O segundo ato: a nova onda progressista latino-americana na perspectiva brasileira
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  • Foto do escritorLuís Felipe Machado de Genaro

O segundo ato: a nova onda progressista latino-americana na perspectiva brasileira

Quando Luíz Inácio Lula da Silva terminou o seu discurso na Avenida Paulista, momentos após o anúncio de sua terceira vitória nas eleições presidenciais, a impressão que os espectadores tinham era de que se abria, naquela noite de 30 de outubro de 2022, uma fenda na história brasileira.


Lula, Alckmin e Dilma, após discurso da vitória: "juntos seremos capazes de consertar este país, e construir um Brasil do tamanho dos nossos sonhos". Foto: Ricardo Stuckert.

Lula representa a liderança progressista latino-americana na sua inteireza: o sobrevivente da seca e da fome que se constrói operário e sindicalista, que passa a liderar greves, afrontar a ditadura e o patronato. Um homem que funda um partido de massas e que disputa eleições sempre próximo de movimentos sociais por terra e moradia, mas também de figuras carimbadas do poder. Ele mesmo tornou-se uma figura carismática que se mescla com a própria história de um país tão violentado por oligarquias – representantes fiéis da classe dominante brasileira.


Fábio Konder Comparato, em A oligarquia brasileira: visão histórica (2018), frisa que Lula é “um intruso” no regime oligárquico, tendo sido escolhido fora desse esquema secular. É uma figura conciliadora, contudo: comunicador, costura alianças, constrói frentes, amplia debates e reúne gentes. À esquerda do espectro político, caminha de um lado para o outro quando necessário.


Porém, regressemos para outro momento-chave: o dia 10 de dezembro de 2021, que enlaça Brasil, Argentina e Uruguai e costura a primeira “onda rosa” latino-americana com o advento de seu segundo ato, entre a ressaca conservadora e os novos ventos que sopravam.


Neste dia, Lula, já liberto e candidato, discursa calorosamente junto com o presidente argentino Alberto Fernandez, sua vice, Cristina Kirchner, e o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, numa celebração da democracia argentina. Este dia coincide com o Dia Internacional dos Direitos Humanos, espécie de efeméride no país, momento de relembrar os anos obscuros da ditadura militar (1976-1985) e de todos os males que vieram, ou se acentuaram, com ela. Provando, finalmente, a “superioridade” dos valores democráticos.


Rememorar criticamente a ditadura em um país latino-americano é resgatar um contexto autoritário comum entre todos os outros países e as dores de seus povos. Lula evita ler o discurso que lhe foi entregue e fala em um português com pitadas de espanhol, comentando que todos ali lhe entenderiam. Frente ao orador magnético, centenas de milhares de argentinos concentrados na Plaza de Mayo anunciavam, em uníssono, o retorno de Lula à presidência, o que se concretizaria meses depois na eleição mais acirrada e polarizada da história brasileira.


Lula começa a citar as principais lideranças políticas da onda progressista que foram eleitas e iniciaram os seus governos no raiar do século XXI, em quase toda a América Latina. Relembra Evo Morales, o “índio” presidente da Bolívia; Rafael Correa, no Equador; o comandante insurreto que inaugurou esse período na Venezuela, Hugo Chávez; os carismáticos Tabaré Vázquez e Pepe Mujica, no Uruguai; e, é claro, seus companheiros argentinos, Cristina e Nestor Kirchner. Lula diz que “nunca a América Latina tinha vivido algo semelhante”, pois todos “governaram democraticamente” numa união com vistas à integração continental e o bem-estar de seus povos.


Ao abordar o que acreditava serem as vitórias desses governos, repete mantras antigos evocando a união dos povos latino-americanos, fala em “Pátria Grande”, enseja a emancipação e um outro futuro para os argentinos, os brasileiros e todos os latino-americanos naquela noite. É bom lembrarmos: o mundo se arrastava para fora de uma pandemia destrutiva com toques apocalípticos, e o Brasil experimentava cotidianamente o amargo governo Bolsonaro.


Dessa forma, o discurso de Lula recupera e sintetiza a primeira onda progressista como momento político e histórico – é um momento que já se encerrou, que até ontem era vivido e que agora já é passado. Um passado, esse sim, cheio de contradições, avanços, recuos e interpretações das mais variadas. Como político que firma os pés no hoje pensando no amanhã, Lula enlaça dois momentos específicos naquele entardecer. Um deles foi encerrado em 2016, através da inflexão dos movimentos e partidos progressistas no poder, como escreveu Santos, “quando o bolivarianismo sofreu uma derrota acachapante nas eleições parlamentares venezuelanas e Mauricio Macri elegeu-se presidente da Argentina”, e o outro custava a nascer: a segunda onda progressista que tomava forma em meio a ressaca conservadora. Como da última vez – ainda numa conflitiva amistosa com Hugo Chávez, na disputa pelo protagonismo regional –, Lula coloca-se à frente desse processo.


Entre os acontecimentos da primeira onda e o seu segundo ato, irrupções das mais variadas tomaram o continente de assalto, como a prisão do próprio petista nas garras do lawfare através da Operação Lava Jato e a destituição mediante golpe brando de sua sucessora, Dilma Rousseff. Ambos os acontecimentos feriram a ideia central do progressismo, aquela de que caminharíamos sempre em frente, a cada dia avançando mais na busca pelo bem-estar, na democratização e da participação dos povos nas decisões e assuntos públicos. A ideia de que o amanhã seria sempre melhor do que o hoje, progredindo numa sucessão de fatos numa cadeia de causa e efeito.


Nada mais inverídico.


