O Caso Ellwanger: os juízes não são historiadores, mas a História deve ser respeitada
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  • Foto do escritorJúlia Guimarães

O Caso Ellwanger: os juízes não são historiadores, mas a História deve ser respeitada

Atualizado: 8 de dez. de 2022

Em 2003, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou um de seus precedentes mais importantes no que ficou conhecido como Caso Ellwanger. Siegfried Ellwanger foi escritor e editor, além de dono da Revisão Editora, que, sediada na cidade de Porto Alegre, estabeleceu-se como veículo central para a publicação de obras antissemitas, nazistas, integralistas e negacionistas da História no Brasil (JESUS, 2006). Denunciado pelo Ministério Público (MP) do Rio Grande do Sul no ano de 1991, o editor foi acusado de racismo por publicar obras de caráter antissemita. Entre as obras elencadas pelo MP estavam: O judeu internacional, de Henry Ford; A história secreta do Brasil e Brasil: colônia de banqueiros, ambos de Gustavo Barroso (sim, o integralista!); Os protocolos dos sábios de Sião, editado por Barroso; Hitler: culpado ou inocente?, de Sérgio Oliveira; Os Conquistadores do mundo: os verdadeiros criminosos de guerra, de Louis Marschalko; e Holocausto: judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século, de autoria do próprio Ellwanger (PINHEIRO, 2013).


Siegfried Ellwanger foi condenado a quase 2 anos de reclusão. Reprodução.

Em 1995, após a denúncia realizada pelo Ministério Público, Ellwanger foi absolvido na primeira instância sob a argumentação de que suas obras apresentavam caráter historiográfico e a liberdade de expressão protegia sua veiculação, mas os assistentes de acusação recorreram de tal sentença. Assim, o Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul reformou a decisão e condenou o editor. O Superior Tribunal de Justiça confirmou a condenação, de modo que o Supremo Tribunal Federal era a última instância possível para a discussão da questão.


No ano de 2003, por oito votos a três, o STF negou o pedido de habeas corpus impetrado pela defesa do editor, mantendo a condenação de Ellwanger pela prática do crime de racismo e estabelecendo, a partir do julgamento, importantes marcos para decisões futuras do Tribunal. Esses marcos não diriam respeito apenas a questões processuais e normativas do Direito, mas a discussões ligadas à imagem da Corte frente à sociedade, à História e à secular controvérsia entre as funções a serem exercidas pelo juiz e pelo historiador.


Em termos normativos, a decisão foi paradigmática: por um lado, ampliou a compreensão do alcance do crime de racismo ao incluir o antissemitismo em seu conceito; por outro, estabeleceu que o direito à liberdade de expressão não é ilimitado, uma vez que ele não abarca o direito à incitação do racismo e nem a práticas que ferem a dignidade humana.


Quanto à imagem da Corte perante a sociedade, o Caso Ellwanger foi um dos primeiros julgamentos a serem televisionados pela recém-criada TV Justiça, que contribuiu para a ampliação da imagem dos ministros e da Corte como figuras-chave na história brasileira pós-ditadura. Não apenas a sociedade estaria próxima do Tribunal, mas o Tribunal se faria próximo da sociedade com decisões cada vez mais espetacularizadas e calcadas, inconstitucionalmente, em argumentos de natureza política. Por falar em ditadura, uma curiosidade interessante e que também circunscreve o Caso: durante esse julgamento, os dois últimos ministros indicados pela ditadura civil-militar e que ainda compunham o Tribunal, Sydney Sanches e Moreira Alves, aposentaram-se, sendo substituídos por indicações do presidente Lula (ARGUELHES, 2021).


No que tange à História, a decisão caminha para a profunda discussão sobre as diferenciações e compatibilizações entre as funções do juiz e do historiador, que ascendeu, sobretudo, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial com o julgamento dos crimes contra a humanidade praticados pelos nazistas. Não obstante as compatibilidades e incompatibilidades apontadas por diversos historiadores – como Marc Bloch, Pierre Nora, Paul Ricoeur, Henry Rousso, Carlo Ginzburg, dentre outros –, um ponto parece ser comum nas considerações sobre a questão: os juízes não são historiadores e os historiadores não são juízes. Mas será que nossos juízes leram, ao menos, um desses autores ou reconhecem tal diferenciação?


