajetórias de homens e mulheres negros(as) se constituíram por suas lutas, que foram empreendidas de diferentes maneiras. Se durante a vigência da escravidão a resistência se fazia necessária para a conquista da liberdade, no pós-abolição essa luta se configurou no esforço contínuo pelo direito à cidadania, pelo acesso à terra e pelas políticas de reparação em diversos campos de sua existência.


Vendedoras em rua do Rio de Janeiro em 1875. Autor: Marc Ferrez. Acervo: Instituto Moreira Salles. Reprodução.

Desde as últimas décadas do século XIX, a população negra buscou se inserir no projeto de país que foi possível vislumbrar a partir dos debates acerca dos ideais republicanos. Com a instalação da República, em 1889, a exclusão de homens e mulheres negros(as) permaneceu amparada no pensamento da elite intelectual da época. Nesse período, vigoravam as ideias evolucionistas e de superioridade caucasiana em detrimento da raça negra (SCHWARCZ, 1993).


A população negra era vista como prejudicial à formação de uma sociedade civilizada, pois era tida como ociosa, vadia e sem moralidade. Segundo René Silva (2013, p. 232), a “moderna fundação da nação brasileira e a implantação do mercado de trabalho capitalista no Brasil nascem, portanto, sob a égide de um nacionalismo étnico em torno da ideia de raça como conceito central para pensar o desenvolvimento e o futuro do país”. Desta maneira, mesmo após a abolição, os negros continuaram sem acesso à educação, à saúde, ao trabalho formal e, também, sem condições para aquisição de terra.


A partir da primeira metade do século XX, nos meios urbanos, começaram a surgir grupos que se mobilizavam em torno das demandas da população afro-brasileira. Ao mesmo tempo, buscavam denunciar a exclusão social e o racismo. Nesse sentido, é necessário destacar o papel da imprensa negra – especialmente na cidade de São Paulo – e a criação da Frente Negra Brasileira (FNB). Ambas colocavam em questão a maneira como os agentes do Estado perpetuavam as estruturas sociais que mantinham negros e negras excluídos do projeto nacional e, por essa razão, foram duramente reprimidas. O padrão de violência contra organizações negras permaneceu vigente ao longo de todo o século XX. Ainda assim, movimentos sociais negros pipocavam por diferentes pontos do país.


Como visto ao longo do século XX – apesar dos entraves impostos por dois períodos ditatoriais (1937-1945 e 1964-1985) –, diversas frentes que se pautavam pela causa das populações negras se organizaram em diferentes pontos do país. A partir de 1978 temos então o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU), que tinha como ponto de partida as denúncias de desigualdade racial e a violência policial contra a população negra, bem como as críticas ao “mito da democracia racial”. O MNU significou um marco incontornável da história recente do Brasil, tendo proposto a unificação das lutas de organizações antirracistas. O objetivo principal era fortalecer o poder político do movimento negro (OLIVEIRA, 2005).


A partir da década de 1970, a discussão central proposta pelo MNU, bem como por outras entidades que representavam os negros e as negras brasileiros(as), era a refutação da ideia de que o país era um paraíso racial, livre de preconceito de cor. A imagem do Brasil como paraíso racial era fruto da propagação do mito da democracia racial, criado na primeira metade do século XX, mas amplamente difundido pela ditadura imposta ao país após o golpe civil-militar ocorrido em 1964. Por este aspecto, podemos afirmar que o mito da democracia racial foi efetivamente utilizado pelo governo militar como mecanismo ideológico, que, em grande medida, contribuiu para a efetivação de práticas de controle e de violência do Estado contra pessoas negras.


Movimento Negro Unificado contra o racismo, em 1978. Arquivo Público do Estado de São Paulo/Divulgação.

Assuntos relacionados à raça e ao racismo foram entendidos pelo governo militar como atos subversivos que, nessa perspectiva, atenderiam às demandas do comunismo internacional. Assim, as denúncias feitas pelos movimentos negros, ao evidenciarem as mazelas vividas pela população negra brasileira, iam na contramão das ideias ufanistas propagadas pelo regime e colocavam em descrédito o mito da democracia racial (NASCIMENTO, 1978; PIRES, 2018).