Todos sabemos que as forças de reação reagem violentamente à implantação de políticas públicas de redistribuição de renda, à democratização do ensino e do território e à ampliação e ao fortalecimento da participação popular, como ocorreu das mais diferentes formas no continente à época. Em análise lapidar numa entrevista concedida à Jacobin, Álvaro García Linera afirma que “todo processo de ampliação de direitos, ou de distribuição de riqueza, inevitavelmente, vai gerar, cedo ou tarde, algum tipo de reação anti-igualitária. Porque pode haver setores, não necessariamente as grandes elites, mas setores médios altos, que vão aderir a uma paixão pela desigualdade”.


Somente em 2019, três fatos marcaram países distintos, os quais seriam inimagináveis se voltássemos alguns anos no tempo: o golpe de Estado boliviano, onde as cenas de whipalas sendo incendiadas acompanhavam a violência contra os indígenas que as empunhavam; o estallido social no Chile e a violência extrema contra manifestantes e o movimento estudantil, que fizeram soar o alerta para os que sentiam o arrepio da comparação com o golpe de 1973; e o aprofundamento do desmonte do Estado brasileiro através do bolsonarismo, que dispensa análises mais profundas.


Na angústia das derrotas e das lutas, o segundo ato foi se constituindo nas novas experiências de progressismos tardios. Do estallido social chileno surgiu o jovem Gabriel Boric, que visa o debacle da herança pinochetista; já o colombiano Gustavo Petro enfrenta as estruturas da grande violência que corrói há décadas a Colômbia; e Andrés Manuel López Obrador tenta construir um Estado de bem-estar social nos sedimentos do arcaísmo mexicano – agindo como o grande protagonista deste novo cenário.


Apesar da capacidade e ímpeto dessas novas lideranças – guardadas as devidas distinções de postura e de inserção no espectro ideológico –, existem debilidades da segunda onda que expõem os riscos do momento: o curto período que têm no cargo e o desencontro de projetos que esses governos possuem para debater e construir soluções integradas para seus países. O bloqueio contra Cuba, as relações diplomáticas com a Venezuela, a Nicarágua de Ortega e a posição perante a conjuntura peruana atual são assuntos que tensionam ainda mais o momento.


Dependendo dos acontecimentos que se sucederem em seus territórios – como possíveis erros, um cenário internacional desfavorável, um arrefecer de seu eleitorado ou contra-ataques das oligarquias regionais –, os ventos da mudança poderão soprar ao contrário. É quando a paisagem muda e as coisas se invertem. Conhecemos a força da ressaca conservadora e suas consequências.


Lula é a liderança que, diferente das demais, regressa e é inserido nesse processo de enlace entre um período e outro. Mesmo que ex-presidentes do Uruguai, Equador e Bolívia – além de lideranças de partidos e movimentos argentinos e brasileiros – permaneçam em constante diálogo através do “Grupo de Puebla”, órgão que aspira o velho sonho de integração regional, uma coisa é discutir e debater os rumos da região, outra coisa é decidir e agir sobre ela.


O petista parece ser aquele que melhor catalisou os anseios deste segundo ato, ainda que encontrando os mesmos limites conciliatórios que aqueles da primeira onda – agora, em uma conjuntura polarizada, onde movimentos e partidos de extrema-direita conquistam parcelas significativas da população. Lula entendeu, por exemplo, que, sem a força propulsora e protetiva dos povos originários e da terra, não encontraremos soluções para os dilemas que afetam não apenas o Brasil, mas todo o continente. Repensar a proteção da biodiversidade – e protegê-la, de fato – é o maior desafio de seu terceiro mandato.


A inserção dos povos originários brasileiros nos espaços de decisão e poder – notadamente com a criação do Ministério dos Povos Indígenas – é um passo relevante, mas pequeno se comparado ao avanço nas discussões e políticas em países como Bolívia e Equador, ainda sob a força da primeira onda progressista.


As ondas progressistas que conquistaram o continente são um fenômeno novo, se pensarmos historicamente. Uma espécie de “avanço dos vencidos”: sujeitos e agrupamentos que, lá trás, foram alvo das ditaduras militares e da Doutrina de Segurança Nacional. Avanços e recuos que foram imortalizados pela cultura do continente. Uma das vozes mais potentes da Nova Canção Latino-Americana (1960-1970), a argentina Mercedes Sosa, lembrada como a “Voz da América Latina” por excelência, cantou a plenos pulmões para operários, camponeses, indígenas e presidentes sobre um futuro que “poderia ser”, aquele em que as suas gentes que partilham de uma mesma solidão – como bem nos lembrou Gabo, em 1982 – seriam responsáveis pelo fazimento de um continente rico, justo e emancipado.


Em Canción Con Todos, Mercedes canta os rincões de uma América Latina que, integrada e unida, seria, ela sim, a região que comportaria o futuro: a cintura cósmica do Sul. A primeira onda progressista representou a expectativa de uma mudança que veio, em partes, tolhida e limitada. Vivemos agora – e não sabemos até quando – um novo momento, com instantes criativos e conflitivos de possibilidades. Momento em que “toda la sangre puede ser canción en el viento”. A questão é: neste segundo ato, como ir para além do que foi proposto lá atrás?


Créditos da imagem destacada: Lula discursa para uma multidão na Plaza de Mayo, em Buenos Aires, Argentina. Reprodução/ Instagram.


 

Referências:

COMPARATO, Fábio Konder. A oligarquia brasileira: visão histórica. São Paulo: Contracorrente, 2018.

SANTOS, Fábio L. B. Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016). São Paulo: Elefante, 2018.


Como citar este artigo:

GENARO, L. F. M. de. O segundo ato: a nova onda progressista latino-americana na perspectiva brasileira. História da Ditadura, 3 mai. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/o-segundo-ato-a-nova-onda-progressista-latino-americana-na-perspectiva-brasileira. Acesso em: [inserir data].

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