Se não leram, citaram em duas instâncias diferentes – STJ e STF – um historiador que nomearam como Marc “Block”. Além da grafia incorreta que esteve presente em dois votos, Bloch é referenciado de maneira descontextualizada e equivocada mesmo quando utilizado na sustentação de que as obras publicadas por Ellwanger não possuíam caráter historiográfico (PINHEIRO, 2013). Tal questão é observada, sobretudo, na frase que segue:


Fique claro, desde logo, que não se trata de obra historiográfica. O autor professa o que MARC BLOCK (sic) denomina ‘superstição da causa única’ (...) e tudo o que pretende é responsabilizar o judaísmo pelas desgraças passadas, presentes e futuras da humanidade. (BRASIL, 1991 apud PINHEIRO, 2013, p. 162).

Esse argumento se encontra presente no acórdão proferido pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e é reproduzido, em cópia integral, nos votos dos Ministros Jorge Scartezzini do STJ e Gilmar Mendes do STF. A transcrição de tal argumentação não foi acompanhada sequer de correção gráfica, o que demonstra a despreocupação dos magistrados no trato da História. Isso se aprofunda ainda mais quando se constata que o Marc Bloch ao qual se pretendia referir não compreendia a “superstição de causa única” como determinante da historicidade ou não de uma obra (PINHEIRO, 2013).


Contudo, não obstante a menção incorreta e esparsa à Teoria da História, uma questão é ainda mais problemática: ao final, quem determina a historicidade ou não das obras publicadas por Ellwanger são os próprios juízes, conforme evidencia o trecho: “Fique claro, desde logo, que não se trata de obra historiográfica” (BRASIL, 1991 apud PINHEIRO, 2013, p. 162). Contudo, caberia ao juiz realizar essa apreciação? Não estaria ele ocupando a função do historiador?


Mesmo que o caso em questão tratasse fundamentalmente da apreciação da prática ou não do crime de racismo com a publicação de obras antissemitas, a discussão sobre o caráter historiográfico dos livros editados por Ellwanger entrou em cena, sobretudo quando aventada pela defesa a ideia de uma liberdade de expressão para as obras historiográficas, incluindo aquelas que propunham “novos pontos de vista”. Novos pontos de vista?


Sob as vestes da proposição de uma nova abordagem historiográfica, o negacionismo histórico, expressão cunhada por Henry Rousso para se referir aos que negavam o holocausto, tornou-se um fenômeno significativo nos debates sobre história na década de 1980. Entende-se por negacionismo, nos termos do historiador Marcos Napolitano, a “estratégia de negação a priori de um consenso científico” (Negacionismo histórico, 2022, p. 457).


Partindo desse conceito, é possível compreender que as obras de autores como David Irving, Paul Rassinier, Maurice Bardèche, Robert Faurisson, dentre outros, estão inseridas nessa tradição mesmo que esses autores reivindiquem para si o título de revisionistas da história – já que, em termos gerais, eles elidem os nazistas de sua responsabilidade sobre os extermínios em massa, bem como se utilizam do antissemitismo para construção de suas mitologias (VALIM; AVELAR; BEVERNAGE, 2021). Assim, não há que se falar em um revisionismo histórico, que não obstante seja compreendido pelo historiador Enzo Traverso (2017) como uma palavra camaleão, se refere a um processo de revisão do conhecimento histórico (NAPOLITANO, 2021), e não a uma distorção deste como é proposto pelos negacionistas.


Esses autores negacionistas aparecem como os mais citados em uma das obras escritas por Ellwanger e que foi objeto de análise do Supremo Tribunal Federal no caso em questão: Holocausto: judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século. Nesse sentido, vale recordar que o próprio nome da editora pertencente a Ellwanger, Revisão, remete ao típico discurso dos negacionistas do Holocausto: supostamente, tratava-se de um “revisionismo historiográfico”. Todavia, em tempos de uma governamentalidade negacionista (VALIM; AVELAR, 2020), em que o negacionismo se transforma em política de Estado, deve-se chamar a coisa pelo nome – negacionismo! –, tal como o fez Pierre Vidal-Naquet (1988) em relação aos negadores da Shoah. Ellwanger seria, então, nosso Eichmann de papel?


Para os ministros Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio Mello, o livro Holocausto: judeu ou alemão? Nos bastidores da mentira do século teria caráter científico visto que ela realizou citações, dispôs de fotografias, recorreu a revistas, livros e documentários. Tais características, por óbvio, não conferem um teor historiográfico a uma obra, o que demonstra a falta de preocupação por parte dos magistrados com a ausência de crítica documental nos escritos de Ellwanger.


Ayres Britto e Marco Aurélio foram votos vencidos no julgamento. Contudo, os demais ministros, mesmo que pontuando o caráter não historiográfico da obra em questão, não o fizeram de maneira metodologicamente consistente e crítica. Suas decisões se basearam na perícia de dois pareceres atribuídos a Miguel Reale Júnior e a Celso Lafer, que, contudo, não eram pareceres historiográficos.