Com o fim do regime militar, o país movimentou-se na (re)construção democrática de suas instituições. No cenário desta luta, estavam os movimentos sociais envolvidos em questões étnicas e na viabilidade do acesso à terra para diversas comunidades negras rurais e urbanas. Neste aspecto, tivemos mobilizações sociais sistemáticas para a construção de uma cidadania negra no Brasil por vias democráticas. Além do MNU, políticos que compunham a bancada negra no Congresso Nacional – como Abdias do Nascimento, Benedita da Silva (PT – RJ), Carlos Alberto Caó (PDT-RJ), Edmilson Valentim (PCdoB-RJ) e Paulo Paim (PT-RS) – levaram as demandas da população negra para a Assembleia Nacional Constituinte.


O Movimento Negro Unificado, diferentemente de outros movimentos sociais voltados para as questões trabalhistas, articulou seus atores sociais em prol da construção de uma identidade negra, mobilizando sua ancestralidade e seus saberes. Sua destacada atuação durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte representou um importante ganho para a população negra brasileira. Ainda que muitas de suas reivindicações tenham sido soterradas, a Constituição de 1988 proporcionou avanços significativos em termos legais para que as necessidades da população afro-brasileira fossem consideradas na Carta (GOMES; RODRIGUES, 2018).


Como pode ser observado, o MNU buscou congregar diversas organizações antirracistas em diferentes esferas. Nesse sentido, atentamos para as demandas das comunidades negras rurais, entendendo que as questões fundiárias que envolviam essa camada de afro-brasileiros perpetuavam uma antiga lógica de exclusão e marginalização de homens e mulheres despossuídos do direito às terras onde habitavam de forma ancestral. A lei de terras de 1850 inviabilizava a regulamentação da posse das terras em que a população negra vivia de forma individual ou coletiva ao longo dos últimos séculos.


Portanto, a Constituição de 1988 representou um marco decisivo no que diz respeito à luta por acesso à terra. O artigo 68 dos Atos Dispositivos Constitucionais Transitórios escancarou os problemas que envolviam as comunidades negras rurais e as questões fundiárias no país, até então silenciadas. Assim, o artigo é evocado como tentativa de solucionar os problemas de territorialidade dessas comunidades ou, como sugere Arruti (2006), produzir novos sujeitos políticos etnicamente diferenciados.


Benedita da Silva no Congresso Nacional, em 1987. Foto: Divulgação/Assessoria.

A elaboração da carta constitucional brasileira promulgada em 1988, em especial o artigo 68 do ADCT, representou uma grande vitória para o movimento negro em suas diferentes frentes de luta, tanto no campo como nas cidades. O documento passou a reconhecer o Brasil como sendo um Estado pluriétnico, além de promover o “reaparecimento” das comunidades quilombolas a partir das vias legais.


A respeito das comunidades negras rurais, o artigo 68 do ADCT apresenta as novas concepções da CF/88 acerca da terra, sendo esta entendida não apenas com fins privados, mas também reconhecendo os seus usos para além da lógica capitalista. É nesta perspectiva que se incluiu a proposta para o reconhecimento das terras quilombolas, como ganho das lutas travadas ao longo da história por movimentos liderados pelos próprios cativos e diversos outros segmentos sociais.


O artigo 68 abriu uma gama de possibilidades para que o Estado, amparado em dispositivos legais, fizesse valer o cumprimento dos direitos conquistados pelos negros. Direitos estes inexistentes até 1988.


A garantia desse direito é fruto, a partir da década de 1970, da sinergia entre os movimentos sociais negros, as lutas localizadas das comunidades negras rurais – já bastante significativas neste momento no Pará e Maranhão – e mudanças político-institucionais e administrativas inauguradas, sobretudo com a Constituição de 1988 [...]. Posteriormente, o decreto presidencial 4.887/2003 regulamenta o procedimento para “Identificação, Reconhecimento, Delimitação, Demarcação e Titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos” (GOMES e MARQUES, 2013, p. 137).