Além dos pareceres em questão não terem sido juntados aos autos do processo, eles foram considerados pelos julgadores como imparciais sem quaisquer críticas às fontes em questão. Ocorre que Miguel Reale Júnior é filho de Miguel Reale, um dos principais interlocutores de Gustavo Barroso, o integralista cujas obras antissemitas foram publicadas por Ellwanger (CALDEIRA NETO; GONÇALVES, 2020). Assim, o parecer de Reale Júnior, por exemplo, deslocou “o foco de Barroso, recusando-se, inclusive, a comentar as suas obras apreendidas em questão.” (PINHEIRO, 2013, p. 217). Celso Lafer, discípulo e ex-aluno de Miguel Reale, por sua vez, demonstra em seu parecer que “o antissemitismo estava adstrito à vertente barrosiana, mostrando certa leniência com as teses defendidas por Miguel Reale de que o capital internacional estava nas mãos de judeus exploradores.” (PINHEIRO, 2013, p. 247)



De tal modo, mesmo que a decisão tenha firmado importantes precedentes em termos jurídicos ao incluir o antissemitismo como uma prática do crime de racismo, ela incorre em erros graves, já que os juízes se arvoraram da função de historiadores ao definirem o que seria ou não uma obra historiográfica, o que ocorreu sem qualquer fundamentação consistente ou referência correta à historiografia. Assim, os magistrados mostraram pouco rigor, sobretudo, ao se valerem de dois pareceres sem quaisquer críticas aos livros de Ellwanger.


A partir desse caso, verifica-se a centralidade que os argumentos históricos possuem na decisão, já que eles não são apenas ornamentais ou meras discussões teóricas: ao fundamentar julgamentos, os argumentos históricos assumem uma dimensão prática e, portanto, jurídica. Não se trata apenas de uma discussão de historiadores, já que as implicações na seara do Direito são evidentes, mas, contudo, também não se limita a uma discussão de juristas, visto que a verdade histórica apresenta, sobretudo no caso em questão, uma centralidade discursiva.


Apesar do Caso Ellwanger ter tido como um de seus desfechos a descaracterização das obras publicadas como portadoras de caráter historiográfico, o que se deu por vias tortas, pensa-se nos impactos que a caracterização contrária poderia ter. Assim, o Poder Judiciário não apenas chancelaria o que seria ou não histórico, como no caso em questão, mas chancelaria o próprio negacionismo.


Assim, resta o alerta: os juízes não são historiadores, mas devem respeitar os pressupostos ético-epistemológicos da História sob pena de fragilizar suas próprias construções argumentativas e dinamitar o passado.


 

Créditos da imagem destacada: Vitor Teixeira. Blog da Editora Boitempo. Reprodução.



REFERÊNCIAS:


ARGUELHES, Diego Werneck. Ellwanger e as transformações do Supremo Tribunal Federal: um novo começo?. Revista Direito e Práxis, Ahead of print, Rio de Janeiro, 2021.


CALDEIRA NETO, Odilon; GONÇALVES, Leandro Pereira. O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020.



NAPOLITANO, Marcos. Negacionismo e revisionismo histórico no século XXI. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Novos combates pela história: desafios – ensino. São Paulo: Contexto, 2021. p. 85-111.


NEGACIONISMO HISTÓRICO. NAPOLITANO, Marcos. In: SZWAKO, José; RATTON, José Luiz (Orgs.). Dicionário dos Negacionismos no Brasil. Recife: Cepe, 2022, p. 231-235.


PINHEIRO, Douglas Antônio Rocha. Às margens do Caso Ellwanger: visão conspiracionista da história, ecos tardios do integralismo e judicialização do passado. 2013. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília. 2013.


TRAVERSO, Enzo. Revisão e revisionismo. In: SENA JÚNIOR, Carlos Zacarias de; MELO, Demian Bezerra de; CALIL, Gilberto Grassi. Contribuição à crítica da historiografia revisionista. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2017, p. 27-37.



VALIM, Patrícia; AVELAR, Alexandre de Sá; BEVERNAGE, Berber. Negacionismo: História, historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História, São Paulo, V. 42, nº 87, p. 13-36, 2021.


VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória: um Eichmann de papel e outros ensaios sobre o revisionismo. Campinas: Papirus, 1988.



Como citar este artigo:

GUIMARÃES, Júlia. O Caso Ellwanger: os juízes não são historiadores, mas a História deve ser respeitada. História da Ditadura, 7 nov. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/o-caso-ellwanger-os-juizes-nao-sao-historiadores-mas-a-historia-deve-ser-respeitada. Acesso em: [inserir data].


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