O direito ao reconhecimento, à demarcação e à titulação das terras já ocupadas representa uma grande conquista após três séculos de luta. Outro fator importante foi o novo termo utilizado para designar estes agrupamentos, isto é, “remanescentes das comunidades quilombolas”. Os quilombos não deveriam então estar necessariamente atrelados àquilo que foi definido pela historiografia, em um primeiro momento, sobre o conceito e a formação dos quilombos. Neste sentido, os remanescentes quilombolas seriam os grupos que foram mobilizados em torno do autoreconhecimento, tendo como ponto fulcral a defesa de seu território/territorialidade, podendo ter relação direta, ou não, com os antigos espaços constituídos por trabalhadores escravizados que se rebelavam e fugiam.


O assunto concernente aos quilombos e ao seu simbolismo contra as forças repressivas tomaram o cenário dos discursões ao longo da Assembleia Nacional Constituinte na década de 1980. Com isso, o tema reabriu uma série de debates acerca das comunidades negras e de seu acesso à propriedade/territorialidade, principalmente porque os quilombos foram adotados como símbolo de luta pelo MNU. Desta maneira, reforçaram-se os estudos que buscavam compreender a estruturação dos quilombos durante o período colonial e como se deu a sua continuação no pós-abolição.


Como podemos observar até aqui, o pós-abolição constituiu-se como período de lutas e embates entre a população afro-brasileira e os mecanismos de Estado que, durante muito tempo, buscou a perpetuação de antigas práticas excludentes. As mobilizações feitas por negros e negras em diferentes momentos da história do Brasil indica que a construção da cidadania negra, a começar pelo direito ao acesso a posse da terra, não se deu de forma rápida ou livre de tensões.


Em meu próximo texto para esta coluna, voltarei de modo mais detido aos assuntos referentes ao Artigo 68 do ADCT/CF 88, bem como à ressignificação do termo quilombo e à construção da cidadania em torno da posse da terra.

Créditos da imagem destacada: Reprodução Revista Raça.

 
  1. Abdias do Nascimento é considerado o primeiro congressista a denunciar explicitamente as mazelas vivenciadas pela população negra brasileira e a defender políticas sociais que buscasse promover a equidade étnico-racial. (GOMES; RODRIGUES, 2018)



REFERÊNCIAS



DOMINGUES, Petrônio; GOMES, Flávio. Histórias dos quilombos e memórias dos quilombolas no Brasil: revisitando um diálogo ausente na lei 10.639/031. Revista da ABPN, Goiânia, v. 5, n. 11, p. 05-28, jul./out. 2013.


GOMES, Lílian. MARQUES, Carlos Eduardo. A Constituição de 1988 e a ressignificação dos quilombos: limites e potencialidades. RBCS. vol. 28 n. 81 fevereiro/ 2013.


GOMES, Nilma Lino; RODRIGUES, Tatiane Constantino. Resistência democrática: a questão racial e a Constituição Federal de 1988. Educ. Soc., Campinas, v. 39, n. 145, p. 928-945, out.-dez., 2018.


OLIVEIRA, Osvaldo Martins de. O projeto político do território negro de retiro e suas lutas pela titulação das terras. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH). Florianópolis, 2005.


PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Estruturas intocadas: racismo e ditadura no Rio de Janeiro. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, 2018, p. 1054-1079.


SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo. Companhia das Letras, 1993.


SILVA, René Marc da Costa. A Constituição de 1988 e a discriminação racial e de gênero no mercado de trabalho no Brasil. Revista de Informação Legislativa, n. 50, ano 200, out./dez. 2013, p. 239-248.



Como citar este artigo:

MOREIRA, Ramom. Trajetórias negras no pós-abolição: a construção de uma cidadania. História da Ditadura, 17 jan. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/trajetoirias-negras-no-pos-abolicao-a-construcao-de-uma-cidadania. Acesso em: [inserir data].


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